O tucano que iluminou o Brasil
O discurso de Semler em um texto literalmente antológico e que, a esta altura, quem se interessa por política com certeza já leu, se fosse entoado por Fernando Henrique Cardoso faria dele alguém que seria respeitado pela maioria, em vez de repudiado
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Ricardo Semler tem o perfil tucano padrão. Rico, 55 anos, paulista, empresário de renome, é hoje vice-presidente da Fiesp, além de CEO (executivo-chefe) e sócio majoritário da empresa Semco S/A. E não tem apenas perfil tucano; é filiado ao PSDB. E das antigas. Filiou-se quando Franco Montoro presidia o partido.
Semler tornou-se conhecido por ter implantado em sua empresa fórmulas inovadoras de gestão empresarial. Sob sua gestão, o faturamento da empresa subiu de quatro milhões de dólares em 1982 para 212 milhões de dólares em 2003.
A revista TIME elegeu o executivo paulista como um dos “100 Jovens Líderes Globais”, em 1994. O Fórum Econômico Mundial também o apontou em trabalhos semelhantes. Foi exaltado como gestor pelo Wall Street Journal – como “Empresário do Ano na América Latina”, em 1990, e “Empresário do Ano no Brasil”, em 1992.
Semler formou-se em Direito na USP e estudou Administração em Harvard. Além disso, escreveu livros que se tornaram sucesso em vendas no Brasil e exterior.
Na última sexta-feira (21), o empresário surpreendeu o país com um artigo no jornal Folha de São Paulo na linha super sincero. No texto, reconheceu que, apesar da gritaria hipócrita entoada hoje sobre corrupção – sobretudo na imprensa –, nunca se roubou tão pouco neste país.
O artigo em questão se espalhou como fogo e provocou polêmica apesar de não conter novidade. Tivesse sido escrito por um petista ou mesmo por um cidadão sem coloração partidária, teria passado batido. O que fez o texto repercutir tanto foi o fato de seu autor, declaradamente tucano, contrariar o discurso de seu partido.
O artigo de Semler gerou polêmica a partir do título: “Nunca se roubou tão pouco”. Dali em diante, sem abrir mão do discurso tucano contra o PT – de que, ao longo dos governos Lula e Dilma, houve corrupção e barbeiragens na economia –, o empresário tucano demonstrou que é possível defender as próprias bandeiras políticas e ideológicas sem cair no mau-caratismo.
O discurso de Semler em um texto literalmente antológico e que, a esta altura, quem se interessa por política com certeza já leu, se fosse entoado por Fernando Henrique Cardoso faria dele alguém que seria respeitado pela maioria, em vez de repudiado.
Infelizmente, à diferença do correligionário no PSDB, FHC se entregou à politicagem mais barata que se possa conceber, causando surtos de indignação quando se dá ao desfrute de fazer acusações de corrupção aos adversários políticos. Justamente ele, FHC…
Alguns dirão que Semler se contradiz porque reconhece que a corrupção desbragada que existia antes de o PT chegar ao Poder também existiu no governo federal de seu partido e, à diferença de hoje, não foi investigada.
Pela lógica binária, portanto, se o empresário reconhece que sob o PT a corrupção diminuiu, em vez de ter votado em Aécio Neves deveria ter votado em Dilma Rousseff. Este blogueiro, porém, entende que cada um tem o direito de votar de acordo com seus próprios interesses.
Explico: apesar de achar que os empresários brasileiros estarão mais bem-servidos por um governo que não joga nas costas do povo o preço da crise internacional, pois assim esse povo continuará movimentando a economia, Semler vive entre os ricos empresários paulistas, relaciona-se com eles, faz negócios com eles e com o resto do mundo capitalista. Por certo, não seria bem aceito em seu meio se fosse filiado ao PT, ao invés de ao PSDB.
Também dirão que Semler poderia não integrar partido algum. Mas como, se tem uma visão política tão clara e saudável como a que demonstrou em seu artigo?
Em minha visão, Semler é mais útil ao país sendo filiado ao PSDB do que ao PT. Por que? Simplesmente porque constitui uma reserva de sensatez e espírito público em uma agremiação que vem se perdendo em hipocrisia e cegueira política, ideológica e social.
Trocando em miúdos: ter gente como Semler dentro do PSDB ajuda a impedir que o partido piore ainda mais, mesmo que esse empresário provavelmente tenha pouca influência junto às hostes tucanas.
Ao ler o artigo de Semler, é quase impossível não sentir-se tentado a ser tão sincero e isento quanto ele. Aliás, sempre digo que isenção é para poucos – e sempre para os mais lúcidos e inteligentes.
Nesse aspecto, nós – blogueiro e leitores concordantes ou discordantes – que vivemos a política tão intensamente sentimos uma ponta de constrangimento porque estamos a anos-luz de sermos capazes de gesto igual ao de Semler.
Aliás, para um simpatizante ou um filiado tucano é muito mais fácil ser sincero, neste momento, do que para um equivalente petista, pois o governo recém-eleito de Dilma Rousseff está sob ameaça de golpe “paraguaio”, de modo que quem não se dá ao luxo da sinceridade de reconhecer as falhas do PT, como o empresário reconheceu as do PSDB, é porque sabe que não dá para ficar criticando o partido do governo sem ajudar aqueles que querem estuprar a democracia e jogar fora os votos de 54 milhões de eleitores.
Contudo, façamos uma concessão ao que chamo de o bom PSDB, ou seja, o PSDB que não existe mais, o PSDB daquele que Semler disse que assinou sua ficha de filiação ao partido, Franco Montoro, ou o PSDB do inesquecível Mario Covas.
Lembro-me de Montoro em 1982, lutando contra Reinaldo de Barros, candidato de Paulo Maluf ao governo de São Paulo, em um debate da campanha eleitoral para governador, naquele ano – a primeira eleição de governador após a ditadura.
O filho de Montoro André, é uma decepção. Politiqueiro, incapaz de um mísero gesto de sinceridade. Mas o pai, ah, o pai… Franco Montoro era daqueles políticos que já não se faz mais, assim como Mario Covas.
Mesmo os mais jovens devem se lembrar de Covas, em 2000, quase consumido pelo câncer interrompendo o tratamento derradeiro para apoiar Marta Suplicy contra Paulo Maluf no segundo turno da eleição para prefeito de São Paulo apesar de seu candidato, Geraldo Alckmin, ter sido derrotado no primeiro turno.
Aliás, lembro-me de Covas, na campanha a governador de São Paulo em 1998, sendo traído por FHC, que apoiou Maluf escancaradamente contra um correligionário. Quanta diferença entre Covas e FHC…
Aliás, votei em Mario Covas algumas vezes. No primeiro turno de 1989, pois então eu achava Lula “muito radical” – apesar de que votei no petista no segundo turno, contra Collor –, e quando a escolha foi entre o mesmo Covas e Maluf.
E, em 1982, é claro que votei em Montoro contra Reinaldo de Barros.
Semler resgatou o PSDB decente e social-democrata que poderia existir, mas que foi corrompido por FHC e se tornou a excrescência que é hoje. Um partido ligado à extrema-direita e povoado por ricaços insensíveis, racistas e egocêntricos.
Quanto ao PT, Semler tem lá sua dose de razão. Rendeu-se ao establishment, em grande parte. Mas enxergo que o fez porque não havia alternativa – ou melhor, havia: entregar o país a uma direita das piores que há no mundo.
Apesar de o PT ter admitido gente como um André Vargas em suas fileiras, apesar de ter apelado ao mesmo caixa 2 que o PSDB e todos os outros partidos sempre apelaram, ainda é o partido que tem a proposta mais aceitável para o país.
O que me leva a apoiar o PT tão decididamente – e estou certo de que Semler entende motivos como o meu – é que, apesar dos pesares, o partido tem uma proposta invencível: divide melhor os sacrifícios que o país tem que fazer.
Por fim, um tucano iluminar de forma tão digna e decente o país, como fez Semler, permite-me fazer uma concessão à sinceridade: talvez devamos, tucanos, petistas etc., refletir que ninguém é necessariamente bom ou mau só por ser petista, tucano, corintiano ou palmeirense.
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Leia, abaixo, o artigo antológico de Ricardo Semler publicado na Folha de São Paulo de 21 de novembro de 2014
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