O privilégio da servidão

Antunes subestima muito o poder da ideologia e da cultura no processo de sujeição dos trabalhadores na fábrica. Sequer faz referência à ampliação do conceito de "fetichismo" para além dos muros da fábrica, e como ele impregna todo o corpo social e ajuda a manutenção do capitalismo



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Este livro de Ricardo Antunes inicia com uma queixa contra o "produtivismo acadêmico" imposto pela CAPES\CNPQS sobre a carreira universitária. E reclama do fato de que artigos isolados publicados em revistas "qualis" têm mais valor que livros publicados pelo autor. Ocorre que os livros de Ricardo Antunes têm duas características: repetem artigos ou capítulos já publicados, em livros anteriores e são coletâneas de artigos novos e velhos. Reclama também da co-autoria de artigos entre professores e alunos, que - segundo ele, elasteceria artificialmente a produção dos docentes às custas de seus alunos. Ocorre que neste livro há contribuição de várias pessoas (artigos escritos à quatro mãos).

Como já dito, este livro não é inteiramente original; traz reedição de artigos já publicados. Tem característica daquilo que se chama "história imediata" dos nossos dias. O que faz dele uma espécie de relatório de pesquisa pela quantidade de dados apresentados, só que a partir de fontes secundárias. O pesquisador se vale de uma bibliografia estrangeira (francesa, italiana, japonesa) para traçar o perfil da nova morfologia do trabalho, e de pesquisas feitas por outros (e sua equipe de pesquisas) para apresentar o quadro da força de trabalho no Brasil. Dois desses trabalhos chamam a atenção: o de Luci Praum sobre uma fábrica da GM em São José dos Campos, e de sua esposa sobre o adoecimento no trabalho. Como sociólogo do trabalho, Antunes faz uma interpretação desses resultados.

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O livro utiliza uma linguagem, a modo de conceitos, que o aproxima do que se pode chamar uma "litero-sociologia", em razão das metáforas e imagens utilizadas: classe-que vive-do-trabalho, modo-de-ser, liofilização, coágulos de sociabilidade, classe-que-tem de-fazer, porque é destinada a fazer etc. Expressões que são mais descritivas do que analítica.

Seu ponto de partida é Marx, Lukács e filósofos contemporâneos que tratam do trabalho (Mészáros, Gorz, e outros). No que toca à Lukács, é preciso ressaltar a visão metafísica do mesmo em relação à classe operária (e sua consciência adjudicada) e a petição de princípio que há em seus estudos sobre o papel do proletariado moderno. Já em relação à Marx, é mais complicado. Há citações dos manuscritos, do Capital, dos grundrisse etc.). Ponto de discussão aqui é a chamada composição orgânica do capital, o crescimento do capital constante e a crise do capitalismo. Sobre isso, ele não fala. Outro ponto importante são as consequências para Marx da progressiva incorporação do progresso técnico (ciência e tecnologia) ao processo produtivo e a modificação do tempo de trabalho (trabalho necessário, trabalho excedente), a jornada do trabalho individual e o conceito de riqueza verdadeiramente humana (Agnes Heller). Sobre esse ponto, ele passou ao largo. A preocupação de Antunes é com a defesa da sobrevivência da lei do valor e a valorização do capital, em tempos da 3a revolução industrial, tecnologias de informação, robótica, telemática, o perfil multifuncional do trabalhador e o mercado dual de trabalho. Sua preocupação é mostrar que já nos textos marxistas encontra-se a base para a defesa da lei do valor, mesmo na produção imaterial ou "improdutiva" no setor de serviços.

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A questão, porém, é como de uma morfologia heterogênea, fragmentada de trabalhadores é possível organizar a luta de resistência dos trabalhadores. Cita ele uma série de greves, movimentos, lutas desse novo proletariado de serviços (infoproletariado) contra a superexploração capitalista no mundo, mas não indica como será possível unificar essas lutas, nem dentro ou fora do país, tendo em vista mudar a sociedade.

Antunes parece ter uma concepção restritiva e unívoca do "trabalho" como racionalidade instrumental. Não pensa o trabalho numa perspectiva lúdica, prazerosa, livre da necessidade material, como faz Marx e Heller. É como se o trabalho, como eterno intercâmbio do homem com a natureza, preservasse esse tipo de trabalho para além do capital. Essa tese não se coaduna com o conceito de comunismo de Marx. Não faz a distinção entre "work" e "labour", e não entende o trabalho liberto da alienação como brincadeira, obra de arte, sublimação material e imaterial das necessidades brutas.

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Antunes subestima muito o poder da ideologia e da cultura no processo de sujeição dos trabalhadores na fábrica. Sequer faz referência à ampliação do conceito de "fetichismo" para além dos muros da fábrica, e como ele impregna todo o corpo social e ajuda a manutenção do capitalismo.

Enfim, parece ser um estudo unidimensional, apenas focado do diagnóstico das novas formas de exploração do trabalho e sua nova morfologia.

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Fica nos devendo como será a recriação do movimento sindical urbano, no contexto desse novo proletariado dos serviços, e a centralidade desses trabalhadores no processo de emancipação social. Ignora por completo as questões identitárias e seus movimentos sociais. E aconselha o movimento sindical a se afastar delas."A pedido, compartilho abaixo o texto de discussão da aula de hoje do professor Michel Zaidan Filho sobre o livro "O Privilégio da Servidão" de Ricardo Antunes:

 

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"Este livro de Ricardo Antunes inicia com uma queixa contra o "produtivismo acadêmico" imposto pela CAPES\CNPQS sobre a carreira universitária. E reclama do fato de que artigos isolados publicados em revistas "qualis" têm mais valor que livros publicados pelo autor. Ocorre que os livros de Ricardo Antunes têm duas características: repetem artigos ou capítulos já publicados, em livros anteriores e são coletâneas de artigos novos e velhos. Reclama também da co-autoria de artigos entre professores e alunos, que - segundo ele, elasteceria artificialmente a produção dos docentes às custas de seus alunos. Ocorre que neste livro há contribuição de várias pessoas (artigos escritos à quatro mãos).

Como já dito, este livro não é inteiramente original; traz reedição de artigos já publicados. Tem característica daquilo que se chama "história imediata" dos nossos dias. O que faz dele uma espécie de relatório de pesquisa pela quantidade de dados apresentados, só que a partir de fontes secundárias. O pesquisador se vale de uma bibliografia estrangeira (francesa, italiana, japonesa) para traçar o perfil da nova morfologia do trabalho, e de pesquisas feitas por outros (e sua equipe de pesquisas) para apresentar o quadro da força de trabalho no Brasil. Dois desses trabalhos chamam a atenção: o de Luci Praum sobre uma fábrica da GM em São José dos Campos, e de sua esposa sobre o adoecimento no trabalho. Como sociólogo do trabalho, Antunes faz uma interpretação desses resultados.

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O livro utiliza uma linguagem, a modo de conceitos, que o aproxima do que se pode chamar uma "litero-sociologia", em razão das metáforas e imagens utilizadas: classe-que vive-do-trabalho, modo-de-ser, liofilização, coágulos de sociabilidade, classe-que-tem de-fazer, porque é destinada a fazer etc. Expressões que são mais descritivas do que analítica.

Seu ponto de partida é Marx, Lukács e filósofos contemporâneos que tratam do trabalho (Mészáros, Gorz, e outros). No que toca à Lukács, é preciso ressaltar a visão metafísica do mesmo em relação à classe operária (e sua consciência adjudicada) e a petição de princípio que há em seus estudos sobre o papel do proletariado moderno. Já em relação à Marx, é mais complicado. Há citações dos manuscritos, do Capital, dos grundrisse etc.). Ponto de discussão aqui é a chamada composição orgânica do capital, o crescimento do capital constante e a crise do capitalismo. Sobre isso, ele não fala. Outro ponto importante são as consequências para Marx da progressiva incorporação do progresso técnico (ciência e tecnologia) ao processo produtivo e a modificação do tempo de trabalho (trabalho necessário, trabalho excedente), a jornada do trabalho individual e o conceito de riqueza verdadeiramente humana (Agnes Heller). Sobre esse ponto, ele passou ao largo. A preocupação de Antunes é com a defesa da sobrevivência da lei do valor e a valorização do capital, em tempos da 3a revolução industrial, tecnologias de informação, robótica, telemática, o perfil multifuncional do trabalhador e o mercado dual de trabalho. Sua preocupação é mostrar que já nos textos marxistas encontra-se a base para a defesa da lei do valor, mesmo na produção imaterial ou "improdutiva" no setor de serviços.

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A questão, porém, é como de uma morfologia heterogênea, fragmentada de trabalhadores é possível organizar a luta de resistência dos trabalhadores. Cita ele uma série de greves, movimentos, lutas desse novo proletariado de serviços (infoproletariado) contra a superexploração capitalista no mundo, mas não indica como será possível unificar essas lutas, nem dentro ou fora do país, tendo em vista mudar a sociedade.

Antunes parece ter uma concepção restritiva e unívoca do "trabalho" como racionalidade instrumental. Não pensa o trabalho numa perspectiva lúdica, prazerosa, livre da necessidade material, como faz Marx e Heller. É como se o trabalho, como eterno intercâmbio do homem com a natureza, preservasse esse tipo de trabalho para além do capital. Essa tese não se coaduna com o conceito de comunismo de Marx. Não faz a distinção entre "work" e "labour", e não entende o trabalho liberto da alienação como brincadeira, obra de arte, sublimação material e imaterial das necessidades brutas.

Antunes subestima muito o poder da ideologia e da cultura no processo de sujeição dos trabalhadores na fábrica. Sequer faz referência à ampliação do conceito de "fetichismo" para além dos muros da fábrica, e como ele impregna todo o corpo social e ajuda a manutenção do capitalismo.

Enfim, parece ser um estudo unidimensional, apenas focado do diagnóstico das novas formas de exploração do trabalho e sua nova morfologia.

Fica nos devendo como será a recriação do movimento sindical urbano, no contexto desse novo proletariado dos serviços, e a centralidade desses trabalhadores no processo de emancipação social. Ignora por completo as questões identitárias e seus movimentos sociais. E aconselha o movimento sindical a se afastar delas."

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