O STF e o populismo judicante

De uma só penada, o STF revogou duas cláusulas pétreas da Lei Maior. O parágrafo único de seu art. 1º (“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), e o exaustivamente referido Art. 5º, LVII (“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”)

Presidente do STF, Cármen Lúcia, durante sessão da corte em Brasília 01/02/2018 REUTERS/Ueslei Marcelino
Presidente do STF, Cármen Lúcia, durante sessão da corte em Brasília 01/02/2018 REUTERS/Ueslei Marcelino (Foto: Roberto Amaral)


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Há muito tempo o tribunal se apartou da dignidade que seu papel institucional exige

Nada faltou à sessão do último 4 de abril, nem as manobras regimentais da presidente, antiga professora de direito em Minas Gerais, nem mesmo o populismo enfadonho do ministro Luís Roberto Barroso, o novo “Rui Barbosa de compota”, para recuperarmos a saudosa e precisa verve de Leonel Brizola, referindo-se a outro empolado e falso liberal.

Nenhum surpresa para o observador da vida real. Há muito o STF se apartou da dignidade que seu papel institucional exigiu, nos poucos momentos em que foi garante da ordem constitucional.

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Coube-lhe sempre, preservando-se, a tarefa de recepcionar todas as ordens autoritárias que se abateram sobre nós, como a Carta do Estado Novo e os Atos Institucionais dos militares que assaltaram o poder em 1964.

Neste quadro acabrunhante, que desde há muito tem sido desnudado, não sabemos se o STF, na quarta-feira de triste memória, foi ator ou se simplesmente, na sua coletiva pusilanimidade (sempre se ressalvem Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Marco Aurélio), limitou-se a cumprir a tarefa decretada pelos seus superiores – a tal ‘opinião pública’ ditada pelo que dela dizem os meios de comunicação –, ou pela ‘baioneta’ que, na expressão do sempre lúcido Bernardo Mello Franco, espetava os delicados e frágeis pescoços de nossos pretores, cujas capas pretas estão a caminho de outros tons de cinza.

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A propósito, o silêncio covarde do plenário (liderado pela omissão de sua presidente), foi quebrado pela voz corajosa, competente e lúcida do decano Celso de Mello, ao fazer da primeira parte de seu voto antológico a resposta do País à insidiosa chantagem do ainda comandante do Exército, seguida de inaceitáveis pronunciamentos de colegas fardados e de pijama. Estes ameaçaram com as armas que a República confia às Forças Armadas para defender nossa soberania, hoje, em face  de  sua omissão dolorosa, vítima da ação deletéria do governo ilegítimo nominalmente comandado por Michel Temer, também conhecido como ‘pato manco’.

(Por falar no locatário do Jaburu: esse senhor reuniu-se com o comandante do Exército, na residência deste, dois dias antes do pronunciamento desastrado. Sobre o que cochicharam?)

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A sociedade não se esquece, ou não deveria se esquecer, de 1964, quando outros generais, falando em democracia e em seus supostos deveres, rasgaram a Constituição de 1946, aboliram as eleições, fecharam os partidos, cassaram mandatos populares, reprimiram os direitos individuais e instituíram condenações sem processo, prisões sem julgamento e, por fim, a tortura e o assassinato.

Ao referir-se à impunidade de nossos dias, esquece-se o general Eduardo Villas Bôas da pior, da mais grave e mais insuportável de todas, a impunidade dos militares que, nos desvãos da ditadura, nas masmorras medievais em que se transformaram muitos quartéis, torturaram e mataram brasileiras e brasileiros que deles tinham uma visão distinta de democracia. Para, ao fim, nos devolver um país despedaçado.

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Essa impunidade só é possível graças à pressão que sobre a República ainda exercem as Forças Armadas de hoje, que preferem se identificar, não com a ordem democrática  e civil que é a aspiração de todos, mas com o que de pior nosso povo e nosso País colhem dos 21 anos da ditadura que comandaram. Impunidade que prossegue hoje, de oficiais sob o comando do general Villas Bôas, useiros e vezeiros em pronunciamentos políticos.

Resta-nos torcer para que a oportuna nota do comandante da Aeronáutica não seja ‘um ponto fora da curva’.

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Os dois fatos – a ameaça do comandante do Exército à ordem democrática e a agressão do STF à Constituição – anunciam tanto o fortalecimento do golpe de 2016  quanto, em sua crescente inclinação à direita, as frequentes ameaças que pesam sobre o processo eleitoral deste ano, desde cedo posto em questão.

Ou a proscrição de Lula é o preço cobrado pela casa-grande para permitir a realização de eleições?

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As jornadas de 2013, anunciadas como a “primavera brasileira”, quando reclamavam o alargamento do espaço democrático, colhem hoje o estreitamento da soberania popular, no exato ponto em que o Poder Judiciário decide, à margem do Estado democrático de Direito, quem pode e quem não pode ser candidato e formalmente retira do pleito o candidato que desponta na liderança das pesquisas de intenção de voto, jogando na orfandade seus milhões de eleitores. 

Não é séria a democracia representativa que permite que seus juízes – cujo  modelo de despreparo pode ser simbolizado pelo ministro Alexandre de Moraes e seu discurso tatibitate – ocupem o lugar que a Constituição diz pertencer ao povo.

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De uma só penada, o STF revogou duas cláusulas pétreas da Lei Maior. O parágrafo único de seu art. 1º (“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), e o exaustivamente referido Art. 5º, LVII (“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”).

E tudo permanecerá como dantes no quartel de Abrantes: o povo, assustado, muito pouco entendendo o que é escondido pelo juridiquês pernóstico, desinformado pelos ‘especialistas’ dos meios de comunicação, aguarda um sinal de suas lideranças. Mas essas parecem ainda mais atônitas.

Assim se explica a calmaria das ruas.

Na crise de 2015 ficou o governo, imobilizado, nas mãos do inexcedível Eduardo Cunha, que passou a exercer o comando da política, quando tínhamos a Presidência da República.

Em 2016, ficamos à mercê de um Congresso no qual éramos minoria, e, por fim, o destino de Lula e do PT (e por decorrência os destinos da esquerda eleitoral) foram depositados nas mãos da senhora Carmen Lúcia, que, com a competência que se viu, evitou pôr em pauta duas ações genéricas (relatadas pelo ministro Marco Aurélio) que questionam a prisão em segunda instância.

Sabe-se que essas ações teriam o voto favorável da hesitante ministra Rosa Weber. Essa manobra foi denunciada, de público, pelo irresignado ministro.

Aliás, o voto da ministra Weber é matéria que se despede do direito para cair no divã de Freud. Pronunciou-se intimamente  contra a prisão em segunda instância, mas, verificando que seus colegas eram a favor dessa interpretação, decidiu, por “colegialismo”, denegar o pedido de habeas corpus impetrado pelo ex-presidente.

 Já o ministro Barroso, arguindo como descoberta sua a teoria da mutação constitucional, conhecida pelos estudantes de primeiro ano de faculdade de Direito desde que Adão resolveu comer a maçã, invoca o direito de o Judiciário, como intérprete da lei e da Constituição, simplesmente refazer uma e outra, tarefa que o Estado de direito democrático reserva ao legislador e ao constituinte, coisa que nem ele nem seus colegas, individualmente ou como coletivo, podem ser, pois lhes falta o sopro legitimador da soberania popular.

Desancou o sabido, molhando a água do mar, “denunciou” a miséria do sistema prisional brasileiro, “descobriu” que a maioria dos presos era formada por pobres e negros, criticou o processo penal e o processo civil, criticou a lerdeza do Poder Judiciário, para, em função de descobertas cediças, afirmar que todos os males que nos afetam decorrem do texto do atacado artigo 5º, LVII, da Constituição. E que o STF, para salvar-nos, deveria dar por perempto. Por isso, o magistrado autorizava a prisão de Lula. Donde se conclui, na sua lógica de botequim, que, revogada a Constituição e Lula levado para o cadafalso, teremos instalado o céu na terra.

De nada valerá, para a sobrevivência das esquerdas brasileiras, simplesmente identificar o inimigo e atribuir-lhe os transtornos de que padecem hoje, e dos males por vir, que os mais sábios sabem ler nas nuvens.

 É fundamental e urgente avaliar, criticamente, sua estratégia simplesmente reativa, suas táticas deslocadas de projetos finais, suas alianças fraudadas. Enfim, é preciso reconhecer o fracasso político de 2016 e, a partir daí, identificar suas causas, para não repetir em 2018 os erros que nos levaram a seguidamente depender de adversários.

Mas, acima de tudo, é preciso reunir todas as forças disponíveis, desativar desavenças e disputas e apostar em um projeto de unidade na ação. Nas ruas ou afastado da campanha, livre ou encarcerado, Lula continuará como o maior ativo político das forças populares, uma liderança que só encontra similar na história de Getúlio Vargas.

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