O quanto é o suficiente

"O contraste entre ecoeficiência e sobriedade exprime-se bem no vínculo entre padrões produtivos e regimes alimentares"

Lula visitou um assentamento de agricultura familiar do MST na região metropolitana de Recife
Lula visitou um assentamento de agricultura familiar do MST na região metropolitana de Recife (Foto: Ricardo Stuckert. 16/08/2021)


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Por Ricardo Abramovay

(Publicado no site A Terra é redonda)

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Dê um Google em “eco-eficiência” (eco-efficiency em inglês) e encontrará mais de 1,9 milhão de referências. Já o termo sem o qual a ecoeficiência se torna um verdadeiro furo na água, a eco-suficiência (eco-sufficiency), recebe pouco mais de sete mil menções. É uma expressão emblemática do estado em que se encontra o esforço global para que o sistema econômico não ultrapasse as fronteiras ecossistêmicas além das quais a própria vida na Terra encontra-se sob ameaça.

De fato, o mundo está se tornando cada vez mais eficiente no uso dos recursos necessários para a oferta de bens e serviços. Produzir mais com menos é consigna unânime. Já a eco-suficiência (que, nas línguas latinas, pode ser traduzida por sobriedade), fica relegada a uma espécie de nota de rodapé no almanaque das orientações socioambientais. A evidência de que há bens e serviços dos quais é importante estabilizar e até mesmo reduzir a oferta é ofuscada em benefício do cândido otimismo que faz da ciência e da tecnologia caminhos quase exclusivos no enfrentamento da crise climática, da erosão da biodiversidade e da poluição.

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Não há melhor exemplo deste contraste entre ecoeficiência e sobriedade que o oferecido pelo sistema agroalimentar global. Os documentos vindos de algumas das mais importantes consultorias e organizações globais postulam que, para fazer frente ao aumento da renda e ao crescimento populacional de um mundo que deve chegar a dez bilhões de habitantes até 2100, será preciso aumentar drasticamente a produção agropecuária e, especialmente, a oferta de carnes. Mas esta previsão costuma ser imediatamente acompanhada pela ressalva de que expansão de tal magnitude é incompatível com a meta de conter a elevação da temperatura global média abaixo de 1,5º e com o objetivo de reduzir a destruição da vida no solo, nas florestas e nas águas.

Entre 2020 e 2100, a oferta de alimentos, energia e fibras a partir dos atuais padrões produtivos, provocará emissões de 1.365 gigatoneladas de gases de efeito estufa. Ora, o orçamento carbono para que o mundo tenha 67% de chance de conter a elevação da temperatura global média em 1,5% é de 500 gigatoneladas. Se a meta for uma elevação não superior a 2º a margem é maior, mas chega a apenas 1.405 gigatoneladas. Isso significa que mesmo que a economia global fosse inteiramente descarbonizada, a agropecuária sozinha ultrapassaria os limites além dos quais o sistema climático entraria em colapso, como mostra importante artigo de Michael Clark, da Universidade de Oxford e colaboradores, na Science.

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O contraste entre ecoeficiência e sobriedade exprime-se bem no vínculo entre padrões produtivos e regimes alimentares. Se o mundo adotasse a dieta típica norte-americana, isso exigiria seis vezes mais área agrícola que a adesão ao regime alimentar da Índia, segundo estudo de Peter Alexander e colaboradores. Esta dieta está na raiz da pandemia de obesidade que atinge nada menos que 40% dos norte-americanos, com consequências desastrosas para a saúde humana.

Não se trata, é claro, de encontrar padrões universais que não levem em conta as condições e as culturas alimentares e culinárias de cada região. Trata-se sim de contestar que o caminho para uma alimentação saudável e um sistema agropecuário sustentável é a produção cada vez maior.

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A luta por um regime agroalimentar saudável e sustentável está organicamente vinculada à aspiração de redução das desigualdades. Condicionar o uso dos recursos ecossistêmicos voltados à alimentação às reais necessidades dos indivíduos é a premissa básica para que a agricultura contemporânea não ultrapasse as fronteiras planetárias que até aqui ela tem agredido. Documento do WWF internacional estabelece cinco objetivos em direção a uma dieta planetária voltada para as pessoas e para a regeneração ecossistêmica.

A primeira é que a alimentação contemporânea tem que zerar e reverter a perda de biodiversidade à qual, até aqui, ela é associada. A segunda é a drástica redução das emissões do sistema agroalimentar. Hoje estas emissões chegam a 16,5 gigatoneladas de gases de efeito estufa e a meta deve ser que o sistema agroalimentar em alguns poucos anos não emita mais que cinco gigatoneladas. Como as carnes estão no epicentro do sistema agroalimentar mundial, atingir este objetivo exige a migração para dietas muito mais baseadas em plantas do que em carnes. Regimes alimentares menos carnívoros tendem a exigir menores superfícies de cultivo que os padrões atuais. A terceira orientação, portanto, é de que a demanda alimentar seja satisfeita sobre a mesma superfície hoje já usada ou até reduzindo esta ocupação.

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A quarta orientação está na busca de emissões negativas por parte da agropecuária. Zerar o desmatamento é, na América Latina, o principal caminho nesta direção. Mas reduzir as emissões de metano da pecuária e encontrar técnicas produtivas que favoreçam o bem-estar animal é um caminho fértil para adaptar a oferta agropecuária às reais necessidades de alimentação saudável das pessoas. Por fim, a quinta orientação refere-se à eficiência no uso de todos os insumos necessários à produção agropecuária.

O mundo empresarial tem ampliado os parâmetros que medem a eficiência de suas atividades, muito além daquilo que o sistema de preços é capaz de revelar. Levar a sério esta transformação exige mais que a avaliação dos impactos da oferta de bens e serviços sobre os ecossistemas. Não só no sistema agroalimentar, mas na economia como um todo, sem a pergunta de Ghandi sobre “o quanto é o suficiente”, o combate à pobreza e às desigualdades converte-se numa corrida maluca em direção a um destrutivo infinito que jamais poderá ser alcançado.

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*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

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