O que é ideologia? Conceito em Gramsci e Marx
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Antônio Gramsci é muito citado nas discussões de hegemonia, bloco histórico, Estado, luta de classes. Mas, raramente, uma das partes mais fecundas do seu trabalho, a discussão sobre ideologia, é citada, discutida, ou ensinada. No livro inicialmente publicado no Brasil como “Concepção dialética da história”, e hoje encontrado no volume 1, dos cadernos do Cárcere, como “Introdução ao estudo da filosofia”, Gramsci trabalha questões metodológicas muito importantes para o estudo de Marx. Entre estas questões, destacamos, a preocupação de não tentar popularizar o marxismo “vulgarizando-o”, ou seja, rebaixando-o de uma concepção dialética do mundo para uma concepção mecanicista (podemos comparar esta preocupação ao alerta que Lênin fazia de que os operários não eram crianças, e que não devíamos rebaixar a dialética para fazê-la compreensível). Pode-se dizer que ambos têm uma concepção semelhante, a de elevar o nível cultural das massas, em lugar de rebaixar o marxismo para o fazer “inteligível”.
Nosso objetivo neste material não é fazer uma resenha do livro, antes apenas alguns apontamentos didáticos para uma abordagem inicial do que seria “ideologia” para um marxista. A primeira coisa a ressaltar é que o homem, para os marxistas, é um processo imanentista. Só que, ao contrário do imanentismo cristão, que faz derivar a humanidade de uma sacralidade do homem, e para isto faz mister uma re-ligação, uma religião para romper com a “alienação” (sim, pasmem, o termo “alienação”, a nós tão caro, tem início na religião), Marx e todos os marxistas descobre a humanidade na práxis, no trabalho:
¨O pressuposto de toda história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. ¨o primeiro fato a considerar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio desta, sua relação dada com o restante da natureza. Naturalmente não podemos abordar aqui, nem a constituição física dos homens, nem as condições naturais, geológicas, orohidrográficas, climáticas e outras condições já encontradas pelos homens. Toda historiografia deve partir destes fundamentos naturais e de sua modificação pela ação dos homens no decorrer da história. Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado pela sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelos quais os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais da sua produção. (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, pp. 87-88, Boitempo, São Paulo, 2007, tradução de Ruben Enderle, Nélson Scheneider e Luciano Cavini Martorano).
Gramsci compreende esta relação intrínseca da práxis. A prática cega inexiste, todo trabalho é elaborado por uma “prévia-ideação”. Como diria Marx, o fazer da mais zelosa abelha não tem o intuito racional, abstrato do trabalho humano do mais bruto artesão. Assim, a consciência também é um processo social derivado da práxis, ela mesmo é práxis social (não um mero reflexo passivo). Assim, todo trabalho, por mais braçal que seja, tem sempre um quantum de abstração e ideação. A separação entre trabalho material e trabalho intelectual, tão desenvolvida no capitalismo, nunca é absoluta, seja porque todo trabalho manual é, sempre, intelectual também, sendo porque, a tão propalada independência e neutralidade dos intelectuais é uma ilusão, a consciência é também um processo social e material, sendo um processo derivado de uma sociedade de classes ele é um processo parcial e classista também, nunca imparcial ou “isento”.
“O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados, que são ativos na produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica tem de provar, em cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais de vida, independentemente de seu arbítrio. A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparece, aqui, como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo vale para o processo de produção espiritual, tal como ele se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência (Bewuststsein) não podia jamais ser outra coisa senão o ser consciente (bewust Sein), e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo, como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina de seu processo imediato físico”. (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, pp. 87-88, Boitempo, São Paulo, 2007, tradução de Ruben Enderle, Nélson Scheneider e Luciano Cavini Martorano).
Assim, já podemos avançar para duas discussões importantes de Marx em Gramsci. A primeira sobre a ideologia como superestrutura. A estrutura material é que determina, “em última instância” (guardem esta ÚLTIMA INSTÂNCIA) a vida espiritual. Como marxista, como materialista, como monista, Gramsci parte dos mesmos pressupostos de Marx de que a vida material é que determina a consciência. Mas, como dialético, Gramsci observa que esta vida espiritual tem determinações próprias e autônomas, a vida espiritual, as superestruturas, são, em última instância, também criações materiais e sociais. Assim, nas determinações dialéticas do todo contraditório, os opostos trocam incessantemente de lugar, como acaso e necessidade. A política é determinada em “última instância” pela economia. Mas as decisões políticas também mudam o rumo econômico, assim como o direito e reflexo teórico da vida econômica, mas suas restrições coercitivas também tem impacto econômico e podem influenciar na vida econômica. Este entendimento de uma certa autonomia das instâncias da superestrutura oxigena o marxismo, de um lado faz o alerta mostrando que o entendimento do processo de reprodução de vida material não é meramente econômico. A ÚLTIMA INSTÂNCIA (lembram que eu pedi para guardarem o nome), não é um determinismo mecanicista restrito, como se a economia por si só criasse toda a vida espiritual: religião, teatro, música, moda, etc. O conjunto das determinações das instâncias deve ser entendido e elaborado para se fazer análise de conjuntura.
Contrabandeando uma ideia que não é gramsciana, mas que bem podia ser, que está na crítica que Sartre faz ao marxismo, há um certo tipo de “marxismo” que transformou a prévia ideação e a análise numa abstração retórica estéril, na qual tudo tem que se encaixar a modelos fechados anteriores marxistas (como aqueles brinquedinhos de criança de encaixe do jardim da infância). Se a realidade não se adapta à conjuntura, dane-se a realidade. Gramsci traça uma linha de fuga, mostrando que o termo ÚLTIMA INSTÂNCIA não é um mero acaso em Marx, mas a demonstração que há uma correlação dialética e funcional de todas as instâncias e elementos. Por isto ele demonstra na obra citada, que não é possível fazer uma análise determinista de conjuntura prévia, porque os elementos qualitativos e quantitativos mudam incessantemente de lugar, nos surpreendendo. A crítica conjuntural a uma determinada tarefa do movimento diante do enfrentamento de classes é, antes de tudo, práxis coletiva. Não que não se possa e não se deva fazer análise de conjuntura, mas esta nunca deve ser definitiva e determinista. Utilizando-se da linha de fuga dialética a um determinado tipo de “marxismo” fechado, dizemos sim, somos marxistas, à bela provocação que Sartre faz em seu artigo “o existencialismo é um humanismo”, quando acertadamente crítica um certo mecanicismo marxista.
A segunda discussão é que esta vida espiritual, por mais que tenha uma instância autônoma, é sempre e sempre e sempre alicerçada na vida material. Numa estrutura de trabalho alienado e expropriado. Assim, as produções materiais-espirituais-sociais nunca são “neutras ou imparciais”. De novo pegando e contrabandeando Sartre (que não devia estar neste texto, mas o autor é pouco ortodoxo e menos ainda disciplinado), o homem está condenado à liberdade. Nesta frase, no fundo, Sartre acaba tangenciando a famosa frase hegeliana repetida por Marx, “liberdade é a descoberta da necessidade”. Como materialista, Gramsci não coloca esta determinada autonomia das instâncias como algo imaterial e volitivo. A consciência social é produzida, é verdade, mas todo homem materialmente constituído está condenado à racionalidade. Ou seja, como diz Gramsci, “todo homem é um filósofo”. Todo homem tem uma cosmogonia, a prova mor de que todo homem é um filósofo é a linguagem, que não é um conjunto vazio de símbolos, antes um produto social herdado e aprendido socialmente, e que sempre é uma forma de representar o mundo. Assim, a autonomia das instâncias não está no etéreo, mas na sua existência no mundo prático dos homens, do qual, cada pessoa, mais ou menos “alienada”, sempre tem uma ideia concreta e total. A linguagem das coisas abstratas mostra a necessidade de racionalização e de se ordenar o mundo internamente. “Deus”, “amor”, “pátria”, “lealdade”, “socialismo”, são todos conceitos complexos que corporificam, ao fim e ao cabo, ideias sociais. Gramsci explica, e faz a síntese, o homem é um tripé. O homem é:
1. Sua constituição biológica, o ser em si do homem;
2. Um ser social, o homem só se faz homem através da dialética social;
3. Sua relação com a natureza, que não é relação contemplativa, antes é uma relação material, de indústria.
Neste tripé, Gramsci vai montando sua explicação sobre ideologia. Se todos os homens são filósofos, todos os homens são ideólogos de alguma ideologia. Não quer dizer que todos os homens tenham consciência disto, ou que ordenem de forma coerente seu pensamento. Em todos os homens, há reflexos da ciência mais avançada e dos preconceitos mais atávicos. Cremos que avançamos um pouco na explicação da ideologia, primeiro como reflexo invertido do mundo, e, desta forma sempre limitada, social, datada no tempo e no espaço. Sim, datada no tempo e no espaço, toda ideologia está condenada à morte, inclusive a marxista. Todavia, a marxista só morrerá quando morrer junto seu objeto de estudo e combate, o capitalismo. Enquanto houver capitalismo, o marxismo será (novamente parafraseando Sartre), a única filosofia viva, já que é o único método capaz de explicar os processos sociais da reprodução ampliada da mais valia e do trabalho alienado. A produção da vida material é a produção do mundo dos homens:
“(…) Devemos começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, que os homens têm estar em condições de viver para “fazer história”. Mas para viver é necessário comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios de para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, assim, como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Mesmo que o mundo sensível, como em São Bruno, seja, reduzido a um cajado, e um mínimo, ele pressupõe a atividade de produção desse cajado. A primeira coisa a fazer em qualquer concepção histórica é, portanto, observar este fato fundamental em toda sua significação e em todo o seu alcance e a ele fazer justiça. (…). O segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduz a novas necessidades - e estas produção de necessidades constitui o primeiro ato histórico. (Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã, pp. 32-33, Boitempo, São Paulo, 2007, tradução de Ruben Enderle, Nélson Scheneider e Luciano Cavini Martorano).
Recapitulando e tecendo a trama:
I. O mundo dos homens é produzido material e socialmente pelos homens. I
I. A produção do mundo material dos homens cria novos instrumentos e novas necessidades, ao fazer isto, os homens produzem sua práxis histórica.
III. A base material é que determina em última instância a consciência social, ou seja a estrutura produz a super-estrutura.
IV. A base material não produz mecânica ou diretamente cada instância das superestruturas, estas instâncias têm sua autonomia (não independência), mas são determinadas, em ÚLTIMA INSTÂNCIA, pela vida material.
V. Nas análises mecanicistas as várias instâncias da vida material são ignoradas, um certo tipo de marxismo religioso e mecanicista é criado, o que não tem nada que ver com a dialética marxista.
VI. A ideologia é reflexo social criado nesta jogo de co-determinação das instâncias. A ideologia e o pensamento também são produtos sociais.
VII. O homem que cria o mundo material do homem, também é o portador, sujeito ativo-passivo da ideologia.
Bem, feita a recapitulação acima, podemos avançar. Como diz meu amigo de além-mar, Carlos Carujo: “A dialética é como a coca-cola, na primeira vez que se bebe, é estranha, nas outras, continua se estranhando”. Ao mesmo tempo que Gramsci diz “todos os homens são filósofos”, ele no segundo momento, diz “nem todos os homens são filósofos”. É bom lembrar que o princípio da não-contradição, da lógica aristotélica, não é inteiramente aplicável na dialética E se pode dizer, sem ser um abestado, todo homem é filósofo e, no momento seguinte, nem todo homem é filósofo. Gramsci vai dizer duas coisas muito importantes nesta segunda frase, ao negar que todos sejam filósofos. Primeiro ele vai mostrar que a Filosofia é também um saber próprio, científico, com regras racionais próprias e que, neste sentido, poucos homens são filósofos. E Grasmci vai propor coisas ainda mais intrigantes, ele vai propor que o “marxismo, num primeiro momento, não passa de um preconceito na cabeça do operário¨. É muito importante compreender o que Grasmci está dizendo. Gramsci via, nos exercícios de vulgarização, que até podiam ser bem intencionados, os riscos de rebaixamento do método dialético. A massificação de um certo marxismo mecanicista, podia levar ao messianismo ou ao fatalismo. Duas faces da mesma moeda, de um determinado tipo de “marxismo” que vai buscar na “análise” aquilo que previamente já sabia. Ao dizer que o marxismo no início é apenas um preconceito, ele faz o desafio de que a aprendizagem da dialética é um desafio cotidiano e que vai durar só a vida inteira de quem se interessar em aprendê-la.
Em lugar de vulgarizar e rebaixar o marxismo, para ser entendido pelas massas, trabalhar as massas para ultrapassar a barreira do bom-senso e do senso-comum. Ao dizer que nem todos são filósofos, ainda que é desejável que todos sejam, esta afirmação tem várias implicações. A primeira da necessária e permanente formação das massas, já que, segundo Grasmci, o marxismo só poderá ser vitorioso quando tiver a força da religião, sem que se produção a cisão que, ele observara na igreja católica, entre a religião dos intelectuais e a da plebe. Longe de um partido e poucos intelectuais e de uma massa conduzida. Gramsci, em primeiro lugar, defende a disseminação do método entre os trabalhadores. Não que ele fosse obreirista ou desdenhasse a cultura, mas não cabe no tamanho deste texto o papel que Gramsci dá ao intelectual orgânico. Em segundo lugar, ao dizer que nem todos são filósofos, e que o marxismo é, num primeiro momento, só um preconceito que substitui outros preconceitos, fica claro o alerta da necessidade de superação do bom-senso e do senso comum, rumo a um entendimento mais racional do mundo. Assim, para Gramsci marxismo e ciência são irmãos siameses, o estudo da dialética serve para a superação dos preconceitos, mecanicismos, compreensões rasas e simplificadas do mundo. A dialética é a própria ciência mais avançada e com ela tem que dialogar (a dialética marxista é a ciência mais avançada, mas não é toda a Ciência).
Assim, como todos somos filósofos, com nossas limitações e com o desejo de sermos filósofos na acepção mais técnica, fica claro que todos somos parciais, partidários, classistas, políticos, quer queiramos e saibamos, ou não. Como a ideologia é uma produção social no tempo e no espaço, feita coletivamente pelos homens, todos os homens estão submetidos a ela. Mesmo os intelectuais que tem a ilusão da “neutralidade” (ilusão dada pela especialização de determinados ramos do saber produzida pelo capitalismo). Cabe a nós sermos homens-massa da ciência ou da política mais avançada, ou regredirmos a formas de consciência reacionária ou preconceitos atávicos.
Texto inicialmente escrito como apontamento de aula, publicado agora no 247, por abordar questões candentes sobre a disputa em torno da dialética.
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