O povo abandonado e a radicalização bolsonarista
"Os parlamentares e partidos de esquerda precisam ser cobrados. São bem pagos e têm privilégios para serem representantes do povo. Precisam estar junto com o povo, nas filas da CEF, nas filas dos hospitais", diz o colunista Aldo Fornazieri
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A atual conjuntura se define por quatro características principais: 1) o povo abandonado em meio à pandemia, ao desemprego e à miséria crescente; 2) um governo e um presidente que maltratam os vivos e debocham dos mortos; 3) início de uma reação do STF contra os desmandos autoritários do presidente confrontada pela radicalização bolsonarista; 4) a inércia, letargia e passividade da oposição.
1 – Um povo abandonado. O povo brasileiro sempre foi abandonado, manipulado, enganado pelas elites políticas e econômicas. Mas nos momentos de crise, o abandono mostra seu rosto mais cruento, brutal, mortal. Todas as deficiências, descuidos criminosos e espoliação despudorada a que o povo vem sendo submetido se exasperam em dor e morte. Foi assim na gripe espanhola, foi assim nas outras grandes crises econômicas e políticas e é assim agora com o coronavírus. Desorientado e sem líderes, o povo não sabe se fica em casa ou se sai para as ruas; se terá almoço ou jantar; se morre em casa ou na fila dos hospitais. Os filhos não podem se despedir de seus pais que partem para sempre, os netos dos seus avós.
O povo está desorientado, sem comando, sem governo, sem líderes que o conduzam. Até agora, ao que se saiba, nenhum deputado, nem mesmo de esquerda, foi até as filas da CEF amparar o povo humilhado para receber R$ 600. Os deputados preferem o conforto dos seus lares, recebendo mais de R$ 30 mil por mês, fora o rosário de privilégios, do que estar onde o povo está. Qual deputado esteve nas filas dos hospitais para ver e confortar o povo na sua dor, na sua desesperança e na sua morte? O que sobra para o povo é desespero, abandono, angústia e dor devastadora.
2 – Um presidente e um governo que maltratam os vivos debocham dos mortos. Nenhum presidente e nenhum governo foram tão explicitamente malfeitores do povo como Bolsonaro e seu governo. Além de retirar direitos, de propor migalhas como socorro, de humilhar as pessoas em filas para receber uma quantia miserável, Bolsonaro e os bolsonaristas, em sua embriaguez macabra, em sua sede de sangue, debocham dos mortos pela pandemia, exprimido uma repulsa pelo humano, pela compaixão, pela dor e pela solidariedade. Nutrem um desprezo terrificante pelos idosos, pelos mais frágeis, vendo-os a todos como descartáveis, pois eles se consideram os fortes, os invencíveis, os que têm que mandar. Em sua arrogância assassina não cogitam fazer parte do destino comum de todos os seres humanos. No fundo, nutrem um desprezo pela vida de todos e pelas vidas de si mesmos
3 – As reações do STF e a radicalização de Bolsonaro e do bolsonarismo. O STF, finalmente, parece ter percebido os riscos que representam para o Brasil a escalada autoritária de Bolsonaro. Bolsonaro e os bolsonaristas nunca esconderam o desejo de fechar o STF e o Congresso. As medidas de contenção do STF e o rompimento de Sérgio Moro com o governo, no entanto, impulsionam ainda mais o movimento de radicalização. Bolsonaro procura envolver as Forças Armadas na aventura golpista. Embora os militares respaldem politicamente o presidente, é improvável que embarquem na irresponsabilidade criminosa que o bolsonarismo os incita.
Na medida em que existe um enorme espaço vazio no cenário político, Bolsonaro joga na confusão, na divisão, no caos para emergir como única alternativa de força para salvar o país. Mas como não tem força no presente, adota um autoritarismo incremental para ver até onde pode chegar no futuro. O rompimento com Moro criou uma dificuldade adicional: os elementos para um impeachment ou para uma ação mais ostensiva do STF estão colocados. Desta forma, Bolsonaro promove um jogo das ambiguidades: nomeia um ministro da Justiça palatável para o STF; busca assegurar-se no Congresso com uma base capaz de evitar o impeachment; e radicaliza nas ruas intimidando o Supremo e os parlamentares, ao mesmo tempo em que apela para os militares. Foi isto que se viu nos últimos dias em Brasília.
Ninguém pode se intimidar com as chantagens e ameaças de Bolsonaro e as bravatas fascistas dos bolsonaristas que agridem e ameaçam de morte jornalistas e adversários. É isto o que eles querem: semear o medo para galgar o poder. O STF e o Congresso precisam ser pressionados pelos democratas para que tomem medidas duras contra a escalada autoritária do presidente e seus liderados. As Forças Armadas precisam ser chamadas a se explicar sempre que forem envolvidas por chamamentos golpistas. Chamar Bolsonaro à responsabilidade é pura perda de tempo. Ele precisa ser denunciado e desmascarado na sociedade, com argumentos convincentes, capazes de agregar apoio o força social pelo seu impedimento.
4 – Se há algo verdadeiramente assustador na conjuntura é a inércia e a passividade das oposições, das esquerdas. Na retaguarda do movimento espontâneo de setores sociais, ultimamente, os partidos de esquerda aprovaram resoluções formais com a consigna “Fora Bolsonaro”. São formais, porque não terão maiores consequências já que não definiram medidas efetivas para levar adiante suas táticas. Há enormes dúvidas, por exemplo, de que o PT queira de fato o “Fora Bolsonaro”.
Alguns analistas petistas argumentam que é melhor Bolsonaro sangrar até 2022 para vencer as eleições. Esse argumento é irresponsável e equivocado: a) O argumento é irresponsável porque a sociedade e o Brasil estão acima dos cálculos eleitorais desse o daquele partido. O argumento de que o povo tem que arcar com a responsabilidade por ter votado em Bolsonaro é um argumento criminoso contra a democracia. O povo vota julgando aquilo que ele considera melhor para si. Bolsonaro venceu, 1) porque enganou o povo e, 2) porque os seus adversários foram incompetentes em persuadir o povo de votar neles, dadas todas as circunstâncias da conjuntura eleitoral; b) O argumento é equivocado porque um desastre do governo Bolsonaro não é garantia de vitória de algum candidato de esquerda. Nunca posso esquecer o que me disse um dirigente do PT num ato contra o impeachment na Avenida Paulista: “é melhor que o impeachment seja aprovado, pois Temer fracassará e o PT vencerá as eleições em 2018”. Temer, de fato, fracassou. Mas o resultado está aí: Bolsonaro presidente.
Pode-se dizer que governadores e prefeitos dos partidos de esquerda estão fazendo sua parte nos esforços de combater a pandemia, junto com governadores e prefeitos de outros partidos. Uns fazem mais, outros menos. Alguns acertam, outros erram. Mas todos fazem parte de um sistema público despreparado, sucateado, hostil ao povo pobre. Nessa doença trazida pelos ricos para o Brasil, quem morre são os pobres. As esquerdas precisam rever seus programas, suas estratégias para as políticas publicas de saúde, educação etc. O que vêm apresentando é insuficiente e longe das necessidades da população pobre. Precisam também rever suas estratégias de combate à desigualdade, pois o que apresentaram até agora são políticas de mitigações.
Existem alguns deputados de esquerda combativos. Mas são alguns. Os parlamentares e partidos de esquerda precisam ser cobrados. São bem pagos e têm privilégios para serem representantes do povo. Precisam estar junto com o povo, nas filas da CEF, nas filas dos hospitais. Precisam fiscalizar, cobrar, exigir o que o povo merece. Precisam liderar, conduzir. Alguns intelectuais, como Vladimir Safatle, declararam que a esquerda está morta. Não sei se está. Talvez esteja. É mais plausível pensar que esteja em suas tocas confortáveis, com altos salários e com o fundo partidário. Ou, tire-se o MST, o MTST e os ativistas das periferias que estão atuando nas frentes de batalha e de solidariedade e pouca coisa sobra de esquerda em nosso país.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp).
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