O perigoso cinismo do Império

“As intervenções dos EUA no planeta, quer via militar, quer via sanções, matam centenas de milhares de pessoas e arruínam muitos países”, destaca Marcelo Zero

Joe Biden
Joe Biden (Foto: Reuters/Kevin Lamarque)


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Por Marcelo Zero

“Nenhuma polegada para o Leste”. 

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Foi o que prometeu o então Secretário de Estado dos EUA, James Baker, a Mikhail Gorbachev, na reunião de 9 de fevereiro de 1990 para tratar da reunificação da Alemanha. 

Com efeito, em troca da aceitação da unificação da Alemanha por parte da então União Soviética, os EUA prometeram a Gorbachev que a OTAN não se expandiria nem uma polegada para o Leste e permaneceria nos limites da Europa Ocidental. 

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Posteriormente, os EUA tentaram desmentir essa promessa, mas documentos oficiais do Departamento de Estado, desclassificados em 2017, comprovam que ela foi feita.

Na realidade, os documentos oficiais revelam que a promessa foi feita não uma, mas três vezes, na reunião com Gorbachev, de 9 de fevereiro de 1990. 

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James Baker concordou com a declaração de Gorbachev, em resposta às garantias da União Soviética, de que “a expansão da OTAN é inaceitável”. Baker assegurou também a Gorbachev que “nem eu nem o presidente pretendemos extrair vantagens unilaterais dos processos que estão ocorrendo”, e que os americanos entenderam que “não só para a União Soviética, mas também para outros países europeus é importante ter garantido que, se os Estados Unidos mantiverem sua presença na Alemanha dentro da estrutura da OTAN, nem uma polegada da atual jurisdição militar da OTAN se espalhará na direção leste”.

Ressalte-se que o próprio Presidente George H. W. Bush havia assegurado a Gorbachev, durante a cúpula de Malta, em dezembro de 1989, que os EUA não tirariam vantagem das revoluções na Europa Oriental para prejudicar os interesses soviéticos.

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Entretanto, 33 anos após essas promessas, a polegada já virou milhares de milhas. 

Mesmo após o término da Guerra Fria, os EUA se aproveitaram da fragilidade da Rússia na década de 1990 e no início deste século para promover uma enorme expansão da OTAN para o Leste, que acarreta sérias ameaças de segurança para aquele país. 

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Em 1999, Polônia, Hungria e República Tcheca foram incorporadas à OTAN, apesar dos protestos russos. Numa grande segunda onda, concluída em 2004, Letônia, Estônia, Lituânia, Eslováquia, Eslovênia, Bulgária e Romênia também foram incorporadas, em meio a muitos protestos da Rússia. Em 2009, foi a vez da Albânia e da Croácia.  Em 2020, Montenegro e Macedônia do Norte também foram incorporadas à OTAN. 

Estão agora na fila das novas incorporações Bósnia e Herzegovina, Geórgia e Ucrânia. 

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Esses dois últimos países fazem fronteira com a Rússia e são estratégicos para sua segurança. No caso da Geórgia, há uma disputa de fronteiras que envolve a Ossétia do Sul, de maioria russa. No caso da Ucrânia, há também disputas territoriais que envolvem a Criméia e a região do Donbas, ambas de maioria russa. 

Observe-se que o atual regime ucraniano, surgido do golpe da “revolução laranja”, apoiado decisivamente por Washington, é fortemente hostil à Rússia e a russos em geral. Em 2019, por exemplo, o parlamento ucraniano aprovou lei que torna o idioma ucraniano praticamente o único idioma oficial da Ucrânia, uma afronta num país que sempre foi bilingue, e no qual ucranianos e russos conviviam de forma pacífica.  

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A bem da verdade, essa hostilidade contra a Rússia tem raízes históricas. Na Segunda Guerra Mundial, muitos grupos de ucranianos do oeste e do centro se aliaram aos nazistas contra a União Soviética. Eles promoveram o famoso massacre de Babi Yar contra os judeus de Kiev e forneceram muitos guardas para atuar nos campos de concentração nazistas. 

Na “revolução laranja”, grupos de extrema direita da Ucrânia, que se julgam herdeiros dessa tradição nacionalista e xenófoba, tiveram participação decisiva. 

Contudo, independentemente da natureza do atual regime de Kiev, o fato concreto é que a eventual incorporação da Ucrânia à Otan poderia colocar tropas dessa organização a apenas cerca de 500 quilômetros de Moscou. 

Dessa posição, um míssil de alcance intermediário, que pode ser lançado de plataformas móveis, poderia atingir a capital da Rússia em apenas 5 minutos, gerando um tempo de resposta defensiva extremamente curto. Considere-se que os EUA se retiraram do tratado com o Rússia, que regulava esse tipo de mísseis, na era Trump.

Essa séria ameaça não é, evidentemente, a primeira. A adesão da Estônia à OTAN, em 2009, já havia colocado São Petersburgo, a segunda principal cidade da Rússia, a menos de 200 quilômetros de um território controlado estrategicamente pelos EUA.

Agora, imaginem se fosse o contrário. Imaginem um cenário no qual a Rússia tivesse, por exemplo, incorporado ou tentado incorporar o Canadá (membro da OTAN) na OSTC, criando a possibilidade de inserir tropas ou mísseis no sul de Quebec, a apenas cerca de 500 quilômetros de Nova Iorque. Será que os EUA assistiriam a tudo passivamente? Evidentemente que não. Teriam reagido com extrema agressividade, como fizeram na crise dos mísseis de Cuba, no início da década de 1960, que levou o mundo ao borde uma guerra nuclear. 

Em comparação, a reação de Putin é bastante razoável, embora firme. Quer que os EUA firmem um tratado de não agressão com a Rússia e que a Ucrânia não entre na OTAN. É uma aposta na paz e na negociação. Não obstante, Biden e Blinken recusam. Por quê?

Porque sua aposta é no conflito e na rivalidade com a Rússia e a China. Querem encurralar e fragilizar esses países, vistos como “inimigos”, conforme apregoa a doutrina de segurança dos EUA, aprovada por Obama em 2010. Não querem negociar a sério, como demonstrado recentemente. Exigem, na realidade, rendição e submissão. A baixa popularidade de Biden, que tende a perder as eleições legislativas deste ano, aguça a necessidade de apresentar alguma “conquista”, no plano externo,

Querem criar um cenário semelhante ao da década de 1990, quando a Rússia estava muito fragilizada, a China ainda não havia emergido como um ator internacional de relevo e os EUA eram a única e inconteste superpotência do planeta. 

Na busca desse cenário, não vale apenas expandir a OTAN indefinidamente para o Leste europeu. Vale também transformá-la numa “OTAN mundial”.

De fato, a possível modificação do artigo 10 do tratado que criou a OTAN (Tratado de Washington), o qual limita seu alcance geográfico a uma parceria do Atlântico Norte, poderia transformá-la numa organização militar global, tal como aventado na conferência de Riga, em 2006. 

Nesse contexto, países que já possuem importantes parcerias com a OTAN, como Austrália e Japão, por exemplo, poderiam se tornar seus membros efetivos. O mesmo poderia valer para países como Índia (membro do Quad), Coreia do Sul, Taiwan etc.

Na América Latina, o Brasil, que já estabeleceu parceria com a OTAN, no governo Bolsonaro, poderia se transformar, nesse contexto, num membro dessa organização, expandindo definitivamente a influência norte-americana para o Atlântico Sul. 

Afinal, o governo Bolsonaro já inseriu subalternamente nossas Forças Armadas no Comando Sul dos EUA.

Essa aposta dos EUA em conflitos e em disputas, além de irrealista, pois o mundo não voltará à década de 1990, é extremamente perigosa. Perigosa para a economia internacional e a superação da crise, que demanda cooperação e um ambiente livre de sanções; e perigosa, sobretudo, para a segurança do mundo inteiro. 

Eles estão brincando com fogo nuclear.

As intervenções dos EUA no planeta, quer via militar, quer via sanções, matam centenas de milhares de pessoas e arruínam muitos países, como a história recente demonstra.

Tudo, evidentemente, em nome da “democracia” e da “liberdade”, como convém ao cinismo imperial. 

Cinismo que se estende por milhares de milhas. 

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