O ventre trespassado da liberdade
O esventramento continuo ao qual somos, enquanto povo, submetidos diariamente parece causar enorme satisfação aos donos do poder, que riem, roubam e mentem descaradamente sem que nada lhes aconteça. Vítimas do descaso generalizado do Estado, tal qual áporos, como no poema de Drummond, seguimos exaustos, em país bloqueado. Logo, faz-se urgente que nas ruas, as orquídeas se formem
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Na segunda-feira, dia 24/05/21, uma ventania derrubou a réplica da Estátua da Liberdade, que serve de marca à uma determinada rede de lojas do país. O fato se deu em Capão da Canoa, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Segundo informações que circularam na mídia, a referida estátua teria 20 metros de altura, 10 de base e pesava 3,6 toneladas. Trata-se de um monumental exemplo do complexo de vira-latas da elite do atraso, que se orgulha da própria ignorância, seguindo na vanguarda da estupidez mundial.
Desconsiderando-se a cafonice e a mentalidade colonizada de se ter um entulho desses como símbolo do que quer que seja, pois de liberdade não o é, nem aqui, na filial, muito menos lá, na matriz; a imagem que circulou diz muito acerca de como a liberdade tem sido tratada por aqui. A tal da estátua, derrubada pelas forças da natureza, caiu de cara no chão, varada por um poste. Juram os moradores da região que ouviram a deusa dos ventos e tempestades gargalhar. Quanto a isso não se viu nada na mídia nem nada mais pode-se aqui afirmar.
No país das estátuas cafonas e dos pênis que existem apenas nas cabeças de algumas criaturas (Freud e Wilhelm Reich riem desesperadamente), a imagem da Estátua da Liberdade trespassada por um poste pode muito bem ser compreendida como a metaforização das cotidianas violências e ataques que a Liberdade tem sofrido por aqui desde o golpe de 2016, pois não há um único dia em que professores, jornalistas, artistas, pensadores e ativistas em geral não sejam cerceados, proibidos de falar e exercerem suas funções. Há sempre uma brecha constitucional aqui, uma lei draconiana ali que, quase sempre, são sacadas para censurar, perseguir e prender todos aqueles que tentam evitar que as boiadas fascistas avancem.
Sempre que esse tipo de coisa acontece, a Liberdade é trespassada por postes de violência que rasgam seu ventre, arrancam suas vísceras, e as esfregam na cara da nossa cambaleante democracia. E por falar em “postes”, eis que eles se proliferam por todos os setores do país, prontos a usar as leis em proveito próprio sem demonstrar nenhum pingo de pudor. Não há, tem-se percebido, nenhuma hesitação por parte deles em acionar os aparelhos repressores do Estados para calar as vozes dissidentes. O direito à opinião parece estar suspenso até segunda ordem, uma vez que o outro foi tornado persona non grata, e a pergunta de Spivak: “Pode o subalterno falar?” ficou perdida no vácuo da insensatez e da miséria de um país que outrora se pensou ser do futuro e que agora, definitivamente, parece ter perdido o prumo, a delicadeza e o viço. Se a Estátua da Liberdade trespassada por um poste pode ser lida como a imagem de uma possível derrocada do Império ou a morte da deusa Libertas, mais perto de nós, também pode ser entendida como a punição que terão todos aqueles que ousarem contestar o estado autoritário em curso. A estátua caída e varada, como numa espécie de “seppuku”, também pode ser compreendida com a representação de cada brasileiro e cada brasileira, mortalmente ferido pelos “postes” da intolerância, do descaso e do ódio.
O esventramento continuo ao qual somos, enquanto povo, submetidos diariamente parece causar enorme satisfação aos donos do poder, que riem, roubam e mentem descaradamente sem que nada lhes aconteça. Vítimas do descaso generalizado do Estado, tal qual áporos, como no poema de Drummond, seguimos exaustos, em país bloqueado. Logo, faz-se urgente que nas ruas, as orquídeas se formem.
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