O que nos faz estremecer

Reflexões a partir dos livros de Vladimir Safatle e de José Henrique Bortoluci

Pessoas caminham em rua de Berlim, na Alemanha
Pessoas caminham em rua de Berlim, na Alemanha (Foto: REUTERS/Wolfgang Rattay)


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(Publicado no site A Terra é Redonda)

Viajei à bela e sereníssima Montevideo com planos hedonistas, mas uma gripe medonha os embargou. Surpreendentemente, as circunstâncias negativas terminaram por me proporcionar uma semana de grande prazer e aprendizado. Frio e febre reduziram os programas à leitura e eu tive o privilégio de me dedicar a dois livros extraordinários. Foi o acaso que reuniu no mesmo momento de concentração forçada duas obras distantes no estilo, nos propósitos e nos temas abordados: Em um com o impulso, de Vladimir Safatle, e O que é meu, de José Henrique Bortoluci. Entretanto, se a escolha foi fortuita, arbitrária a priori, mostrou-se motivada, a posteriori. Pensar suas possíveis conexões, colocá-las em diálogo, foi o efeito inesperado do convívio com criações tão diferentes quanto brilhantes, sofisticadas, inquietantes, inspiradoras e parecidas na capacidade de mobilizar afetos e o desejo de refletir.

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1.

Em um com o impulso, experiência estética e emancipação social, publicado pela Autêntica, em 2022, é o primeiro volume – ou bloco, como prefere o autor Vladimir Safatle – de um magnífico tour de force que explora as constelações culturais da Europa ocidental. Como sugere o título, o trabalho não se esgota na genealogia da reflexão sobre estética – com foco não exclusivo na música. Sua matéria também é, desde o princípio e por princípio, a filosofia política, e vai além, na medida em que as questões são também epistemológicas, sociológicas, antropológicas, assim como atinentes à filosofia da linguagem e à psicanálise.

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Vladimir Safatle nos serve uma ceia generosa e pantagruélica, na qual a paradoxal delícia que nos seduz (venenoremédio) é a permanente desestabilização a que somos submetidos no mar revolto de seu texto, cuja trama é passional e rigorosa, fulgurante e seca, alusiva e direta, encantadora e inquietante, propositalmente aberta e inconclusiva, embora precisa e consistente. Em cada capítulo se combinam rigor conceitual, erudição (não como exercício exibicionista de conhecimento enciclopédico, mas como prática respeitosa ao esforço humano crítico acumulado) e compromisso seja com a radicalidade estética, construtiva e expressiva, seja com a radicalidade política da emancipação social. Não poderia haver herdeiro mais fiel a Adorno, dialeticamente infiel sempre que a fidelidade trai a radicalidade do percurso.

Ouso, aqui, uma declaração talvez leviana, estritamente anedótica e, portanto, nesse sentido, subjetiva e pessoal: terminei a leitura sentindo a alma lavada, como se Vladimir Safatle tivesse cumprido por mim e por minha geração – sendo tão mais jovem que nós – o dever de manter de pé (ou reerguer) as bandeiras que, logo após 1968, constituíram as grandes motivações políticas (e éticas) de minha vida (e das vidas de tantos e tantas com quem me identificava e ainda me identifico): as lutas contra a ditadura e em defesa da vanguarda estética que se nutriam do repúdio à exploração capitalista, à reificação das relações sociais alienadas, e ao populismo mimético dos realismos socialistas de todos os tipos.

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Populismo que transigia com o patriarcalismo, o racismo e os autoritarismos das mais diversas extrações, e também com as soluções estéticas que reproduziam, na linguagem, a gramática de afetos e esquemas formais herdados inconscientemente. Por realismo socialista me refiro às construções clichê e ao veto à “expressão”, entendida como a ruptura que abre a linguagem às manifestações selvagens da alteridade radical que a categoria “sublime” mais evoca do que nomeia e conceitua, manifestações que deslocam o sujeito (do lugar de coincidência consigo mesmo, isto é, do conforto apaziguado da consciência, senhor da razão e do sentido), assim como descentra o “princípio de realidade”, critério regente do contrato social naturalizado.

Em um com o impulso lavou minha alma também por um segundo motivo, complementar ao primeiro. Se, por um lado, ao criticar a instrumentalização da arte, o autor retoma a tradição da vanguarda, por assim dizer, preservando, atualizando, expandindo e intensificando o compromisso com a radicalidade investida na arte, estuário de uma autonomia que precisa entretanto ser qualificada, por outro lado, rechaça o equívoco simétrico inverso: a reificação da autonomia, seja sob a forma idealizada -a arte pela arte, a arte absoluta, refratária a contextos históricos e indiferente a perspectivas (ou melhor, ao impulso) de reconfiguração estrutural das relações sociais –, seja sob a forma de integração mercantilizada. Ambas as formas terminam por constituir apenas duas faces da mesma moeda -e a palavra aqui não é arbitrária.

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Os processos combinados e desiguais de modernização sob hegemonia burguesa, que ganha tração com a celeridade avassaladora do desenvolvimento capitalista (predatório e colonizador), instauram, em paralelo (e articuladamente) às dinâmicas de individuação e urbanização, o regime da diferenciação entre as esferas da vida social, as quais progressivamente se autonomizam e especializam, formando, separando e hierarquizando saberes, poderes, experiências, formas de vida, tipos de linguagem, identidades e modalidades de subjetivação. Como é o caso com frequência no ambiente tóxico e nebuloso do capitalismo, que escraviza e mutila corpo e espírito, precipitam-se saltos adiante, laterais e regressivos (se me é permitida a precária metáfora espacial). O custo da relativa autonomia concedida à construção estética – concedida, mas também conquistada, na dialética frenética entre liberdade e controle – será sua cooptação, e, por consequência, a neutralização de seu efeito potencial de revolucionar a sensibilidade popular, tornando-a suscetível ao estremecimento (que não é catarse nem epifania reconciliadora). A categoria, empregada por Paulo Arantes, justificadamente citada e reiterada por Vladimir Safatle, corresponde a uma espécie de prenúncio ou evocação, intuição ou protoimaginação daquilo que talvez se pudesse denominar horizonte da emancipação social.

Vale, nesse ponto, uma pausa. Mencionei a radicalidade, então cabe indagar: onde está plantada essa raiz?, em que solo?, se não apostamos em substratos essencialistas, em pilares teológicos ou em fundamentos egóicos, subjetivos, mas tampouco numa suposta realidade histórica objetificada, como suporte mimético para o conteúdo de verdade de uma obra de arte, o que nos resta? Aqui, mais uma volta do parafuso. Vejamos: o conceito de autonomia associado à ilustração ganha contornos de pretensiosa maturidade antropológica no limiar da revolução burguesa e se vincula à figura da liberdade na imagem rousseauísta do legisladorde-si.

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O eu dono de si, postado sobre os pilares da razão, é legislador e juiz, regente de seu destino, desde que reconheça seus limites enquanto ser da heteronomia, para quem a autonomia só pode ser ideal, ideia da razão, guia indireta de suas ações pela mediação dos imperativos categóricos. Mas antes de alcançar com Kant o estatuto de apanágio do sujeito moral, regido por imperativos categóricos – uma derivação da ideia de si da razão (apartada de contingências, paixões e interesses), aplicada ao mundo material, eminentemente heterônomo –, a representação da liberdade era jurídico-política, compunha um dueto com a norma ou o limite.

Dar-se a lei e obedecer somente às determinações ditadas pelo próprio juízo, árbitro do código jurídico por meio do qual o indivíduo exerceria o poder sobre si: eis o modelo jurídico com que Rousseau formulava sua utopia. A constelação reflexiva, valorativa e estética que Vladimir Safatle identifica com o romantismo, em sua complexidade, em suas inumeráveis variações, teria aberto caminho, por alguns de seus atalhos, para possibilidades mais ousadas, desgarrando as figurações da liberdade dos registros jurídicos ou legisferantes.

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Sobretudo na música, Vladimir Safatle vislumbra a audácia criativa e transgressora que inscreve no campo das práticas e da sensibilidade social alteridades revolucionárias, que correspondem a excessos resistentes à integração em sistemas assimilados e consagrados, excedentes que reestruturam o jogo da forma e do sentido, subvertendo as linguagens até então legítimas, sem renunciar à forma, à linguagem, à estrutura.

Tal movimento limite, que é negatividade, mas também afirmação, recoloca as condições para a recepção e a produção, inaugura princípios construtivos e estabelece surpreendente sintonia entre alterações estéticas e metamorfoses nas formas de vida, inscrevendo na arte a palpitação prospectiva da vontade coletiva de mudança – devolvendo, ao desejo político, investimento libidinal e energia imaginativa. Daí a pertinência da categoria “estremecimento”. Tratar-se-ia da sintonia com o deslocamento de placas tectônicas da vida social. Deslocamento que libera energia. Sintonia, portanto, por contiguidade – sendo, nesse caso, a alusão à metonímia apenas uma metáfora.

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A alteridade que rasga e emerge na arte, revirando, como eventos e singularidades, seu mundo de ponta cabeça, exigindo a cada impulsão novas categorias críticas, não pode ser domesticada e reduzida a encarnações particulares de um pretenso espírito humano universal. Abre-se o espaço para inquirir o inumano, o monstruoso e a profusão de assombros que abalam impérios (subjetivos, imaginários, objetivos, intelectuais etc.). Limites e fronteiras borrados e violados, lá se vão para o espaço percepções da natureza – e práticas correspondentes – com base nas quais edificamos o que denominamos civilização.

É preciso observar que não são essas teses que abrem as portas do inferno. Elas foram abertas pela barbárie que se impôs a nós como segunda natureza, abolindo o futuro em nome da perpetuação da ordem capitalista.

2.

O segundo livro tem o aspecto despretensioso de um breve registro biográfico, montado a partir de relatos memorialísticos de seu pai, caminhoneiro, que atravessou o país de norte a sul, leste a oeste, desde os anos 1960, recordações condensadas e comentadas pelo autor. Engana-se quem subestimar esta obra única e preciosa. Não hesitaria em defini-la como um experimento estético-reflexivo simplesmente magistral. Refiro-me a O que é meu, de José Henrique Boltoluci, publicado em 2023 pela editora Fósforo.

Se me coubesse sugerir um livro, apenas um, a um estrangeiro curioso sobre o Brasil, indicaria este, e o recomendaria também a nós, brasileiros e brasileiras, leigos, professores, pesquisadores, neófitos ou doutores. A uns, para descobrir, aos demais para redescobrir nosso país. Leitores tarimbados talvez suponham que as narrativas os reenviem ao déjá-vue: estradas e florestas desbravadas, o sertanejo é sobretudo um forte, pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são, a catilinária com os jargões bolorentos de sempre. Nada disso.

O que José Henrique Bortoluci nos propõe é um desafio monstruoso, para recorrer ao adjetivo que Vladimir Saflatle nos ensina e autoriza a empregar. Porque na pista de “O que é meu” – são as histórias, a memória, o acervo de afetos e valores que encerram uma vida, e ela são tantas – encontramos os rastros da construção do Brasil, que é também e ao mesmo tempo sua desvastação, idas e vindas cruzadas sobre as mesmas pegadas, lastro sem lustro no imenso território alagado, o lamaçal gigantesco e intransponível, os rios oceânicos, a solidão absoluta nas trevas, a malária, a violência, a espoliação da terra e do trabalho humano, a arrogância destrutiva dos mega-projetos da ditadura, a ganância feroz dos grileiros, latifundiários, senhores e coronéis, madeireiros, garimpeiros, movendo adiante as frentes de expansão para consolidar o capitalismo autoritário que Otavio Velho flagrou como ninguém há 50 anos, a guerra brutal e sem trégua contra as sociedades originárias e o meio ambiente, a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, a Serra do Mar.

Por outro lado, o império tirânico da natureza, a soberania das forças tectônicas com as quais o pequeno trabalhador duela, sem armas mais poderosas que a solidariedade de classe. Duela no terreno, percorrendo distâncias incalculáveis nas mais precárias condições, e duela no interior do próprio corpo do pai, invadido e devastado pelo câncer, a multiplicação irrefreável das células, o ímpeto incontrolável da vida que mutila, deforma, aniquila e mata.

Excessos nas violações de direitos elementares jamais reconhecidos e respeitados (excessos ainda mais extremos quando suas vítimas são negras), excessos na liquidação irresponsável e suicida do tesouro biodiverso, dia a dia vilipendiado, excessos na emergência do avesso da vida em órgãos vitais, a via crucis do corpo. Simultaneamente, excesso na vastidão, na beleza, nas potencialidades reverenciadas, na coragem, na dedicação comovente e sobre-humana ao trabalho, no esforço titânico para voltar, lançando-se sempre adiante, para mais longe, estendendo os limites das cartografias, reimaginando, tangenciando e memorizando novos contornos nacionais, novos relevos tatuados no corpo por acidentes e confrontos.

O incessante movimento centrífugo, em cada pequena astúcia, cada detalhe saboroso, cada encontro aterrorizante, cada cena emocionante, revela-se a contrapartida da vocação centrípeta do viajante, que, indo embora, despedindo-se da esposa e dos dois filhos, apenas prepara a volta ao lar, numa odisseia universal e pessoal, brasileira e doméstica, como toda grande mitologia e toda boa literatura. A História com letra maiúscula se mescla com a história minúscula de indivíduos, membros exemplares da classe trabalhadora, que expele alguns dos seus para a degradação física e moral, e outros, poucos, para o doutorado no exterior e a consagração acadêmica. Nesse caso, representante legítimo de sua linhagem, José Henrique Bortoluci foi fiel aos valores que tornaram sua trajetória ascendente um empreendimento coletivo, obra de uma família e de uma classe, alcançando sua consciência crítica, reflexiva ética e política pela mediação do talento genial de um filho.

O que é meu divide com seus leitores o patrimônio imaterial do conhecimento e dos afetos que transcendem limites e fronteiras, propriedades e geografias, personalidades e idiossincrasias. Mostra sem alarde, mas com nitidez e acuidade, por que se abriu um abismo entre partidos políticos e porta-vozes ilustrados das esquerdas e a massa trabalhadora. Desnuda alguns dos motivos que esterilizaram a sensibilidade política popular e envenenaram o imaginário moral da sociedade, desbravando o terreno para o avanço dos neofascismos, no vácuo da indiferença e do descrédito de bandeiras e lideranças soi-disant progressistas.

A sensação que a leitura dessa obra prima provocou em mim, eu a resumiria nos seguintes termos: Que cesse tudo o que a antiga Musa canta; ouçamos menos os ecos de nossas próprias vozes sapientíssimas e mais o que a classe trabalhadora espoliada tem a dizer, julgando menos, compreendendo mais. E façamos de vez o luto pelo culto letal ao progresso, essa revolução-passiva que nada mais é que o arrastado cortejo da acumulação primitiva capitalista rumo a escalas crescentemente selvagens. Sepultemos as ilusões que ainda atam segmentos expressivos das esquerdas a mitologias do desenvolvimento capitalista, miragens peremptas e malignas, que estiveram a serviço da devastação, em todas as dimensões: humanas, sociais e naturais.

Evidentemente, mantendo a lucidez e, portanto, a consciência de que o oposto do progresso capitalista, imantado no imaginário político brasileiro, não é a regressão obscurantista. O oposto desejável seriam modos novos de reduzir o sofrimento evitável, aproveitando todas as conquistas humanas no plano do saber e da tecnologia, fazendo justiça e aperfeiçoando a vida coletiva, conferindo absoluta prioridade aos direitos elementares do povo trabalhador, no campo e nas cidades. Um pós-capitalismo que tivesse aprendido as lições de todas as derrotas socialistas, em vez do anjo benjaminiano, lançado de costas para a frente pelos ventos furiosos da história, contemplando as ruínas que se acumulam. Mas atenção: essas conclusões são de minha exclusiva responsabilidade -não posso culpar o autor pela ingenuidade que elas exalam.

3.

Há ainda uma questão importante a tratar. Vladimir Safatle não se deixa ludibriar por visões reificadoras do par natureza-cultura, forjado seja em clave racionalistaidealista, seja por um imanentismo que bloqueie a reintrodução do tema da liberdade por viés dialético – mesmo negativa, de inspiração adorniana. Quando rasura a figura do eu e seu domínio, na moralidade, na política e na estética, vê-se diante do desafio de pensar o social e a natureza recorrendo a outras mediações que não são nem irracionais, nem metafísicas.

Concentra-se na categoria “expressão”, como salientei acima. Brota aí o espaço para o que, em sua obra, não será o espírito humano, nem o esquematismo (antropológico ou transcendental), nem serão vitalismos (imanentes) que dissipam o problema sob a aparência de resolver o impasse – e terminam por, permitam-me a fórmula esquiva: naturalizar a natureza o que equivale, paradoxalmente, a idealizar o idealismo, numa metafísica de segundo grau, reino da metalinguagem. O ponto de fuga em que se inscreve a prática (a obra, a arte, a disparada – o ato, o grão do gesto, o impulso –, irreconciliável, para a reconfiguração estrutural das relações sociais) remete ao sujeito deslocado de si que se inscreve na linguagem, mas sempre escapa como Outro (não estando, ali, onde entretanto se atualiza).

Todavia, o sujeito se agita e se enreda com as operações (des)construtivas da linguagem, em horizonte histórico, material e politicamente determinado. Assim – foi o que depreendi –, Lacan dialoga com o espectro de Marx, graças ao apoio de Adorno, salvando do inferno benjaminiano -isto, é dos escombros- o legado ocidental criativo, revolucionário, filosófico e estético (sob constante ameaça de máculas coloniais).

A obra de José Henrique Bortoluci adiciona um problema difícil: embora destroçada pelo expansionismo capitalista, a natureza não é apenas reduto de riqueza, abundância, formas extraordinárias de inteligência, ensinamentos, potencialidades virtuosas, signo de vida, saúde, energia e agregação. É também morte. A ditadura civil-militar, sem pejo, chamava a Amazônia de “inferno verde”. Nomeá-la justificava o tratamento que se lhe conferia. Conquistar, submeter suas forças ao cativeiro, essa a tarefa histórica que caberia à civilização brasileira. Extirpar o mal pela raiz, apagar o inferno da face da terra. Ou a nação, ou a floresta. Ou a sociedade, ou a natureza indomável. Não é preciso insistir no que implicou essa forma de definir a tratar a natureza.

Pois O que é meu elabora com refinamento outra figura do excesso, que não é a revolução musical, estética ou política, mas o câncer indomável, a autopoeisis que desfigura, tortura, corrói e mata, impiedosamente. A morte repõe o dualismo, dialetizado ou não, e, de certo modo, inverte a direção dos questionamentos que, na obra de Vladimir Safatle, atribuíam validade à perspectiva inumana ou pós-antropocêntrica.

Em alguma medida, me parece que há um limite, ditado pelo compromisso (afetivo) com a vida do Outro – não só do Outro humano, admito, mas é inegável a centralidade do humano para o sujeito enlaçado não só em linguagem, mas em nexos sociais primários, nexos que são de sentido, mas também de gratidão, lealdade e amor (por que não pronunciar essa palavra?). Compromisso que alcança a esfera da moralidade e da política. O engate amoroso circunscreve movimentos naturais e qualifica o trânsito dos fluxos do devir. Contínuo e descontínuo, categorias matriciais para a antropologia e a filosofia, retornam à cena, como se volta à casa do pai e da mãe. Não foi o próprio Vladimir Safatle quem falou na origem como destino?

O pai de José Henrique luta pela vida, ao lado dos dois filhos e da esposa, ante a comoção solidária de leitores e leitoras. O Brasil resiste ao fascismo e à devastação.

Mas as doenças são ferozes. E os prenúncios do fim também nos fazem estremecer.

Referências

Vladimir Safatle. Em um com o impulso: experiência estética e emancipação social. Belo Horizonte, Autêntica, 2022, 240 págs.

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