O sentido da pátria que buscamos
O amor dos anos maduros vem do povo brasileiro, diverso, corajoso e infinito na criação. Um povo com um rasgo natural de decência que é contra até a própria necessidade, quando em estado natural de pobreza
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Nestes anos mais recentes, quando busco um significado para a pátria, mais me afasto dos chamados símbolos cívicos de patriotismo. E não tem nada a ver que me tenha tornado um antipatriota. Pelo contrário, nestes dias maduros mais tenho sido tomado pelo amor ao Brasil. Mas a que Brasil me refiro? Ao da bandeira Ordem e Progresso, ao do hino de versos obscuros, de ordem inversa na frase, que os cariocas batizaram com o nome de virudum? Não, claro. O amor ao Brasil não vem nem mesmo dos lindos rios São Francisco e Amazonas, da floresta, dos pássaros e flores únicos no mundo.
O amor dos anos maduros vem do povo brasileiro, diverso, corajoso e infinito na criação. Um povo com um rasgo natural de decência que é contra até a própria necessidade, quando em estado natural de pobreza. E de tal modo, que nós, metidos a generosos, mas que pensamos duas vezes antes do abandono ao coração, nos surpreendemos e ficamos tontos. Como a generosidade de um vendedor de graviola no Recife, que um dia eu vi oferecer o suco da fruta a uma turista e se negar a receber o pagamento. "Não, é um presente pra senhora, que não conhece o sabor da fruta".
E mais penso que o sentido da pátria vem do mais caro da infância. E sei, como todo brasileiro sabe, que a sua pátria é a amplificação da sua cidade, do seu bairro, da sua rua. A minha, em particular, vem do Recife da segunda metade do século vinte. Ou do bairro de Água Fria, subúrbio periférico, que o resto do mundo desconhece.
Penso que era do espírito do lugar e do tempo. Naqueles anos de agitação política no Recife, na onda, no mar de discussão de ideias, na tradição cultural do bairro de Água Fria, que vinha dos terreiros de xangô, como o de Pai Adão, a barbeiros filósofos, comunistas, como Luiz Beltrão, que era um popular cultivador de livros e da língua inglesa, creio que dessa reunião nasceu a gente que povoou de humanidade o Colégio Alfredo Freyre, meu querido colégio de formação.
Parece mentira. Antes dos 15 anos, nós conhecíamos os filósofos do Iluminismo que chegavam até nós nas aulas do professor de francês Arlindo Albquerque. E líamos, e passávamos pela Revolução Francesa: "Le peuple, que se croyait de plus em plus trahi, se porta em masse à l'Hotel des Invalides".... Com frequência, em suas aulas muitas vezes repetimos um mesmo texto, pois ele nos mandava ler este gozo: "Sur la liberté de la conscience". Eram anos de ditadura, sabíamos, e comentava-se, aos murmúrios, que o professor em 1964 havia sido espancado, preso, porque fizera parte da direção do Serviço Social contra o Mocambo. O texto no livro de francês vinha sempre a calhar, e era em estado de êxtase que o mestre nos fazia ler "Sobre a liberdade da consciência".
- Vejam a beleza. Repitam esta frase. O título é uma oração espiritual – e silabava em ritmo lento "sur la liberté de la conscience".
O sentido de pátria vem às vezes com um cheiro denso, perfumado, das noites em frente ao mercado público de Água Fria, quando o abacaxi trescalava, amadurecia no sereno. Era um vento que soprava no calor e trazia pra gente desejos impossíveis. De que natureza somos feitos? Que demônio ou anjo nos pôs no peito desde a infância uma carência fora dos bons costumes? Do abacaxi vinha um perfume quase entre sombras, porque a frente do mercado, que dava para a Avenida Beberibe, não era bem iluminada. E, coisa rara, nesse quase escuro não havia malefício, era um bem para a alma da gente, assim como, se comparamos mal, cheiro de namorada pela noitinha, sem o testemunho da lua.
Na frente do mercado também se apresentavam mamulengos, os espetáculos de fantoches, como a eles se referem os dicionários do sudeste. Nesse particular, o Mercado Público de Água Fria copiava a história do Mercado de São José, em que um prédio faz encontro do comércio e de manifestações culturais. E para a frente do mercado descia, lá do Alto do Pascoal, um dos maiores artistas de teatro de bonecos: Ginu, o criador do personagem O Professor Tiridá. Era um encanto para adultos e crianças. Mas além de Ginu, que ficou conhecido como O Professor Tiridá assim como Chaplin se transformara em Carlitos, além de Ginu havia uma excelência da arte da ilusão que era um senhor ventríloquo. Não sei o nome dele, mas sei que era ótimo em dar vida a um boneco negro, do tamanho de um menino, a quem ele chamava de Benedito. Hoje compreendo que veio dele a minha primeira e inesquecível lição de romancista. Os personagens têm vida, se tornam pessoas pela verdade que falam. O boneco falava, e me segue até hoje. É um sonho que não me deixa. Eu sempre pedia à minha mãe, quando ela saía: "quando voltar, traga o boneco que fala".
Mas o sentido de pátria não tem um conteúdo exclusivo, xenófobo. Outras pátrias de outras terras constroem a nossa. Assim, o gosto pela música negra dos Estados Unidos, aquela que também era ideologia, mas de outra forma, impura e de cambulhada também, de Nat King Cole, The Platters, Louis Armstrong. Aquelas canções, se não eram a pátria do socialismo, a terra prometida da fraternidade, eram de um reino onde cabiam todos os humanos, sem data na sua data, de raça mas sem raça, americana mas sem americano, vale dizer, a música que nascida naquela podre sociedade e tempo não era só daquela sociedade e tempo. Pois o que, recordava, podia superar a voz de Nat King Cole em Blue Gardenia ou Stardust? Ninguém precisava falar inglês, na arte estavam todas as línguas, todas as pátrias, todas as cores, do arregalado olho negro ao apertado amarelo.
Penso, enfim, no sentido da pátria nestes dias, neste 7 de setembro em que Lula está preso. A pátria dessa gritante injustiça não é a que buscamos. Como cantava o poeta Vinícius num verso célebre: "Pátria minha, saudades de quem te ama...".
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