O político, escritor e pensador Joaquim Nabuco
Joaquim Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida do Brasil. Desse desertor da sua casta, da sua classe, da sua raça, como o percebia Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o diagnóstico do Brasil que continua urgente, mais de cem anos depois. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravaria, nos campos, nas cidades
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O calendário aponta que hoje faz 110 anos do penúltimo dia de Joaquim Nabuco. Mais adiante explico por que 17 de janeiro de 1910 foi o seu penúltimo dia, não o último.
Mas antes esboço uma breve explicação para o título destas linhas.
No Brasil, e no exterior também, há uma corrente de liberais que separa o cultural do político. E de maneira quase unânime, separa a literatura da política. Isso não é bom nem fecundo para a política ou para a literatura. Na política, assim separada do mundo literário, procura-se amesquinhar, rebaixar o seu nível à discussão apressada, ignorante e mal pensada. Ou seja, a prática ausente do conhecimento literário, que se fez presente nos clássicos há muito, essa ausência não é normal nem é a norma. Penso em Marx, Lênin, Gramsci, José Marti. E no Brasil, penso nos clássicos Astrojildo Pereira, Pedro Pomar, Nelson Werneck Sodré, Miguel Arraes, e outros que minhas limitações não permitiram alcançar. Nesta altura, lembro aqueles versos de Camões citados por Diógenes de Arruda Câmara, numa peça de acusação contra a ditadura no Brasil;
“Metida tenho a mão na consciência,
E não falo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiência”.
Por outro lado, ou pelo mesmo lado, na literatura separada da política me ocorre a imagem de cortinas que se abrem para as trevas. E nesse escuro, o abismo não é pequeno. Seria o mesmo que um mundo sem os gregos, e não só os trágicos, mas um mundo sem Platão, esse grande escritor que criou o personagem Sócrates, e a maioria só o nota como filósofo. Mas de modo mais óbvio, a literatura sem política seria um mundo sem Shakespeare, Dante, Cervantes, Tolstói, Balzac... e se querem exemplos mais próximos de nós, pelo tempo e pelo idioma, teríamos um mundo triste mundo sem Castro Alves, Lima Barreto, Jorge Amado, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, José Saramago. Um mundo tão medíocre quanto mutilado em suas melhores forças.
Mas isso ainda não é dizer tudo dessa literatura que ficaria tão desfigurada. Num rápido avanço, e tão rápido que não me afaste do título acima desenhado, uma das maiores incompreensões é a que retira do mundo da literatura a obra Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos. Uma negação estética que vem a ser estúpida, maldosa e desonesta. Em outro ataque, mais recente, desconhece-se o valor literário nas crônicas de Dom Hélder Câmara, de textos altíssimos no rádio, que ele chamava de Um Olhar sobre a Cidade. E agora chego mais perto do que me trouxe até aqui. Separar o literário do político e o político do literário seria o mesmo que não ver em Joaquim Nabuco um dos nossos mais geniais escritores. O que isso quer dizer? – Simples, digamos: o seu pensamento político, abolicionista, possuía uma forma de expressão que se não for literatura será literatura sob transparentes véus. Eu me refiro, por exemplo, a estas iluminações:
“A raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua. Suprima-se mentalmente essa raça e o seu trabalho, e o Brasil não será, na sua maior parte, senão um território deserto...
Os escravos, em geral, não sabem ler, não precisam, porém, soletrar a palavra liberdade para sentir a dureza da sua condição”.
A unidade entre o político e literário em Joaquim Nabuco chama atenção, para todo o brasileiro, no magistral capítulo Massangana, de Minha Formação:
“O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber.
Os primeiros oito anos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação, instintiva ou moral, definitiva… Passei esse período inicial, tão remoto, porém, mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal.”
Até este ponto, que luta entre o pensamento de um nobre liberal e um liberal sem mais nobreza:
“Tornei a visitar doze anos depois a capelinha de S. Mateus onde minha madrinha, d. Ana Rosa Falcão de Carvalho, jaz na parede ao lado do altar, e pela pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os escravos... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras escondidas pelas urtigas, era tudo quase que restava da opulenta ‘fábrica’, como se chamava o quadro da escravatura... Em baixo, na planície, brilhavam como outrora as manchas verdes dos grandes canaviais, mas a usina agora fumegava e assobiava com um vapor agudo, anunciando uma vida nova. A almanjarra desaparecera no passado. O trabalho livre tinha tomado o lugar em grande parte do trabalho escravo. O engenho apresentava do lado do ‘porto’ o aspecto de uma colônia; da casa velha não ficara vestígio... O sacrifício dos pobres negros que haviam incorporado as suas vidas ao futuro daquela propriedade, não existia mais talvez senão na minha lembrança. ... Debaixo dos meus pés estava tudo o que restava deles, defronte dos columbaria onde dormiam na estreita capela aqueles que eles haviam amado e livremente servido, ali, invoquei todas as minhas reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei no ar carregado de aromas agrestes, que entretém a vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes dilatava o coração e lhes inspirava a sua alegria perpétua. Foi assim que o problema moral da escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e com sua solução obrigatória”.
Se desprezamos o “livremente servido”, cresce imenso diante dos nossos olhos a evocação fundamental, terrível, de homens e mulheres esquecidos entre urtigas. Em frente ao columbário, edifício onde se guardavam os restos dos senhores, em cima do mato nos escravos, Joaquim Nabuco se determina o compromisso moral, definitivo, de integrar numa vida de tribuno e político a guerra contra a escravidão. Isso é o que se ressalta, entre a beleza e dor de uma volta ao cemitério do engenho, quando chama pelos nomes os sem nome do Brasil.
Trata-se de uma página de verdade histórica e poética, ao mesmo tempo que uma reflexão e resolução política realizadas nas circunstâncias da luta no Brasil. Joaquim Nabuco, as suas ideias, o seu pensamento radical, a sua visão de futuro, a percepção aguda da gente brasileira até hoje não superada, se mostra no que escreveu, na belíssima e permanente escrita que nos legou. Sem esforço, anotamos:
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”.
"Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão".
Joaquim Nabuco foi um homem culto e de gênio, que escrevia no papel as linhas da vida do Brasil. Desse desertor da sua casta, da sua classe, da sua raça, como o percebia Gilberto Freyre, sabemos hoje que fez o diagnóstico do Brasil que continua urgente, mais de cem anos depois. Pois continuamos sem reforma agrária e sem o fim da escravaria, nos campos, nas cidades.
Enfim, que não é um fim, quando agonizava no leito, Joaquim Nabuco falou para o médico:
"Doutor, pareço estar perdendo a consciência... Tudo, menos isso!"
E para todos leitores até hoje ele não a perdeu. E desse modo chego à explicação de que o 17 de janeiro de 1910 não foi o seu último dia. Foi o seu penúltimo. A consciência de Joaquim Nabuco permanece nas linhas, no traço da criança de oito anos que nunca esqueceu um escravo fugido no engenho Massangana. Em 17 de janeiro não houve o último dia. Para escritores, políticos e pensadores da altura do seu gênio, nunca chega um fim. E se algum dia chegar, ai de todos nós, ai da humanidade.
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