O vale-tudo e o vale-nada

Flávio Aguiar escreve observações sobre os bastidores da eleição presidencial

Lula e Jair Bolsonaro
Lula e Jair Bolsonaro (Foto: ABR | Reuters)


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Por Flávio Aguiar 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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“Conheço o vento\ Pelo sopro donde vem,\ E a cara do Calavera\ Quando não vale um vintém!” (Das Coplas de um Viramundo, de Gaspar Machado e Lenin Nunes, cantadas por Elio Xavier, o Porca Veia).

“Calavera”, em espanhol, é “Caveira”. Em portunhol castiço, da fronteira gaúcha-gáucha, significa “espertalhão”, “atrevido”, um indivíduo que rouba no jogo de cartas e não vale nada. É Jair Bolsonaro e sua caterva. Ninguém ali vale nada, e impuseram um vale-tudo e vale-nada na política de Estado, no Brasil.

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Sempre houve mentiras na política brasileira. Aliás, no mundo. O sábio e conservador chanceler germânico Otto von Bismarck já dizia que “nunca se mente tanto como depois de uma caçada, durante uma guerra e antes de uma eleição”. A Ucrânia, os Estados Unidos e seus cúmplices, e a Rússia que o digam. Estão envoltos numa guerra sobre a qual quase nada se sabe ao certo, exceto que a Ucrânia está sendo destruída. Os Estados Unidos e o Reino Unido precisam proclamar que a Ucrânia pode ganhar a guerra, haja o que houver. De outro modo, como justificar perante seus contribuintes e aliados os bilhões de dólares investidos em armas? Do seu lado, a Rússia se envolveu numa armadilha do tipo “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Não dá para se acreditar nos comunicados de um lado e do outro.

Exemplo anterior de mentiras no atacado e no varejo: a guerra no Iraque, país que deveria possuir armas de extinção em massa que não existiam. Mas a mídia mainstream do Ocidente comprou e propagou a existências das armas inexistentes.

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Alguns exemplos brasileiros: (i) Toda a campanha no jornalismo brasileiro e fora dele contra os camponeses rebelados em Canudos, aliás Belo Monte, apresentando-os como agentes de uma campanha internacional para derrocar a jovem República (República?) brasileira e restaurar a Monarquia. (ii) Outro exemplo: o famigerado Plano Cohen, forjado pelo futuro general Olimpio Mourão Filho, o mesmo anos depois que precipitaria o golpe de 1º. de abril de 1964, usado para justificar o golpe do Estado Novo em novembro de 1937. (iii) Mais um: em 1964 pesquisas de opinião que apontavam o apoio majoritário da população às Reformas de Base projetadas pelo governo de João Goulart foram cuidadosamente ocultas. Em seu lugar, propagou-se na mídia dominante um apoio popular maciço aos golpistas civis e militares. E chamou-se o golpe de “Revolução”.

Poderíamos continuar citando exemplos, como o das heresias jurídicas e da idolatria midiática em torno da Lava Jato, que chegou a receber láureas internacionais com convites para que o juiz Sérgio Moro discursasse em outros países e a premiação da força-tarefa pela organização Transparency International, em Berlim.

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Passemos logo, no entanto, ao que é nosso objetivo principal: qual é a natureza específica da mentira-Bolsonaro? Será um amálgama entre fanatismo fascista e fanatismo religioso? Um amálgama entre a eficácia do descaramento completo do gestus autoritário, que basta a si mesmo, na palavra e na coreografia, e a implantação coletiva de uma realidade paralela que naturaliza a mentira como verdade e a atitude criminosa como virtude? Uma composição que sacramenta a confusão entre esperteza e inteligência, entre oportunismo e discernimento, safadeza e moralidade? Um comportamento que instaura ao mesmo tempo o vale-tudo, com atitudes imorais e amorais elevadas à condição de virtú política (pobre Maquiavel!), e o vale-nada, a tábula rasa de qualquer decoro na coreografia do poder, onde tanto vale comer cuspindo farofa no chão quanto debochar do sufocamento pela COVID?

Para começo de conversa, o fanatismo e a criação de mundo paralelos são fortes no bolsonarismo, mas não são um privilégio exclusivo dele. Faz 50 anos que o universo neoliberal se sustenta sobre uma crença tão contínua quanto falaciosa em sua eficácia, com sua penca de austeridades fiscais, cortes nos direitos e nos investimentos sociais, contração do papel do Estado, repressão ou neutralização do sindicalismo e outras matreirices. Nada disto funciona.

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Mas continua sendo cantado em prosa e mais prosa na mídia mainstream do mundo inteiro. Qualquer coisa que fuja desta ladainha é imediatamente rotulada de “populista”, seja à direita, seja à esquerda, reunindo num mesmo saco discursivo estes dois mundos antagônicos. No fim do século passado e no começo deste houve a conversão de inúmeros social-democratas, verdes e “socialistas” europeus a este universo conceitual. Tornaram-se dos mais encarniçados em aplicá-lo.

Contra todas as evidências e crises, o mantra neoliberal se mantém como referência para a maioria dos governantes, economistas, comentaristas de mídia, na Europa, Estados Unidos, Japão, Austrália, etc., apesar de algumas inflexões contrárias, notadamente devido às implicações inflacionárias e energética da guerra na Ucrânia. Para estes fundamentalistas do “mercado” as esquerdas latino-americanas aparecem como um incômodo ponto fora da curva, e fazem da América Latina, no momento, sobretudo depois da vitória de Lula no Brasil, a referência mais avultada de anti-neoliberalismo no mundo.

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Criou-se, portanto, com ultimado afinco, uma espécie de “não-mundo” baseado em artefatos retóricos em oposição ao mundo real de fome, desemprego, concentração brutal de renda, guerras terceirizadas, exploração de países mais vulneráveis e da natureza que o império do neoliberalismo industriou como forma e fórmula de “bem-viver”. Ou seja, o neoliberalismo vitorioso na Guerra Fria impôs a disseminação nas “democracias” do Ocidente, práticas que remontavam à tradição fascista, turbinadas pela crescente digitalização das esferas de comunicação. Foi neste caldo de cultura que o Jair Messias e seu séquito de articuladores e seguidores, a começar pela própria família e a vizinhança miliciana, começaram a surfar.

Desde o começo de sua carreira política Jair Messias e seus acólitos construíram um perfil messiânico baseado na mentira como método aliciador. Foi assim com a “cartilha sexual” e também com o “kit gay”, além da “mamadeira de piroca”, por exemplo. E tom messiânico, rimando com seu nome, sublinhava a propensão para instituir um “mundo paralelo” que eliminasse as alternativas, quaisquer que elas fossem, uma “nova ordem” política que não só derrotasse, mas eliminasse seus adversários.

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Penso que a eliminação de alternativas está na raiz e no frontispício dos sucessivos sucessos eleitorais de Jair Bolsonaro, até seu primeiro feito maior, a eleição para presidente em 2018, derrotando as esquerdas e também desbancando as direitas liberais tradicionais. Para tanto ele e seu bando mobilizaram um mix paradoxal de ressentimentos e frustrações com soberba e desprezo pelos outros, de fanatismo pentecostal com oportunismo sem freios, de individualismo feroz com sentimento de rebanho, de agregação dos semelhantes com segregação do “resto”, de elogio da ignorância com esperteza informática, e assim por diante.

Mas é forçoso reconhecer que esta vereda lhe foi aberta pelos caminhos do neoliberalismo brasileiro, que também procurava eliminar alternativas, apresentando-se não como a melhor delas, mas como a única realidade possível, pela mídia mainstream e seu desejo de afogar o PT e as esquerdas, e por parcela dominante dos políticos tradicionais que, sobretudo depois da derrota de Aécio Neves em 2016, decidiram também partir para o vale-tudo e o vale-nada, com cumplicidades no Judiciário: o impeachment fraudulento de Dilma Rousseff e a prisão de Lula, decorrente onde um processo fajuto, improcedente e “frívolo”, como se diz em jargão jurídico. Messias transformou a vereda em avenida, a trilha em autoestrada.

Depois da vitória eleitoral, o segundo maior sucesso do Messias foi a imposição de sua pauta na política nacional, incluindo aí uma invasão da retórica das esquerdas. Transformou política em religião e vice-versa. E em várias das “bolhas” digitais das esquerdas ocorria o fenômeno da reprodução despida de comentários ou críticas dos desmandos, violências e estupidez bolsonaristas.

O resultado, além da instauração do que hoje vem sendo denominado como “dissociação cognitiva” em massa, e que também pode ser chamado de “alucinação negativa” e coletiva, foi desembocarmos na eleição mais dramática de nossa história e também, curiosamente, a de termos os mais despolitizados. Despolitizados? Sim, porque durante boa parte do tempo não se discutiram programas e alternativas, substituídas por temas como “ladroagem”, “maçonaria”, “Deus e o Diabo”, além de escatologias, sexualidades, golpes e contra-golpes de Estado, regionalismos os mais variados, etc.

Cheguei a ler um comentário depreciativo na mídia francesa dizendo que esta eleição era sui-generis porque um candidato, o situacionista, não falava do futuro e o outro, de oposição, só falava do passado. Aliás, não poucas vozes das nossas esquerdas fizeram a mesma crítica à campanha de Lula, dizendo, no fundo, que ele deveria focar mais o futuro e fazer, portanto, mais prognósticos e promessas, ao invés de rememorações nostálgicas.

Penso, no entanto, que Lula estava certo, sobretudo diante do fato de que ele reuniu uma frente amplíssima para terminar vencendo por uma diferença mínima de votos. Lula lembrou não apenas um tempo em que éramos felizes e sabíamos, mas de um tempo em que se fazia política mais civilizada, apesar de as fake-denúncias terem sempre feito parte do cardápio das direitas.

Esta foi também a eleição mais suja desde os tempos da Primeira República ou Velha. O estilo messiânico e miliciano dos ocupantes do poder mobilizou todo o repertório brasileiro e internacional de verdadeiras sacanagens eleitorais: fake news, distribuição farta e secreta de prebendas e sinecuras milionárias, favores para motoristas de caminhão e taxistas, intimidações e violências as mais variadas, bloqueios policiais nas estradas de redutos considerados lulistas, baixarias religiosas, o antilulismo e o antipetismo aliados ao anticomunismo anacrônico, homofobias, racismos, misoginia, preconceitos paroquiais, populismos e elitismos, etc..

O milagre, se é que milagre houve, foi que todo este imenso esforço de falcatruas e falsificações deu com os burros, os cavalos e o gado n’água. Não deu certo. No segundo turno, 60 milhões, 345 mil, e 999 brasileiras e brasileiros, vencendo aquela barreira de sequestros da política, e o abstencionismo, disseram não ao vale-tudo e vale-nada. A diferença pequena, de 2 milhões, 139 mil e 645 votos, revelou-se imensa, porque o outro lado adquirira a certeza da vitória.

Isto fica patente nas manifestações raivosas, ressentidas e frustradas que ocorreram, com o bloqueio das estradas, e ainda ocorrem, com os ajuntamentos nas portas dos quartéis e em arruaças em centros urbanos, às vezes com o olhar complacente da polícia e de autoridades locais e militares. Há várias análises que assinalam ter o preparo destas operações começado há tempos. Concordo: o apoio logístico a elas, por parte de empresários e também por setores policiais mostra que elas não são improvisadas, mas fazem parte de uma conspiração planejada.

Mas há algo nelas que mostra também um certo desarvoramento político – a começar pela perda, por parte de alguns dos manifestantes, da fé no seu Messias que, no fim de contas, nem tão messias foi: o seu vale-tudo falhou, a esperada nova ordem não se implantou, mostrando que, no fundo, ele não valia muita coisa mesmo. E há também sinais de pânico, como mostram o apagão nos computadores do Palácio do Planalto e a correria para pedir a cidadania italiana por parte da família.

De toda esta trajetória, cujo desfecho está longe de ser definido, restou-me uma dúvida que não quer calar e fica ressoando nos meus tímpanos tão fatigados: o papel do Judiciário nela. A conivência de altos escalões do Poder Judiciário foi fundamental para ejetar Dilma Rousseff do Palácio do Planalto e para abrir o caminho para o Messias, permitindo o afastamento e o ostracismo de Lula na prisão, bloqueando seu caminho em 2018. Do mesmo modo, o papel deste alto escalão judicial foi e vem sendo fundamental para conter os ímpetos golpistas irradiados a partir do mesmo Palácio do Planalto, ora em poder de usurpadores.

Como assim? O que houve? Quid accidit?, para ficar num jargão caro ao mundo jurídico.

Tenho uma hipótese. Para começar, talvez fosse mais adequado traduzir aquela frase para o inglês: What happened? Sabe-se que nos Estados Unidos existe algo chamado de “Deep State”, um amálgama de think-tanks, altos escalões dos serviços de inteligência, do Departamento de Estado, do mundo financeiro e outros das finanças e das indústrias, que é quem dita, por exemplo, a política externa para democratas e republicanos. Pois estou convencido de que existe um “Estado Profundo” também no Brasil, e, se não consigo determinar no todo quem dele faz parte, também estou convencido de que membros no Poder Judiciário têm nele algum papel.

Penso que a certa altura dos acontecimentos estes dois, com a cooperação talvez de outras dimensões de Deep States pelo mundo afora, torceram o nariz para o Messias e sua banda, e rifaram o conjunto que desafinava cada vez mais. Talvez por terem se convencido de que no fundo ele não valia grande coisa mesmo. Mas por isto mesmo era um perigo perigosíssimo, pondo em risco o equilíbrio do establishment. Uma evidência deste envolvimento foi a verdadeira conjura internacional para que, no caso da vitória de Lula o reconhecimento internacional acontecesse de imediato, para ajudar a impedir o temido golpe de estado. E o reconhecimento aconteceu, embora o risco de golpe ainda não esteja completamente dissipado. A ver.

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