O Rio racista

"O racismo não foi extirpado, a classe média prefere pisar no vizinho a se juntar a ele para melhorar de vida", escreve o jornalista

(Foto: Miguel Paiva)


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Por Miguel Paiva, do Jornalistas pela Democracia

O racismo no Brasil sempre existiu. Nunca foi abolido assim como o conceito de escravatura. Ambos resistem ao passar dos tempos num país onde a educação é sempre deixada para trás e o que há de pior nos mandamentos herdados é o que fica. O preconceito racial se junta ao social, ao de gênero e por aí vai. Por isso continuamos assistindo cenas como os assassinatos do congolês Moïse e do brasileiro Durval Filho.

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Eu, que sou branco de origem ibérica, talvez com um pouco de moro por conta da Espanha e de Portugal quando estudava no ginásio – e olha que era o colégio de Aplicação da UFRJ, exemplo de ensino moderno- era chamada pelos meus colegas de turma de disco, preto e chato. Eu devia ser chato mesmo porque não era bom de bola, não coçava o saco e não curtia papo de menino. Vivia cercado pelas meninas, fazia poesia e era gago. Difícil não sofrer bullying, mas preto eu não era e assim mesmo era considerado. Era moreno, como sou até hoje e minha pele se bronzeia muito facilmente. Mas daí a ser chamado de preto era um exagero por parte dos colegas preconceituosos e pra mim não significava nada porque de fato eu não carregava nenhuma herança africana mais próxima. 

Meu pai, mais moro do que eu, não conseguia esconder um preconceito herdado do meu avô, desembargador e fazendeiro gaúcho. Ai, exigir um posicionamento democrático é também um exagero. Meu avô se vestia com terno de lã e colete para ir ao centro de Porto Alegre todos os dias. Usava chapéu e ouvia a Rádio Belgrano de Buenos Aires. Quando fui à Argentina com meu pai, a primeira coisa que fez foi se ajoelhar no gramado que cerca o obelisco da Avenida Nove de Julho e provar do pasto de lá. Ficou convencido como fazendeiro (não era nem rico) que o pasto daquele lado do Rio de la Plata era muito mais saboroso. Pois é, essa era a minha origem, muita mais oligarca que africana e assim mesmo eu era o disco, preto e chato.

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Passei ao largo desses exemplos de racismo estrutural durante toda a minha infância e juventude, mas a gente não percebia direito o que significava. Morava num bairro em que a favela se misturava com as casas e os prédios. A lotação para Copacabana que eu pegava com minha mãe para ir visitar minha avó parava na favela da Catacumba, na beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, em plena zona sul e no transporte subiam pessoas dos mais variados tipos. Minha mãe continuava impávida sem esboçar a menor estranheza. Era a vida no Rio de Janeiro e sobretudo ali na Fonte da Saudade e Lagoa. Hoje, utilizar o transporte público no Rio é um risco de vida. Quase todos os dias vemos cenas de passageiros se escondendo durante tiroteios no trajeto. 

Ainda criança vi o incêndio da praia do Pinto e os primeiros gestos para expulsar os pobres da área dos ricos. Vi a própria favela da Catacumba dar lugar a moradias para ricos. Algumas favelas resistiram a este ímpeto e faltou educação e ocupação social do estado, salvo no período do Brizola, para que essa experiência de convívio se tornasse única.  Hoje os pobres são mantidos forçadamente longe, mas eles justamente vêm, querem frequentar a praia porque não têm o que fazer onde moram. Estão abandonados. 

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O racismo não foi extirpado, a classe média prefere pisar no vizinho a se juntar a ele para melhorar de vida. Com isso assistimos à essas cenas de violência absurda e sempre contra negros, mais ou menos pobres. A carne mais barata do mercado é a carne negra, já cantava a saudosa Elza Soares. É verdade. Os brancos que matam negam isso, mas está lá dentro. É atávico. Vai ser difícil mudar, melhorar enquanto o país seguir entregue a essa gente violenta e cruel. Vamos voltar logo para a democracia plena para que as pessoas possam aproveitar novamente essa cidade tão linda e tão violenta e disco seja o da Elza na vitrola.

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