O que o Brasil quer de seus militares?

A elite de nossa corporação armada fez como se a queda do Muro de Berlim nada significasse em sua estratégia de atuação e para os valores básicos que a orientam

(Foto: Ricardo Moraes/Reuters)


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(Publicado no site A Terra é Redonda)

O exercício reflexivo e autorreflexivo necessário à superação da tentativa de golpe de 8 de janeiro passa por uma pergunta crucial: o que o Brasil quer de seus militares? Até aqui, e desde 1985, o país fortaleceu sua democracia – não apenas sem acertar as contas com os crimes cometidos por representantes do Estado durante a ditadura, mas, sobretudo, sem jamais entrar no mérito daquilo que os mais expressivos comandos militares pensam, como se as bases político-culturais da formação e da atuação dos militares fossem assunto corporativo interno. O problema é que essa autonomia pesa como espada de Dâmocles sobre a sociedade. [Segundo a lenda grega, Dâmocles era um conselheiro que cobiçava o lugar do rei – que um dia o cedeu. Dâmocles observou então que sobre o assento real pairava permanentemente uma espada.]

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A questão central se inverte e recebe formulação ameaçadora: o que os militares querem do Brasil?

A pergunta é impertinente e absurda numa democracia, mas é radicalmente legitimada pelos comandos militares. Sua resposta não se limita à ideia de que todos queremos um país soberano, próspero, cada vez menos desigual e democrático. Inúmeros seminários, declarações e lives realizadas durante a pandemia mostram que os comandos militares mais próximos ao Palácio do Planalto difundiram uma visão alucinada de mundo, que as redes sociais amplificaram e que não seria tão grave se não viesse da burocracia armada que tem como função constitucional defender o país.

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Mas defender o país contra o quê? Por incrível que pareça, a mais importante inspiração do comando militar que esteve junto ao Palácio do Planalto nos últimos anos para responder a esta pergunta é um conjunto de trabalhos do general Golbery do Couto e Silva, publicados nos anos 1950, cuja ideia básica é que, no mundo posterior à Segunda Guerra Mundial, as fronteiras físicas foram substituídas por fronteiras ideológicas. Por essa concepção, a missão da burocracia armada não é tanto proteger o país de invasões externas, mas sim de guardá-lo contra um inimigo interno que acabou se materializando, após o golpe de 1964, nas organizações de resistência à ditadura. Nessa narrativa, tortura, assassinatos, sequestros e outras formas de violência amplamente documentadas justificam-se pela missão cívica de impedir a vitória do comunismo.

Grandes corporações só perduram no tempo se forem capazes de perceber as mudanças nos ambientes em que atuam. Mas a elite de nossa corporação armada fez como se a queda do Muro de Berlim nada significasse em sua estratégia de atuação e para os valores básicos que a orientam.

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O inimigo continua sendo interno. O delírio de que paira sobre o país uma ameaça comunista no início da terceira década do século XXI não é um puro produto das redes sociais. É uma ideia que a direção da burocracia militar não cessou de propagar, seja quando insistia em comemorar o golpe de 1964 seja em declarações cotidianas. Os acampamentos em frente aos quartéis foram admitidos por fortalecerem essa fantasia com a qual a elite militar brasileira, ao menos a que esteve junto ao Palácio do Planalto nos últimos anos, se identifica.

E isso não foi objeto de debate público em que essas fantasias pudessem receber algum teste de realidade. Ao contrário, formou-se, por meio das redes sociais, o que a professora Zeynep Tufekci, da Universidade Columbia, chama de “esfera pública oculta”, em que a visão conspirativa de mundo se espalha, mas sob a forma de bolhas de pertencimento, o que impede que ela se submeta a qualquer forma sensata de verificação empírica e, muito menos, de discussão pública e aberta.

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Mas, nos dias de hoje, o maior inimigo interno, além desse fantasma comunista, é a sustentabilidade. Quem o afirma é o general, e agora senador, Hamilton Mourão. Em Webinar realizado por ocasião dos duzentos anos da independência, no dia 25 de agosto de 2021, no Instituto General Villas Bôas, ele explicava: “neste século XXI, uma das maiores questões que ameaçam a soberania é a sustentabilidade. Dessa forma, a questão do desenvolvimento da Amazônia, onde diversos atores não estatais limitam nossa soberania, é algo que tem que se abraçado pela nação como um todo”. Ao comunismo somam-se, como inimigos internos, os ativistas, os cientistas e os empreendedores que defendem a floresta e os povos que nela vivem.

Já o general Augusto Heleno, na audiência pública sobre o Fundo Clima, convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, no STF, pontificava, em 2020: “As razões do aquecimento são discutidas por cientistas famosos com teses antagônicas”.

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Estes não são casos isolados: ainda em 2021, em conversa com o Instituto Defesa & Segurança, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva criticava os “governos submissos” que comprometeram a soberania nacional, particularmente em áreas de fronteira, por terem promovido a demarcação e assinado a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas”.

Estes desvarios estão fortemente relacionados às prioridades que o comando da burocracia militar estabeleceu, juntamente com o Palácio do Planalto e parte significativa do Parlamento, para a maior floresta tropical do mundo: legalizar o que o bom senso e a democracia tornaram ilegal (invadir territórios indígenas, fortalecer o garimpo, extrair madeira ilegalmente e grilar de terras públicas) e impedir o fortalecimento das organizações e das atividades ligadas ao desenvolvimento sustentável. Paralisar o Fundo Amazônia e denunciar o multilateralismo democrático são expressões desse desatino que fez do Brasil um pária global.

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É claro que as pessoas têm o direito de acreditar no que quiserem. O que não é admissível é que as ideias e as bases político-culturais da formação e da atuação de um corpo burocrático tão importante e custoso sejam tratadas como um tema de interesse interno, inacessível e insensível ao debate democrático. O 8 de Janeiro não irá para o passado enquanto o Brasil não discutir ampla e abertamente os valores ético-normativos que norteiam a burocracia militar.

Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

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Publicado originalmente na revista Piauí.

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