O perigoso caminho da Suíça para a extrema-direita
Leis supostamente criadas para ‘defender a democracia’ são na verdade instrumentos de defesa de uma ordem econômica particular: o neoliberalismo
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No dia 25 de setembro de 2020 o Parlamento Suíço aprovou a revisão da lei federal de combate ao terrorismo. A nova lei provocou muitos protestos, incluindo o lançamento de um referendo popular, um dos principais instrumentos da democracia direta como praticada na Suíça, permitindo aos cidadãos rejeitar decisões tomadas pelo Parlamento. São necessárias 50.000 assinaturas válidas – confirmadas pelas autoridades competentes, com endereço correspondente à assinatura – para que um referendo seja aprovado. Devido à pandemia, a colheita de assinaturas têm sido feita principalmente por internet, mas os números parecem já ter ultrapassado o dobro das assinaturas necessárias.
Esta reação popular à nova legislação se explica e é muito bem vinda pois, de acordo com o site das entidades responsáveis pelo referendo (https://detentions-arbitraires-non.ch/), a nova lei pode abolir a presunção de inocência:
‘As medidas previstas na nova lei não são ordenadas por um tribunal, mas pela Polícia Federal, com base em meras suspeitas (não são necessárias provas). A falta de um órgão de controle judicial é uma violação da separação de poderes. Além disso, estas medidas violam claramente os direitos fundamentais e os direitos humanos.’
A lei também viola a Convenção Européia de Direitos Humanos, ainda segundo o site mencionado:
‘A nova lei prevê a possibilidade de aplicar a prisão domiciliar. (...) Pode ser aplicada sem que exista realmente um crime e não requer provas como o local ou a data do alegado crime. Qualquer pessoa pode ser punida com esta medida durante seis meses e sem necessidade de provas. Esta privação de liberdade representa uma violação da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O artigo 5º da Convenção Europeia de Direitos Humanos proíbe a privação arbitrária de liberdade com base unicamente na suspeita. A Suíça seria assim a única democracia ocidental que permitiria a prisão de cidadãos sem qualquer razão. As únicas exceções são os Estados Unidos com os campos de Guantanamo.’
E ainda mais grave, a nova lei também viola a Convenção relativa aos Direitos da Criança, pois suas medidas ‘podem ser aplicadas a crianças a partir dos 12 anos de idade, respectivamente 15 anos de idade para prisão domiciliar, novamente sem ordem judicial.’
Cerca de cinquenta professores de direito da Suíça comunicaram as suas preocupações em relação à esta lei ao Conselho Federal. (https://www.amnesty.ch/de/laender/europa-zentralasien/schweiz/dok/2020/antiterror-gesetz-aushoehlung-des-rechtsstaates/pmt-offener-brief.pdf).
E peritos do próprio Alto Commisariado para os Direitos Humanos da ONU advertiram que esta nova legislação ‘viola as normas internacionais de direitos humanos ao expandir a definição de terrorismo, criando um precedente perigoso para a supressão da dissidência política a nível mundial (...).’ (https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=26224)
Os peritos do Alto Commissariado da ONU ‘ficaram particularmente alarmados com o fato de a nova definição de ‘atividade terrorista’ da lei já não exigir a perspectiva de qualquer crime. Pelo contrário, pode mesmo abranger atos lícitos destinados a influenciar ou modificar a ordem constitucional, tais como atividades legítimas de jornalistas, da sociedade civil e de ativistas políticos.’
Os peritos também criticaram o fato de que a nova lei concede ‘à polícia federal ampla autoridade para designar ‘potenciais terroristas’ e para decidir sobre medidas preventivas contra eles sem um controle judicial significativo.’
Sob o pretexto de ‘luta contra o terrorismo’, muitos governos procuram suprimir qualquer crítica legítima ao modelo neoliberal. Deste modo, leis supostamente criadas para ‘defender a democracia’ são na verdade instrumentos de defesa de uma ordem econômica particular: o neoliberalismo. O que é novo na legislação da Suíça é a possibilidade de criminalização de jovens: a partir de 12 anos (!) como mencionado acima. O alvo óbvio desta criminalização é o movimento dos jovens pelo clima. Um número cada vez maior de jovens tem se manifestado nas ruas em diversas partes do mundo com críticas à falta de ação efetiva dos governos em relação à gravidade da mudança climática, denunciando com muito vigor a incompatibilidade entre o capitalismo neoliberal e a preservação ambiental. Este movimento tem crescido exponencialmente na Suíça, tornando-se uma força política considerável.
Em setembro de 2018, por exemplo, aconteceu em Berna a maior demonstração já registrada na história da cidade: cerca de 100.000 pessoas, na sua vasta maioria jovens, tomaram as ruas em protesto.Este movimento teve um impacto decisivo nas eleições para o Parlamento que se realizaram a seguir, em outubro, levando o Partido Verde a obter a maior votação de sua história.
No dia 21 de setembro de 2020 os jovens ativistas ocuparam a Praça Federal em Berna, em frente à sede do Parlamento. Esta ação teve muita repercussão na imprensa internacional e mensagens de apoio aos ativistas vieram de várias partes do mundo, inclusive do MST e de vários parlamentares do Brasil. (ver em https://www.brasil247.com/blog/o-movimento-dos-jovens-em-defesa-do-planeta-ou-o-bolsonarismo-chegou-na-suica)
A ocupação, totalmente pacífica, foi terminada pela polícia e gerou reações histéricas por parte de muitos parlamentares e de grande parte da imprensa na Suíça, condenando a ação ‘ilegal’ dos ativistas. Alguns parlamentares solicitaram que o Serviço Secreto passasse a investigar os jovens e mais recentemente um outro parlamentar suíço chegou a comparar a ocupação com a invasão do Capitólio pelos manifestantes da extrema-direita dos EUA!
Pela nova lei, a maioria dos jovens envolvidos na ocupação poderia ser acusada de ‘terrorismo’, sofrendo as punições previstas. Lutar pelo futuro do planeta passou a ser um ‘crime’ a ser punido pelo Estado!
Mas como foi possível que uma legislação que permite a criminalização de crianças à partir de 12 anos como ‘ terroristas’ tenha sido proposta e aprovada pelo parlamento da democrática e esclarecida Suíça? Uma tal legislação tem sido há muito o sonho da extrema direita no Brasil, que tem trabalhado ferozmente pela possibilidade de criminalizar tanto os movimentos sociais quanto os jovens. Bolsonaro e seus apoiadores adorariam ter uma lei semelhante no Brasil e provavelmente vão tentar seguir este exemplo da Suíça.
As forças políticas por trás desta lei tem uma longa história, que em parte é também a história da construção da própria ordem neoliberal. Numa obra importante – The Road from Mont Pélerin – uma coleção de ensaios de vários autores sobre a história do neoliberalismo, Dieter Plehwe escreveu na ‘Introdução’:
A dimensão transnacional da história local / nacional do neoliberalismo tem sido particularmente forte no Reino Unido e nos Estados Unidos da América. A Suíça também merece reconhecimento como um espaço neoliberal transnacional particular devido à hospitalidade dos intelectuais e instituições neoliberais suíças aos neoliberais austríacos, alemães e italianos refugiados. Não foi certamente mera coincidência que a Sociedade Mont Pèlerin tenha sido fundada neste país: apenas a Suíça forneceu aos intelectuais neoliberais o espaço intelectual e institucional e o apoio financeiro necessário para organizar uma conferência internacional de e para os neoliberais logo após a Segunda Guerra Mundial. Até ao final dos anos 50, continuou a ser mais fácil para os neoliberais reunirem-se na Suíça do que em qualquer outro lugar: quatro das dez reuniões da Sociedade Mont Pèlerin entre 1947 e 1960 ocorreram na Suíça. Levou mais de dez anos após a guerra para que uma reunião se realizasse nos Estados Unidos.
As forças políticas e econômicas que fizeram a Suíça tão receptiva à ideologia neoliberal, fornecendo ‘aos intelectuais neoliberais o espaço intelectual e institucional e o apoio financeiro necessário’ antes de qualquer outro país, continua atuando e são as principais responsáveis pela nova lei.
Em um outro ensaio em The Road from Mont Pélerin Keith Tribe escreveu: ‘O que distingue o neoliberalismo do liberalismo clássico é a inversão entre as relações políticas e econômicas. Os argumentos pela liberdade tornam-se econômicos e não políticos, identificando a impessoalidade das forças de mercado como o principal meio para assegurar o bem-estar popular e a liberdade pessoal.’
Deste modo, qualquer crítica ao neoliberalismo se transforma numa crítica à própria liberdade, devendo, portanto, ser punida pelo Estado como ‘terrorismo’.
Ainda nesta obra, Rob van Horn e Philip Mirovsky observaram que o ‘neoliberalismo é, sobretudo, uma teoria de como reorganizar o Estado de modo a garantir o sucesso do mercado e dos seus participantes mais importantes, as grandes corporações.’
Mitas dessas grandes corporações tem sido justamente o alvo das críticas mais contundentes do movimento pelo clima, causando um enorme dando à imagem pública das mesmas. Não é de surpreeder, então, que os ‘participantes mais importantes do mercado’ estejam por trás da elaboração de uma legislação específica para controlar estes ‘abusos’.
Que uma tal lei antiterror tenha sido aprovada pelo Parlamento da Suíça revela o poder da ideologia neoliberal dentro deste país e a capacidade das grandes corporações de influenciar governos e legislações mesmo numa reconhecida democracia como a da Suíça. Num momento em que o neoliberalismo fracassa em todo o mundo, uma reação do establishment neoliberal era de se esperar. Pois o neoliberalismo só consegue se manter pela mentira, pela força ou por uma combinação dessas duas. Mas a mentira neoliberal não consegue iludir mais ninguém, o fracasso é por demais visível e eloquente. Para a sua sobrevivência, restam ao neoliberalismo apenas a violência e a repressão, por todos os meios possiveis, inclusive os legais.
A tradição humanitária e democrática da Suíça está agora nas mãos dos seus jovens ativistas. O movimento pelo clima tem o potencial de transcender fronteiras e gerações, de unir o Norte e o Sul do planeta numa luta comum pela nossa mãe Terra contra seus exploradores. Mas a reação combinada do poder econômico e do poder de Estado pode ser demasiada e leis como esta mostram claramente os riscos e perigos a que estes jovens estão expostos. Cabe a cada um de nós agora apoiar esta luta, com a alegria, a criatividade e o carinho que a preservação da vida merece.
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