O Super-NAFTA Global

Esses mega-acordos encerram, pelas cláusulas que contêm, o grande perigo de encetar um ciclo de nova dependência, econômica e geoestratégica, calcado na manutenção ou ampliação das desigualdades e na estagnação do mercado interno



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Tal como aconteceu com o lançamento da Aliança do Pacífico, a conclusão das negociações do TPP (Transpacific Trade Partnership-Parceria Comercial Transpacífica) [1] vem causando grande frisson em nossos conservadores e naqueles que acreditam, de forma acrítica, em benefícios incondicionais do livre-comércio, mesmo quando o fluxo comercial se dá entre parceiros grosseiramente assimétricos.

Nas propagandas do United States Trade Representative (USTR), órgão que conduz o comércio exterior dos EUA, bem como na nossa imprensa, o TPP aparece como um acordo “inovador e revolucionário”, destinado a produzir efeitos muito positivos para todos os Estados envolvidos e para a própria economia mundial.

Entretanto, em setores organizados da sociedade norte-americana, o TPP desperta, há bastante tempo, críticas duras e fortes desconfianças, o que prenuncia um caminho difícil para sua ratificação. Também no Canadá, na Austrália e Nova Zelândia há grandes questionamentos, em relação ao TPP. E com razão.

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Na realidade, o TPP não pode ser dissociado de seu “irmão gêmeo”, o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership- Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos) negociado entre os EUA e a União Europeia.

Tanto o TPP quanto TTIP são propugnados essencialmente por iniciativa dos EUA, com idênticos objetivos. São dois mega-acordos que colocam os EUA no centro das iniciativas econômicas e comerciais, objetivando maior projeção de seus interesses no mundo. Ambos conformariam uma espécie de Super-NAFTA global, ou semiglobal, pois englobariam cerca de metade do comércio e mais da metade do PIB mundial, com cláusulas muito semelhantes às que já vigoram naquele acordo da América do Norte, além de instituírem outros dispositivos mais “avançados”.

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No que tange aos objetivos geoestratégicos, a ideia é reconstituir e aprofundar a hegemonia da antiga Tríade (EUA, União Europeia e Japão), ameaçada pela emergência da China e outros países em desenvolvimento e, particularmente, pela articulação dos interesses desses países emergentes nos BRICS.

Não é coincidência o fato de que a China, grande polo dinâmico da região do Pacífico, e mesmo mundial, tenha ficado excluída do TPP. Também não é coincidência o fato de nenhum membro do BRICS tenha sido convidado a participar tanto do TPP quanto do TTIP. Os BRICs, aliás, também não foram convidados a participar do TiSA (Trade in Services Agreement-Acordo sobre Comércio de Serviços), acordo que pretende abrir esse setor estratégico da economia mundial.

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No que se relaciona aos objetivos econômicos e comerciais, ou geoeconômicos, o objetivo maior é submeter boa parte da economia internacional a regras mais condizentes com os interesses atuais das grandes companhias transnacionais norte-americanas, e também europeias e japonesas. Busca-se, sobretudo, harmonizar as legislações internas dos Estados nacionais, conforme os interesses dos grandes investidores e as necessidades dos capitais, inclusive dos capitais voláteis, em um ambiente de grandes incertezas ocasionado pela crise mundial.

Assim, as novas regras que o TPP e o TTIP, assim como o TiSA, pretendem instituir têm por finalidade facilitar uma nova expansão capitalista, associada aos interesses geoestratégicos dos EUA e aliados.

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E que regras seriam essas?

Embora tais acordos venham sendo negociados em suspeito e rigoroso sigilo, não tendo ocorrido, até agora, sequer a divulgação do texto já finalizado do TPP, ocorreram alguns vazamentos de “rascunhos”, que nos permitem antever algumas de suas características básicas.

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A primeira coisa que se deve considerar, nesta análise, é que esses novos acordos estão muito longe de ser acordos de livre comércio estrito senso, como soe divulgar nossa desinformada imprensa. No caso do TPP, dos 29 capítulos, apenas 5 dizem respeito a comércio de mercadorias.

A bem da verdade, tais acordos não pretendem incidir significativamente sobre tarifas comerciais de bens. Isso porque os países desenvolvidos envolvidos nessas negociações praticam, há bastante tempo, tarifas comerciais de importação muito reduzidas. Com efeito, a média das tarifas sobre bens na grande maioria desses países já é extremamente baixa, oscilando, em muitos casos, entre 3% e 4%. Portanto, a simples eliminação de tarifas de importação tão baixas teria efeito desprezível sobre o comércio e a economia mundiais.

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Na realidade, as novas regras inseridas nesses acordos já negociados ou em negociação visam promover os seguintes grandes objetivos.

 

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         I.            Abrir o Comércio Internacional de Serviços.

Em países desenvolvidos, os serviços respondem por um montante que oscila entre 70% e de 80% do PIB, e as firmas desse setor que lá existem são bastante competitivas. No entanto, em muitos países emergentes e mesmo em alguns países desenvolvidos, tal setor é ainda bastante protegido, pois lida com atividades estratégicas e muitas vezes públicas.

A ideia presente no TPP, no TIPP e, obviamente, também no TiSA, é reduzir tal proteção e abrir esse setor à concorrência internacional.

Assim, serviços relativos à saúde, à educação, à cultura, ao meio ambiente, à construção civil, ao provimento de energia, a consultorias diversas, às comunicações e, sobretudo, a bancos e finanças, bem como a vários outros, poderiam ficar expostos à concorrência de grandes supridores internacionais de serviços.

No caso específico do TiSA, análise do draft vazado[2] permite inferir que as instituições financeiras internacionais seriam as grandes beneficiárias do acordo.

Pelas cláusulas reveladas, os Estados nacionais poderiam ficar impedidos de impor restrições ou condicionantes a bancos e outras instituições financeiras que queiram instalar-se em seus territórios. Também ficariam impedidos de controlar o livre fluxo de capitais, de acordo com suas necessidades. Isso poderia dificultar que países submetidos a ataques especulativos contra suas moedas pudessem impor controle efetivo contra a fuga de capitais.

A abertura do setor dos serviços financeiros, sem as correspondentes medidas prudenciais, poderia contribuir para promover uma nova onda de “financeirizão” do capitalismo em nível global, com consequências desastrosas para a soberania dos países importadores de capitais voláteis.

Mas o problema não está concentrado somente nos serviços financeiros. A abertura de setores estratégicos como saúde, educação, comunicações, informática, comércio eletrônico, meio ambiente, etc. poderia criar novas e profundas relações de dependência justamente no setor que mais cresce e gera empregos no mundo.

 

     II.            Impor Normas mais Rigorosas de Proteção à Propriedade Intelectual

A ideia aqui é impor aos Estados nacionais cláusulas TRIPS+, de modo a proteger de forma mais rigorosa, e por mais tempo, os chamados direitos de propriedade intelectual.

O TRIPS (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, da OMC) procurou estabelecer um equilíbrio entre os direitos dos detentores de propriedade intelectual e os direitos dos Países-Membros, especialmente no que tange à capacidade de promoverem políticas públicas em prol de suas sociedades.

É esse equilíbrio do TRIPS que permite que o Brasil, entre outros países, possa desenvolver uma política de medicamentos genéricos, inclusive com quebra de patentes, para sustentar importantes vertentes da saúde pública, como o programa de combate a AIDS, por exemplo.

Ora, pelas informações disponíveis[3], tanto o TPP quanto o TTIP pretendem acabar com essa flexibilidade, impondo normas mais rigorosas que, se implantadas, poderiam limitar ou mesmo impedir tais políticas de saúde pública.

Pretende-se aumentar a proteção de patentes de medicamentos de 20 anos para 80 anos, ou mesmo para 120 anos. Intenta-se também limitar os casos previstos para licenciamento compulsório. Ademais, há o intuito de se ampliar a matéria patenteável, nela incluindo coisas que hoje, pelas regras do TRIPS, não podem ser objeto de patente e monopólio, como plantas e outros seres vivos, métodos de diagnóstico e de tratamento, técnicas cirúrgicas, recursos genéticos, etc.

Outra vertente de política pública que poderia ser comprometida por essas normas bem mais rígidas seria à afeta à ciência, tecnologia e inovação. Paradoxalmente, o excesso de rigor na proteção à propriedade intelectual desestimula a inovação, especialmente em médias e pequenas empresas, bem como em países em desenvolvimento, pois incide negativamente sobre o acesso materiais de pesquisa. Assim, a possibilidade do Brasil desenvolver uma indústria competitiva, com capacidade própria de inovação, se tornaria, no caso de adesão a acordos desse tipo, bastante remota. Teríamos maquiladoras, não indústrias.

 

III- Abrir o Setor de Compras Governamentais

No que se refere às compras governamentais, o objetivo último e fundamental é o de abrir esse importante setor econômico à concorrência internacional.

Desse modo, grandes empresas, em especial norte-americanas, europeias e japonesas, poderiam participar de concorrências promovidas pelo setor público em seus diversos níveis (nacional, estadual e local) para fornecer bens e serviços.

Governos de países menos competitivos resistem, com razão, a este objetivo, pois sabem que as compras governamentais são de grande importância para aumentar a demanda interna e estimular empresas locais e nacionais.

No caso do Brasil, a abertura desse setor poderia inviabilizar, entre outras, a atual política de conteúdo nacional praticada pela Petrobras, que sustenta a recuperação da nossa indústria naval e outros setores relevantes.

 

IV- Instituir um Direito dos Investidores, em Detrimento das Prerrogativas dos Estados Nacionais de controlarem os Fluxos de Capitais

O tema investimentos, por seu turno, representa o “coração” de um futuro Super-NAFTA, assim como já o é no caso do NAFTA.

Trata-se de construir, em âmbito praticamente mundial, um MAI (o famigerado e malogrado Acordo Multilateral de Investimentos), o qual foi negociado, em vão, no âmbito da OCDE, na segunda metade da década de 1990.

Tal como no MAI, esses acordos incorporam cláusulas danosas ao desenvolvimento dos países, como a da definição demasiadamente abrangente de investimentos, que não permite distinguir capitais especulativos de investimentos diretos; a da livre transferência dos resultados dos investimentos, a qual impede os Estados nacionais de imporem controle sobre a saída de capitais, mesmo no caso de crise extrema; e a referente à imposição de arbitragens internacionais, sempre que solicitadas unilateralmente pelo investidor estrangeiro, a qual retira dos judiciários nacionais o controle jurídico dos investimentos externos.

Muitos governos, de maneira correta, resistem a tais dispositivos, pois querem preservar a sua prerrogativa de definir políticas de investimentos, de gestão de recursos naturais, de meio ambiente, de defesa comercial e de outras que condicionam o desenvolvimento econômico e social.

A Argentina, na época de Menem, ratificou dezenas de acordos bilaterais com cláusulas desse tipo. Como resultado, após a crise do início dos anos 2000, quando aquele nosso vizinho foi forçado a impor controle de saída de capitais, à margem das cláusulas de livre transferência contidas nos seus acordos bilaterais, a Argentina tornou-se ré, em tribunais arbitrais instaurados por iniciativa unilateral de empresas/indivíduos estrangeiros que lá investiram, com processos que somavam mais de 50 juízos, a custos estimados de cerca de 15% do PIB argentino. É o que dá renunciar à soberania jurídica sobre investimentos estrangeiros.

Canadá, México e Austrália, entre vários outros países, também já tiveram problemas com esse privilégio jurídico conferido a investidores estrangeiros. No caso da Austrália, a Phillip Morris, grande empresa de tabaco, contestou na justiça decisão do governo australiano de incluir, nos maços de cigarros, advertências contra os malefícios do fumo. Perdeu na justiça australiana, mas, com base numa cláusula de proteção aos investimentos inscrita num acordo bilateral com Hong Kong, forçou a realização de uma arbitragem internacional.

O pior é que esses acordos não estimulam investimentos externos, que dependem muito mais de fatores objetivos, como mercado interno dinâmico, infraestrutura adequada, disponibilidade de mão de obra qualificada, ausência de conflitos etc.

Portanto, esses acordos, bilaterais ou regionais (NAFTA, TPP, TTIP, etc.), apenas conferem privilégios abusivos a investidores estrangeiros, em detrimento da capacidade de Estados nacionais de promoverem políticas de desenvolvimento, de industrialização, de inovação, etc.

O TPP e o TTIP estão preocupados, da mesma forma, em normatizar novos temas que ainda não foram “convenientemente enfrentados” em acordos antigos, como comércio eletrônico, serviços ambientais, mudanças climáticas, cláusulas relativas à competição, normas trabalhistas etc.

Em síntese, esses dois mega-acordos tendem a instituir as mesmas cláusulas já vigentes no NAFTA e a implantar outras novas que não estavam presentes na época da negociação daquele acordo. Se ratificado e se contar com um bom número de adesões extras, esse Super-NAFTA global praticamente definirá a falência definitiva da OMC como espaço de negociações multilaterais de comércio, com grande prejuízo para países emergentes como o Brasil, que lá negociam em condições mais simétricas e com correlação de forças mais igualitárias.

Ademais, eles poderão ajudar a redefinir ou mesmo reverter tendências geoestratégicas e geoeconômicas que beneficiavam a ascensão de países emergentes no cenário mundial, configurando um novo padrão de dependência e de acumulação do capital em nível global.

E o Brasil, como ficaria num cenário como esse?

Aqui, muitos já fazem advertências tenebrosas sobre o fato de que o Brasil está de fora desse grande e “revolucionário” acordo (o TPP), e, que, com isso, o país perderia, mais uma vez, a chance de integrar-se às “cadeias produtivas globais”.

Por trás dessas previsões sombrias está o “diagnóstico” de que o Brasil, por ficar “amarrado” à união aduaneira do Mercosul e apostar no sistema multilateral de comércio da OMC, estaria “isolado” dos grandes fluxos comerciais internacionais e “excluído” das cadeias produtivas globais. Completa esse diagnóstico econômico-comercial o diagnóstico político-ideológico de que a presente política externa brasileira é “terceiro-mundista” e “bolivariana”.

Ora, em primeiro lugar, esse diagnóstico está equivocado.

Na realidade, foi justamente no período dessa política externa supostamente isolacionista que o Brasil mais aumentou sua participação no comércio mundial. Nos primeiros 11 anos deste século, a participação das exportações brasileiras no comércio mundial cresceu de 0,88% para 1,46%, um aumento de 63%, muito significativo para um período tão curto.

É claro que, de 2011 até 2014, há decréscimo dessa participação, mas tal decréscimo não tem relação com uma suposta política isolacionista, mas sim com fatores bem conhecidos, como o esgotamento do superciclo das commodities, a redução do crescimento dos países emergentes, inclusive da China, a sobrevalorização do câmbio, a guerra cambial promovida pelos EUA, etc.

Em segundo lugar, é muito pouco provável que o Brasil consiga benefícios de peso aderindo a esses acordos ou a acordos semelhantes, bilaterais ou regionais, com países mais desenvolvidos.

Obviamente, num cenário de crise mundial, fim do superciclo das commodities e contração do mercado interno, ressurgem, com muita força, as pressões para que o Brasil abandone a união aduaneira do Mercosul e procure a celebração rápida de acordos de livre comércio com economias mais avançadas.

Mas o problema, além das assimetrias de competitividade, especialmente às refrentes ao setor industrial, é que tais acordos, como vimos, vão muito além do livre comércio de bens, ditando uma série de regras que podem comprometer o futuro do nosso desenvolvimento.

Num primeiro momento, a adesão acrítica a acordos assimétricos e abrangentes desse tipo poderia até aumentar de modo substancial nossa corrente de comércio, mas isso não necessariamente se traduziria em verdadeiro desenvolvimento. Ao contrário.

Como aconteceu com o México, após a adesão ao NAFTA, no Brasil poderia ocorrer o esfacelamento da estrutura produtiva nacional, o surgimento de déficits comerciais crônicos, o comprometimento da segurança alimentar, a estagnação da produtividade, a transformação de indústrias em meras “maquiladoras” que agregam pouco valor à produção e a baixa geração de bons empregos. Considere-se que, atualmente, o México tem 51% da sua população abaixo da linha da pobreza, segundo algumas estimativas.

Por conseguinte, parece pouco provável que a adesão a esses mega-acordos, ou a acordos semelhantes, nos possibilite implantar um novo ciclo de desenvolvimento calcado na distribuição da renda, no fortalecimento do mercado interno e na geração de indústria competitiva e inovadora.

Ao inverso, esses mega-acordos encerram, pelas cláusulas que contêm, o grande perigo de encetar um ciclo de nova dependência, econômica e geoestratégica, calcado na manutenção ou ampliação das desigualdades, na estagnação do mercado interno, na substituição das indústrias por maquiladoras e montadoras desenraizadas das cadeias produtivas locais e na exportação de bens e serviços aos quais se agregaria pouco valor, em nível nacional.

Parece mais um golpe contra a soberania do país e o desenvolvimento do Brasil.



[1] Trata-se de acordo que envolve, até agora, os EUA, Japão, Canadá, México, Austrália, Nova Zelândia Brunei, Cingapura, Malásia, Vietnam, Chile e Peru. Colômbia e outros países já manifestaram interesse em aderir.

[2] Vide “Analysis Article - Secret Trade in Services Agreement (TISA) - Financial Services Annex”, Jane Kelsey, Universidade de Aukland, in wikileaks.org/tisa-financial/analysis.html.

[3] Vide “Libre-échange, version Pacifique”, Martine Bulard, in Le Monde Diplomatique, novembro 2014.

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