O que morrerá com o general Villas Bôas?
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O livro do general Villas Boas, coordenado por Celso Castro, recua até sua infância e perpassa por toda a formação militar de uma geração de oficiais. De cadete a general de quatro estrelas e, enfim, comandante do Exército, ele descreve, focado em sua carreira, as transformações por que passou a Força desde a redemocratização. Nesse sentido, é um testemunho histórico do esforço de profissionalização dos militares, depois da ditadura e cobrindo as relações com os sucessivos presidentes, de valor incalculável.
Para quem, como eu, não conhece as entranhas dos quartéis - talvez intuídas entre esquerdistas e progressistas apenas pelo rancor do golpe de 64 e da ditadura -, é um testemunho importante do que acontece hoje no meio militar em termos de conhecimentos do que ocorre ali, hoje, em termos profissionais e de delimitação do espaço entre militares e civis. Os contornos ideológicos do pensamento do general apontam, por exemplo, para o afastamento definitivo do risco de um golpe militar ideológico no Brasil. E param por aí.
A questão central, a evolução da ideologia militar nas últimas três décadas, depois da Guerra Fria, não fica clara. Há demandas específicas dos militares, não atendidas pela esfera política, que são mais do que justificadas: a ausência de um claro projeto nacional apontando para onde o país quer ir nesse momento de reordenamento do mundo. Há queixas pontuais deles, como a demarcação contínua de Raposa Serra do Sol, sem que tenham sido ouvidos, embora se acreditem, creio que com razão, os principais conhecedores daquela área.
Entretanto, naquilo que se refere ao meu campo de conhecimento, a economia, os poucos palpites que o general dá são precaríssimos. Não entendeu a política fiscal do governo Fernando Henrique, que atingiu profundamente seus orçamentos, como expressão do domínio sobre nós da hegemonia norte-americana expressa pelo neoliberalismo e pelo consenso de Washington. Naturalizou-a como fruto de austeridade e responsabilidade governamental, e não da extensão do domínio sobre nós da geopolítica americana na área econômica.
Também não entendeu o oposto disso, numa digressão sobre nossa história econômica. Entre 1930 e 1980, disse, tivemos um grande sucesso econômico. Daí em diante, a estagnação. Desconheceu que, nesse período e em 2010, tivemos altas taxas de crescimento. E isso justamente porque, nos governos de Getúlio, de JK e na ditadura, não nos submetemos ao liberalismo econômico; e no intervalo de 2009 e 2010, o governo Lula, passando por cima da crise financeira de 2008, suspendeu a política neoliberal que hoje nos escraviza.
Além disso, o general esquece que, mesmo no governo militar, o sucesso em termos de crescimento só aparece depois que o liberal Roberto Campos deixa o governo e entra Delfim Netto, intervencionista, em fins dos 60. Em termos econômicos, podemos dizer que a economia ignora a política, se é ditadura ou democracia. Por isso é justo considerar que, nas entrelinhas do general Villas Boas, estão expressas uma insuficiência de formação econômica de nossos oficiais e uma submissão clara à geopolítica econômica norte-americana.
Não só isso. Em política, e especialmente em relação às últimas eleições presidenciais em que foi um aberto cabo eleitoral de Bolsonaro, Villas Boas emite conceitos que seriam assimiláveis pelo últimos dos grandes nacionalistas brasileiros, o senador Roberto Requião. Num trecho diz, evocando o inequívoco sucesso econômico da China: “A meu ver esse processo foi alavancado pela visão de futuro, disciplina social, o interesse coletivo prevalecendo sobre o individual e o sentido de projeto, tanto global como setorial.”
Como conciliar isso com o ódio da família Bolsonaro à China, ao ponto de atrapalhar e atrasar o programa de vacinação contra a Covid, custando milhares de vidas de brasileiros?
Noutro trecho, cita André Roberto Martins, geógrafo brasileiro: “Nenhuma potência consegue se afirmar sem uma ideologia definidora de sua posição no mundo”. Como conciliar isso com a posição geopolítica subalterna de Bolsonaro e outros militares aos Estados Unidos, ao ponto de pretender fazer guerra contra a Venezuela para empossar um impostor a fim de atender aos propósitos golpistas de Washington? Nessa questão, saúdo outros militares do Planalto por se oporem à aventura, talvez por medo de atrair a Rússia para o conflito.
Enfim, outro trecho: “estamos carentes de valores universais, que igualem as pessoas pela condição humana, acima da classificação aleatória que se lhes atribui”. Como conciliar essa posição do general em relação aos ambientalistas, e, em sua única citação de um ministro civil no governo Bolsonaro, Ricardo Salles, apontá-lo como exemplar na política ambiental? Desculpo-o, porque até então, no início deste ano, não era claro que um inquérito da Polícia Federal viesse a apontar indícios fortes de que Salles é um ladrão do meio ambiente!
O entrevistador recordou que, no dia da posse, Bolsonaro dirigiu-se a Villas Boas, na fila de cumprimentos, dizendo para todos ouvirem que, se não fosse por ele, não estaria ali. Ou seja, não ganharia as eleições, conforme todos entenderam. Mas Bolsonaro acrescentou: “O que a gente conversou morrerá entre nós”. O entrevistador perguntou: O que conversaram? E o general Villas Boas Corrêa, ex-comandante do Exército, negando que se tratava de uma conspiração, respondeu simplesmente: “Morrerá entre nós!”
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