O turbilhão Latino-Americano

Segundo Emir Sader, a América Latina terminará o ano "com uma fisionomia distinta, para melhor ou para pior"

Gabriel Boric
Gabriel Boric (Foto: Twitter/presidência chilena)


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Em poucos dias ou semanas, a América Latina define seu futuro. O atentado à Cristina, o referendo chileno, as eleições brasileiras, em suas consequências, fazem com que o continente termine o ano com uma fisionomia distinta, para melhor ou para pior.

O certo é que a América Latina se reafirma como o epicentro dos grandes combates políticos contemporâneos. Foi aqui que o neoliberalismo teve mais e mais radicais governos. Foi aqui que surgiram os governos antineoliberais e os principais líderes políticos da esquerda no século XXI.

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É aqui onde seguem se dando os enfrentamentos mais importantes do nosso tempo. Aqui, onde se define a morte ou a sobrevivência do neoliberalismo.

Em todos os países o embate entre a esquerda e a direita assumiram novas formas. Com uma esquerda antineoliberal e uma direita radicalizada, assumindo o discurso do ódio.

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O atentado à Cristina foi o episódio que mais expressa esse discurso e suas criminosas consequências. Foi ali que a extrema direita passou das palavras aos fatos, com a escalada de ameaças contra Cristina, Alberto Fernández e a democracia argentina, disparou o gatilho.

O país, envolvido em uma guerra econômica em torno da sabotagem do grande empresariado, pelo apelo à subida indiscriminada de preços como forma de multiplicar seus lucros e sabotar o governo, apelou a formas políticas para tentar golpear duramente a esquerda, pelo atentado contra Cristina. Os disparos assassinariam a principal líder argentina, mas também a democracia argentina.

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As mobilizações populares de defesa da democracia e da Cristina e as tentativas de Alberto Fernández de montar um acordo nacional de defesa da democracia, podem mudar o panorama político do país. Mas a direita, depois de declarações formais de condenação do atentado, não demonstra disposição de um grande acordo formal pela paz. Retomam acusações de que o governo se utilizaria do atentado para atacar a eles, instrumentalizando a situação.

As próximas semanas serão decisivas para o futuro econômico e político do país, projetando-se até mesmo o cenário das eleições presidenciais do próximo ano.

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As eleições brasileiras têm uma provável eleição do Lula no seu grande elemento novo. Resta saber se ele conseguirá triunfar no primeiro turno, no começo ou no fim de outubro. A direita reúne todas suas forças para, consciente da incapacidade de Bolsonaro de se reeleger, retomam e intensificam o antipetismo, para tentar fazer com a que definição se dê no segundo turno, para tentar impedir que a vitória do Lula chegue logo no primeiro turno, com um novo presidente muito forte.

De qualquer maneira, a provável eleição do Lula será o avanço mais significativo com que poderá contar a América Latina, junto com os governos do México, da Argentina, da Colômbia, da Bolívia, de Honduras, para coordenar suas forças na luta contra o neoliberalismo.

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O referendo chileno agrega um elemento novo. A reversão dos resultados anteriores, como resultado de uma brutal campanha da direita, como o Chile não havia ainda conhecido, coloca dilemas novos e complexos para o governo de Boric.

Por que e como se deu essa reversão? É tema para análises mais detidas, mas se pode dizer, pelo menos, que existem três níveis da derrota. 

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A primeira foi uma derrota política. A direita soube flexibilizar suas posições, escondendo o retorno da constituição do Pinochet, para afirmar sua disposição a aceitar uma nova constituição, mas feita de outra maneira – sem a paridade de gênero, sem a bancada indígena – e com prazos mais longos. Ganhou a setores de centro e até mesmo da esquerda moderada – do Partido Socialitas e da Democracia Cristã -, que expressaram sua adesão à rejeição.

Enquanto que a posição a favor do governo foi incapaz de reter sequer mais do que a metade dos votos dos que tinham votado a favor de uma nova constituição. Acreditou que a boa proposta de nova constituição, por si só, serviria para atender os votos dos que eram a favor da Convenção Constituinte.

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A diminuição rápida do apoio ao governo de Boric – 38% - já nos primeiros meses do governo, que tardou para reagir e retomar a iniciativa, com projetos que atendam as necessidades da população, ajudou a derrota política.

A segunda foi uma derrota midiática. O Chile viveu a mais brutal campanha de fake news que o país tinha conhecido – concentrada na desqualificação mentirosa do que acontecia na Convenção e do comportamento dos seus membros, no que o governo estaria preparando (desde que se mudaria a cor da bandeira chilena até que os mapuches teriam direito de veto sobre tudo o que governo fizesse, entre outras).

Não houve um comando político e midiático da campanha pelo Aprovo, que buscasse responder a essas mentiras, que correram soltas o tempo todo da campanha. A opinião pública se revelou fortemente contra a Convenção e o governo, estendendo isso à rejeição do novo projeto de constituição. 

O terceiro nível da derrota se deu a nível de massas. A Frente Ampla e os movimentos sociais.

Não revelaram ter capacidade de levar a campanha pelo Aprovo a nível de massas, em todo o país. O tamanho e a extensão da derrota, em todas as regiões do Chile, até mesmo na região metropolitana, bastião da esquerda, expressa isso.

O isolamento em relação ao sentimento das pessoas tomou por surpresa um resultado tão consistente de rejeição à nova constituição, não captado pelos dirigentes da campanha do Aprovo.

Como reagirá o país a essa derrota? A mídia se encarrega de concentrar o ônus da derrota no governo. Os setores de centro e esquerda moderada proporão seu ingresso ao governo, como forma de romper o isolamento do governo.

O discurso de Boric em cadeia nacional foi muito bom, um discurso de estadista, que assimila o resultado, mas reafirma os objetivos do movimento de 2019, de dotar o Chile de uma nova constituição, democrática, que vire de vez a página do pinochetismo e do modelo neoliberal.

Em torno da reforma do governo e da convocação de uma nova constituinte se darão as disputas mais importantes, que revelarão como o Chile sai da derrota e que força tem a esquerda para retomar a iniciativa. Fundamental, antes de tudo, é a unidade em torno da defesa do governo. Em segundo lugar, que o governo tome medidas que defendam as necessidades imediatas da população, assim como  atendam as preocupações com a segurança pública, entre outras.

O atentado à Cristina e a derrota do referendo no Chile reforçam a centralidade da disputa midiática, da opinião pública, a importância decisiva da disputa ideológica, cultural, de valores, que termina sendo a grande alavanca dos grandes acontecimentos políticos. O turbilhão latino-americano não se deterá, nem com a provável vitória do Lula. O continente continuará a ser o epicentro das grandes lutas no mundo contemporâneo, assim como a seguir projetando e consolidando seus líderes como os principais líderes da esquerda no século XXI.

Mas a América Latina tem que se valer dos governos conquistados – México, Argentina, Colômbia, Bolívia, Chile, Honduras, ao que se somará o do Lula, - para enfrentar coletivamente o conjunto de problemas que enfrenta o continente. Há uma grande maioria política nova na América Latina, que deve servir de alavanca para realizar transformações de fundo no continente – a nível econômico, político, social, midiático -, para que o turbilhão sirva para a construção de uma América Latina menos desigual, mais justa, mais solidária, mais democrática.  

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