O quando de Vinicius; o hoje de Toquinho
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Os que conhecem a poética de Vinicius de Moraes percebem, com ou sem a ajuda de teóricos da literatura, a mudança gradativa na escolha de temas e na configuração dos versos. Assim, o Vinicius dos longos poemas de teor simbolista, místico e religioso dos anos 1930, vai depurando sua lírica a fim de tirar a poesia do pedestal para fazê-la andar ao rés-do-chão. Isso não implicou, contudo, a perda da qualidade estética, como prova seu apego ao soneto, estrutura com longa presença na tradição, que exige concisão e perícia nos ritmos, metros e rimas. Em suas mãos, contudo, o tom solene que marca esse artefato vai dando lugar ao coloquial, à inserção do cotidiano: “Nós todos, animais, sem comoção nenhuma/ Mijamos em comum numa festa de espuma.” (“Soneto de intimidade”); “Essa mulher é um mundo! – uma cadela/ Talvez... – mas na moldura de uma cama/ Nunca mulher nenhum foi tão bela!” (“Soneto de devoção”).
Vinicius deixou seu nome no chamado cânone da literatura brasileira ao se desdobrar na luta com a palavra como poeta, dramaturgo e jornalista. Neste, por meio de crônicas, artigos e críticas. Além disso, destaca-se a faceta do homem, marcada por um trajeto existencial em que se nota o embate permanente contra qualquer coisa que cheirasse à poda da liberdade e à capitulação dos valores humanos ao arbítrio. Alinhavo, aqui, alguns pontos importantes do trajeto do Poetinha, acessível a todos em muitos perfis biográficos sejam nos livros, sejam nas novas mídias.
O primeiro relato refere-se ao choque de realidade sofrido pelo poeta quando no Rio de Janeiro, em 1942, conheceu o escritor americano Waldo Frank. Terminaram a noite, “bêbados, no Mangue”. Depois a dupla seguiu para o Nordeste seguindo o roteiro do antiturismo oficial, embrenhando-se por “zonas portuárias, favelas, rodas de samba, alagados”. Além de ter se tornado um “antifascista convicto” devido à Segunda Guerra, as palavras de Vinicius dão a medida do efeito da experiência com Frank: “Tenho a impressão de que, de repente, descobri que tudo era besteira. Tomei conhecimento da realidade brasileira. E quando terminei a viagem, tinha mudado completamente a minha visão política.”
A esse lance marcante como formação de personalidade e conhecimento do Brasil profundo, deve-se acrescentar o fato de Vinicius ter sido nomeado, entre 1936 e 1938, como censor cinematográfico do Ministério da Educação, mas orgulhava-se de nunca ter censurado nada; além da adaptação do mito de Orfeu para um dos morros do Rio com a peça Orfeu da Conceição que, vertida para o cinema como Orfeu Negro, filme do Francês Marcel Camus, recebeu, em 1959, a “Palma de Ouro” no festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. Esse mergulho na brasilidade tem mais duas passagens significativas: o lendário show com Caymmi e o Quarteto em CY, na boate Zum-Zum, em 1963. Três anos depois grava com Baden Powell o lendário LP Afro Sambas, um diálogo visceral entre o Brasil e uma de suas vertentes formadoras. Essas incursões artísticas teve um preço. Na época, ligado à diplomacia do Itamaraty, Vinicius seria aposentado compulsoriamente pelo AI-5 em 1968. A reparação para esse dano viria quarenta e dois anos depois, no segundo governo Lula, quando foi assinada a “promoção post-mortem” que deu aos atuais dependentes do poeta, “benefícios da pensão correspondente ao cargo”.
Outro capítulo fundamental no itinerário do autor da letra de “Garota de Ipanema” e do “Soneto de fidelidade” foi seu casamento com a atriz Gessy Gesse, em 1973, numa cerimônia umbandista. Essa passagem fortaleceu no poeta a convicção de ser “o branco mais preto do Brasil”. Nessa perspectiva ancestral, acrescente-se sua amizade com Pixinguinha, considerado por ele “o melhor ser humano que conhecia” e “o maior de todos os músicos populares brasileiros”. Conheceram-se no início dos anos 1950. Tornaram-se parceiros, em 1963, quando compuseram seis músicas para a trilha sonora do filme “Sol sobre a lama”, de Alex Viany. Na emblemática “Samba da benção”, parceria com Baden, composta no início dos anos 1960, no qual homenageia parceiros e ícones da música brasileira, Vinicius saúda o autor de “Carinhoso” com o indelével “A bênção, Pixinguinha! Tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor.”
Volta a homenageá-lo no poema “Olha aqui, Mr. Buster...” (1962), uma lírica alfinetada contra o modo de vida americano calcado no supérfluo e no esbanjamento. Depois de desfilar uma série de nomes de produtos domésticos e atitudes alienantes, o eu lírico pergunta: “Mas me diga uma coisa, Mr. Buster/ (...) O senhor sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?”. Não parou aí. Em 1971 escreve “Chorando pra Pixinguinha”, com música de Toquinho.
Para finalizar, dois episódios que marcam profundamente o compromisso de Vinicius de Moraes com os caminhos inegociáveis da democracia. O primeiro quando ao se apresentar na Argentina, em março de 1976, foi testemunha do horror poucos dias antes do golpe militar na terra de Astor Piazzolla. O jovem pianista Tenório Júnior, que o acompanhava na turnê, ao sair do hotel para comer um prosaico sanduíche e comprar um remédio, foi confundido com um militante político pelo Serviço Secreto da Marinha argentina. Depois de torturado durante nove dias foi morto com um tiro na cabeça. Segundo duas fontes, agentes brasileiros do SNI participaram da execução do músico talentoso. Três anos depois dessa “página infeliz da nossa história”, Vinicius participa do 1º. de Maio de 1979, durante a greve dos metalúrgicos do ABC, lendo seu portentoso “O operário em construção” no Paço Municipal de São Bernardo do Campo.
Foi ao lado desse homem que o músico Toquinho esteve por onze anos, tornando-se assim seu mais longevo parceiro com dezenas de discos, centenas de músicas e apresentações pelo Brasil e pelo mundo afora. Infelizmente todas essas lições sumiram do horizonte do pensamento atual do violonista. Primeiro, o espanto com seu entusiasmo, em 2018, com a chegada do desastre Bolsonaro à cadeira de presidente. Recentemente, o site Galãs Feios recortou um trecho de uma entrevista que ele deu ao site Terra, em 2019, na qual demonstra seu incômodo com o “politicamente incorreto” nos dias que correm. Nessa bitola, diz que “era muito melhor ser jovem na sua época”, pois hoje paira uma “aura de fiscalização, de gesso, de ditadura”. Lamenta que já não se pode mais chamar ninguém de negão, crioulo e bicha (mesmo na brincadeira) sem estar sujeito a um processo; que gays, negros e mulheres são muito protegidos pelas leis; que os negros ocupam “30% das faculdades” embora haja “pessoa mais inteligente que eles, mas entra depois.”
Bastaria a Toquinho observar as estatísticas sobre violência contra os indivíduos dos segmentos citados, nesse Brasil brasileiro, para perceber que não bastam as leis; elas têm que ser aplicadas. Fica difícil de acreditar que esse discurso tenha sido dito por quem teve o privilégio de conviver com a grandeza de Vinicius de Moraes. A banda da evolução nos costumes passou à janela, mas só Toquinho não viu.
Fui ver o restante do vídeo. Não há só as questões comportamentais a tirar do sério o ex-parceiro de Vinicius. Para ele, “a corrupção do Mensalão foi absolutamente comprovada”. Embora diga que “Dilma quebrou o país”, que “as pessoas conseguiram quebrar a Petrobras”, que a Câmara, o Centrão e metade do STF “são bandidos”, enfatiza que Moro “é uma bandeira” e Bolsonaro foi eleito para dar “uma segurança à impunidade, uma segurança à corrupção”. Sei.
Pouco depois que suas palavras anacrônicas sobre “a aura de ditadura”, provocada pelo “politicamente incorreto”, chegaram em nossas ouças, fomos brindados com a imagem, mais uma entre tantas, registrada em São Paulo, do jovem negro correndo algemado à moto do policial que o detivera por porte de maconha. O entusiasmo de Toquinho sobre as tais “leis de proteção” não se sustenta diante dessa imagem nefanda, dessa aquarela sem sol amarelo. Contra essa adesão à barbárie, feita com frases arrumadinhas, mais que nunca é preciso cantar a beleza deixada por Vinicius de Moraes. Tristeza não tem fim ao se saber que está desafinada a cabeça do dono do violão que guiou seus versos memoráveis.
Saravá!
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