O que é bom para os EUA é bom para o Brasil?

Após saída de Trump, EUA abandona a rigidez da austeridade fiscal e promove a vacinação em massa. O resultado é a redução do número de mortes, mas governo brasileiro se nega a adotar medidas



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A frase foi pronunciada pelo político conservador brasileiro, Juracy Magalhães, logo depois de ter sido nomeado embaixador do Brasil nos Estados Unidos pelo governo militar que depôs o Presidente João Goulart em 1º de abril de 1964. O político era dirigente da UDN, partido que conspirou a favor da ditadura, e havia encerrado seu mandato como governador da Bahia em 1963. Logo após essa breve passagem pela representação brasileira em Washington, ele foi nomeado Ministro da Justiça e depois também chanceler entre 1965 e 1967.

A indicação realizada pelo Marechal Castello Branco ainda em junho, poucos meses depois do golpe, confirmou a tendência das elites brasileiras em aceitarem uma postura passiva perante os desejos e interesses dos norte-americanos em termos geopolíticos, econômicos, sociais e culturais. Em um mundo ainda marcado pela disputa ideológica da guerra fria, o alinhamento automático com os Estados Unidos se ancorava na necessidade de “derrotar o comunismo” a qualquer custo.

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Essa postura reflete a mais absoluta falta de estratégia para construção de um projeto nacional de sociedade e parece delegar a outra nação tal incumbência. No entanto, felizmente outras forças parecem terem interferido no processo e a própria tradição do Itamaraty permitiu uma correção de rumo na diplomacia a partir de então. Mesmo durante a ditadura o Brasil manteve uma relativa autonomia na condução de sua orientação para as relações exteriores, participando de articulações de aproximação com países não alinhados e de outras inciativas menos bajuladoras dos interesses ianques.

No entanto, o fato é que mesmo o espírito de vira lata de nossas elites só ganha iniciativa quando o alinhamento político-ideológico é mais do que evidente e não deixa margem a dúvidas. A eleição de um afrodescendente para dirigir o país do norte em 2009, por exemplo, não animou muito os espíritos das elites brancas tupiniquins. Afinal, o forte simbolismo de Barack Obama ocupando a Casa Branca e chamando Lula de “the guy” não contava com nenhum tipo de entusiasmo propiciado pela frase de Juracy Magalhães.

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Americanófilos, ma non troppo

Já eleição de Donald Trump e a infeliz coincidência com a chegada de Bolsonaro ao poder por aqui recoloca a questão do alinhamento automático em outro patamar. O Brasil abandona qualquer tipo de pretensão de desempenhar um papel relevante no cenário internacional e passa a ser apenas um peão a mais nas mãos da diplomacia norte-americana. A bajulação passa ser sistemática e o chanceler brasileiro se orgulhava de transformar nosso país em um pária internacional. No entanto, com o cenário de agravamento da nossa crise interna e da ruptura de canais de intermediação com os parceiros pelo mundo afora, mais uma vez parte das elites começam a perceber que o aforismo do udenista precisava mais uma vez ser relativizado. A admiração de sempre ao que vinha de lá passa ser temperada com o receio das consequências das trapalhadas perpetradas pelos dois presidentes.

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A derrota de Trump e a vitória de Joe Biden marca o retorno do Partido Democrata à presidência nos Estados Unidos. A emergência da crise provocada pela covid-19 e a tragédia em que se configurou a postura do seu antecessor perante a pandemia provocaram uma mudança de estratégia da nova equipe. Os Estados Unidos vinham liderando todos os índices negativos associados à doença, uma vez que Trump adotara uma prática e um discurso negacionistas, subestimando seus riscos e classificando o fenômeno ora como uma “gripezinha”, ora como “vírus chinês”. Essa foi, inclusive, a importação que Bolsonaro trouxe para orientar a conduta desastrosa de seu governo no (não) enfrentamento da pandemia.

A mudança com Biden

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A chegada de Biden reorienta as políticas públicas para esse fato novo, que demanda medidas urgentes e vigorosas. De um lado, tem início um forte movimento para vacinação em massa e em grande escala da população. De outro lado, o governo decide pela adoção de pacotes expressivos de recursos públicos para ajudar na retomada do crescimento das atividades econômicas e na ajuda às empresas e famílias em dificuldades.

Os efeitos em algumas variáveis são quase imediatos. O gráfico 1, logo abaixo, exibe a tendência do movimento ocorrido com o número de mortes causadas pela covid-19 em proporção com cada milhão de habitantes entre Brasil e Estados Unidos. A data de início da comparação é justamente a posse do novo ocupante da Casa Branca, em 20 de janeiro de 2021.

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Gráfico 1 – Mortes por covid – casos por milhão (média semanal)

Grafico 1

Naquele dia, os Estados Unidos apresentavam a marca de 8,31 mortes por dia por milhão de habitante em média semanal. Esse índice era mais do que o dobro do apresentado pelo Brasil, que registrava 3,60 mortes, de acordo com o mesmo critério. A sequência inicial evolui, com as curvas tendendo a se inverter e no dia 2 de março os valores se igualam em 5,93 óbitos. A partir de então, as estatísticas brasileiras refletem a explosão descontrolada de casos fatais, ao passo em que a estratégia norte-americana de vacinação e medidas de precaução e isolamento parecem surtir efeito. Em 2 de abril o Brasil atinge a marca de 14,70 mortes, enquanto os EUA reduzem a média diária para 2,91. Ou seja, em menos de três meses aumentamos em mais de 300% os óbitos, enquanto os norte-americanos viram as mortes serem reduzidas em 65%.

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Brasil muito atrás

Outra iniciativa relevante foi o estímulo à vacinação em massa. O gráfico 2 abaixo nos mostra a evolução da porcentagem da população que está definitivamente imunizada. No início do governo Biden, a taxa era apenas de 0,65% e o Brasil nem havia começado sua campanha. Atualmente, menos de 3 meses depois, os Estados Unidos atingiram a marca de 22% da população plenamente vacinada e o Brasil está em 3% apenas.

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Gráfico 2 – Porcentagem da população vacinada – Brasil e EUA

Grafico 2

Outra frente de ação do governo Biden foi na seara fiscal. O novo presidente parece ter abandonado a rigidez dogmática da austeridade fiscal e encaminhou medidas determinando a elevação expressiva das despesas orçamentárias inicialmente previstas, sempre com o objetivo de combater a pandemia e seus efeitos negativos para economia e para sociedade.

Em janeiro, apenas alguns dias após a posse, foi anunciado um pacote de ajudas no valor de US$ 1,9 trilhão. As verbas eram destinadas a rubricas como desemprego, auxílio contra a fome e risco de despejo por falta de pagamento de aluguéis ou hipotecas imobiliárias. Além disso, havia previsão de despesas com vacina e testagem da covid, bem como repasses para pequenas empresas, estados e municípios.

Atualmente está em fase final de elaboração um novo conjunto de medidas no valor de US$ 3 trilhões. O pacote deverá ser composto de 2 segmentos. De um lado, despesas dirigidas à geração de empregos em obras e projetos de infraestrutura e da “economia limpa” (empreendimentos de conteúdo verde e sustentável). De outro lado, estão localizadas as verbas destinadas aos programas de chamada “economia do cuidado”, com o foco dirigido aos aspectos relacionados à economia doméstica.

A soma destas duas medidas deverá atingir algo próximo a US$ 5 trilhões. Esse valor representa em torno de 25% do PIB daquele país, que está avaliado em US$ 21 trilhões. Trata-se de uma iniciativa necessária e corajosa, uma vez que rompe com a tradição conservadora do fiscalismo restritivo. A emergência da realidade concreta parece ter falado mais alto do que os conhecidos receios e ameaças advindas das fontes do financismo internacional, sempre muito bem instalado em seus escritórios de Manhattan. Além disso, uma nova ordem econômica parece estar em construção para substituir os dogmas ultrapassados no neoliberalismo, tal como estabelecidos no defunto Consenso de Washington da década de 1980.

Se é bom para o Brasil, então mãos à obra

Uma simples comparação com o caso brasileiro nos permite identificar o nível de atraso em que nos encontramos nesse debate e na adoção de tais medidas. Nosso PIB está avaliado em torno de R$ 7,4 trilhões. Caso o governo brasileiro resolvesse adotar uma estratégia similar e de potência semelhante, caberia um pacote de ajuda no valor de R$ 1,8 trilhão. Porém, vige uma subestimação das necessidades para o enfrentamento da guerra contra a pandemia, ao tempo em que seguem as adorações imaculadas aos altares da austeridade fiscal sob a forma de uma impressionante e sacrossanta divindade intangível. E o governo continua se negando a comprar vacinas e a adotar um programa de auxílio emergencial com um benefício mensal mínimo de R$ 600 enquanto durar a pandemia. Um verdadeiro crime contra o país e seu povo.

Talvez seja mais do que passada a hora de nossas elites se inspirarem na frase de Juracy Magalhães. Se for bom mesmo para o Brasil, então o caminho passa por retirar um governo genocida e negacionista do poder e adotar um programa econômico com previsão das despesas necessárias para derrotar a pandemia e recuperar a trilha do crescimento e do desenvolvimento.

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