O ódio de André Valadão e os inimigos fictícios da extrema direita
Politização, no Brasil, que é uma espécie de laboratório contemporâneo do nazifascismo, da teocracia e do Estado narcomiliciano, é questão de sobrevivência
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A extrema direita no Brasil, numa tentativa insana de sobrevivência, cada vez mais distante, tem tentado dobrar a aposta em suas estratégias que antes conseguiram enganar (ou despertar) tantas pessoas. Cada vez mais fracas, as lacrações, as frases de efeito e as fake news estão fazendo ecoar a frase de Karl Marx em sua obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
Mas o fato é que nós precisamos ficar cada vez mais atentos, pois essa “farsa” não tem nada de inofensivo.
Os políticos que restaram do rebotalho bolsonarista gritam cada vez de forma mais estridente, mas também cada vez de forma mais kamikaze. Subprodutos como Sergio Moro, Nikolas Ferreira, Carla Zambelli, Caroline de Toni, Julia Zanata, Gustavo Gayer, Ricardo Salles, Damares Alves e todos os filhos de Bolsonaro já partiram, há muito tempo, cada vez de forma mais ensandecida, para o tudo ou nada.
Por sua vez, também os meios de comunicação empresarial continuam apostando na estratégia velha que os fez engambelar e seduzir tantos brasileiros, acordando os velhos racismos e todos os tipos de preconceito da nossa autoproclamada elite. Continuam se arvorando “o quarto poder” com delirantes prerrogativas (falsas) de escolherem quem é o representante ideal para as elites e oligarquias brasileiras. Uma prova disso foi o palco recentíssimo de horas que veículos como a Globo deram a Sergio Moro quando daquela “ameaça” sofrida pelo lavajatista nas mãos do PCC. Isso depois de o paranaense ter sido desmascarado pelo STF e pela obviedade dos fatos como juiz parcial. Tragicomédia ou farsa?
A bolsonarosfera também segue enlouquecida com as tias e tios do Zapzap disparando loucuras como o “absurdo” de se baixar o preço da gasolina e da cesta básica.
Não podemos continuar tendo um enorme passado pela frente, como disse Millôr Fernandes, nem sendo o país do passado como disse Georg Wink. Muito menos permitindo que valha o conhecido dito francês plus ça change, plus c´est la même chose (“quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem a mesma coisa”).
Agora, estamos num momento de crise, e momentos de crise são oportunidades históricas de se mudarem paradigmas concretos. Não se trata de utopia, mas de materialidade histórica. Antes, estávamos patinando num labirinto, mas agora o que temos diante de nós é uma encruzilhada. No labirinto, não há muito o que fazer, senão repetir erros. Na encruzilhada se pode optar por construções que levem ao crescimento.
Se estivéssemos na metade do século XIX, nós, progressistas de 2023, seríamos os abolicionistas, ao passo que a extrema direita encarnaria o papel de escravocratas. Um parêntese: eu não sei se o Brasil tem, neste momento (ou até em outro da sua história), uma mera “direita” quer não seja, na verdade, uma EXTREMA direita. Nós, os novos abolicionistas, estamos lidando com um tipo de direita renhida em questões que possuem semelhanças e raízes indubitáveis com movimentos que culminaram nos nazifascismos.
Uma das características da nova extrema direita, no entanto, é o fato de que ela se vale das instituições democráticas para chegar ao poder e, uma vez lá, atentar severamente contra a mesma democracia. Assim, destaco dois institutos democráticos hackeados por esses extremistas: o voto e a liberdade de expressão.
Sobre o voto, não preciso, aqui, falar mais na loucura dos bolsonaristas de acreditarem que as urnas eletrônicas não são fidedignas, quando o líder deles e todos os seus filhos estão apeados ao poder há décadas justamente através dos votos das urnas eletrônicas. Mas racionalidade nem de longe é o forte do bolsonarismo, que possui mentalidade de seita.
Sobre a liberdade de expressão, que não é um bem absoluto, uma vez que esbarra no direito de outras pessoas, bolsonaristas também alardeiam que estão sendo tolhidos. Na verdade, eles são PUNIDOS cada vez que, na sua liberdade de expressarem seus pensamentos contra a civilização, cometem crimes.
Seria interessante observar, por exemplo, a percepção de Foucault ao fazer a correspondência entre liberdade e disciplina. Para Foucault, a liberdade adquirida desde o pensamento iluminista não diminuiu, mas sim aumentou a necessidade de disciplina. Se esse binômio liberdade-disciplina não fosse equalizado, a civilização se transformaria em barbárie. Aqui, posso destacar dois livros que tratam do tema dos limites que as democracias devem impor às “liberdades individuais” a fim de que o bem coletivo seja preservado e progrida: Facundo: civilização e barbárie, de 1845, de autoria de Domingos Faustino Sarmiento (que viria a ser o presidente da Argentina) e O mal-estar na civilização, de 1930, de Sigmund Freud.
Com todas essas farsas da extrema direita tão desmascaradas – e aqui é preciso enaltecer o papel da mídia progressista –, os discursos vão se tornando cada vez mais nonsense, em nome de uma falaciosa liberdade de expressão, mas também cada vez mais perigosos e virulentos em suas expressões. Os meios de comunicação progressistas têm a árdua tarefa de servir como veículos de politização da população, criando massa crítica. Sem isso, as ameaças virão cada vez mais em forma de farsas, mas poderão ter a capacidade de convencer analfabetos políticos.
Politização, no Brasil, que é uma espécie de laboratório contemporâneo do nazifascismo, da teocracia e do Estado narcomiliciano, é questão de sobrevivência e condição de existência básica das instituições e da democracia, em crise severa no Brasil desde sempre, com acirramento durante o laboratório Temer-Bolsonaro.
O ódio contra os homossexuais, por exemplo, não é novidade no Brasil. A constante relação misturada e abusiva entre religião e poder na história brasileira (que se iniciou com a igreja católica e agora se divide com os evangélicos) sempre buscou criar e propagar o famoso pânico moral no que eles intitulam como pauta de costumes. O falso “kit gay”, a “mamadeira de pênis”, o “ativismo gay” (como se os gays quisessem convencer alguém a se “converter”), a “ideologia de gênero”, as falas aterrorizantes e pervertidas de Damares, por exemplo de que crianças teriam dentes arrancados e comeriam comida pastosa para serem vendidas como escravas, são das narrativas mais hediondas da história do Brasil.
A população LGBTQIAPN+ é alvo da sanha direitista desde sempre. Mais recentemente na história, com a organização metódica do capitalismo industrial, o Zeitgeist vitoriano e depois eduardiano, e a belle époque, nosx séculos XIX e XX, sublinharam fortemente o arranjo matrimônio-patrimônio / mãe-pai calcado exclusivamente na ideação de um homem e uma mulher se unindo para se reproduzirem e gerarem mão de obra mais barata (operários) e contingente de compradores (consumistas) para os produtos vindos da escala industrial. Isso demonizou ainda mais, de uma forma diferente, os dissidentes da sexualidade heteronormativa.
No século XX, é famosa a frase de Margaret Thatcher ao dizer que “essa coisa de sociedade não existe, o que existe são homens e mulheres individuais e suas famílias”, desprezando a atuação do Estado como algo que interfere em aspectos sociais e antropológicos, como por exemplo a distribuição de riqueza, as ações afirmativas em prol de grupos excluídos, o princípio constitucional E DEMOCRÁTICO da proporcionalidade (dar de maneira diferente aos que são tratados de maneira diferente), que resulta em políticas de cotas, por exemplo. Essa ideia de Thatcher é muito fiel aos princípios vitorianos de comportamento-capitalismo, e, levadas a níveis exacerbados, nada mais são do que o anarcocapitalismo, a lei da selva, a lei do mais forte.
Sobre costumes, um contemporâneo de Margareth era Ronald Reagan, que era visto com frequência fazendo “piadas” que envolviam a aids e a população gay, bem ao gosto das “piadas” dos tios e tias bolsonaristas e do próprio clã Bolsonaro.
A democracia e o ETADO DEMOCRÁTICO são justamente meios que nos livram dessas barbáries, independentemente do poder socioeconômico e até sociocultural de cada um de nós. Sem essa ação de freio estatal, nos transformaríamos na SELVA que os bolsonaristas gritam como se se trtasse de algo bom à sociedade.
Como psicanalista, não posso deixar de observar que há uma severa projeção nessa obsessão dos homotransfóbicos, seguida de formação reativa e retorno de conteúdos recalcados nas formas clássicas de ansiedade, angústia e ódio contra o que se quer esconder.
Há muito a se esconder e muito ato-falho em toda a comitiva, sempre masculina, formada por farsantes da nova musa máscula da direita, os machos alfa redpill... Quanto ódio pelas mulheres revelado, quanto prazer em estarem sempre cercados de machos alfa, em motociatas e clubes de tiro, com desprezo às mulheres. E um ódio aos homossexuais que não é nada mais nada menos do que todo um conteúdo de autorreconhecimento que precisa ser colocado debaixo do tapete do Inconsciente.
Mas o Inconsciente é infalível: ele transborda todo o lixo que tentam colocar dentro dele, porque o Inconsciente não é uma lata de lixo, e não admite ser tratado como tal.
Mas quero enfatizar que o Brasil é o país dos paradoxos que convivem. Ao mesmo tempo em que a direita grita cada vez mais absurdos, a esquerda por sua vez prossegue em seu trajeto progressista de forma cada vez mais nítida também.
E esse duplo movimento paradoxal, como sabemos, não vem de hoje no Brasil. Pelo contrário, ao estudarmos nossa história e nossa antropologia, veremos que se trata de um fator que sempre precisa ser considerado.
O conservadorismo histórico brasileiro pode ser sintetizado como uma corrente de pensamento que difunde que todas as coisas devem ser CONSERVADAS como sempre foram. Com elites e oligarquias ao centro, rodeadas por um contingente enorme (de escravos, mão de obra, operários, consumidores...) sempre na periferia, marginais aos processos de decisão política efetiva. Isso é um simulacro de democracia.
Assim como na era vitoriana-eduardiana e na Idade Média, a religião e a catequese são usadas como pretextos e panos de fundo para CONSERVAR esse status quo.
Posso mencionar Sérgio Buarque de Holanda com sua obra Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Também em O povo brasileiro: formação e sentido do Brasil, Darcy Ribeiro fala do “salvacionismo”, espécie de vocação abstratizante e teocrática das nossas elites e oligarquias, como força que CONSERVA a exclusão de classes humilhadas.
Até a fundação da nossa república (15 de novembro de 1889) se deu com forças conservadoras, e não progressistas. É o que nos mostram as chamadas “três questões” republicanas: a “questão” do prestígio do exército brasileiro na guerra do Paraguai (1864-1870), a “questão” religiosa, da prisão de Dom Vital (que se tornou o nome de uma atual instituição fundamentalista católica) por Dom Pedro II e a “questão” da abolição da escravatura (1888), que reuniu o ódio das oligarquias escravocratas brasileiras contra o ancien régime que existia no Brasil.
Também é sintomático que o Brasil só tenha fundado sua primeira Universidade, em 1920, porque o rei da Bélgica (Albert I, com sua esposa, a rainha Elisabeth da Bélgica) viria ao país e, como tradição, precisaria ser nomeado com um título de Doutor honoris causa, o que necessitava da existência de uma Universidade.
E, do outro lado, o progressista, basta dizer que o Brasil parece ser o único país da América Latina que conta com uma teorização coerente sobre sexualidade. As obras de Luiz Mott e João Silvério Trevisan nos fornecem prova incontestável disso. Algumas obras de Luiz Mott que podem ser indicadas: Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: ícone, 1988. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. O sexo proibido: virgens, gays e escravos rias garras da Inquisição. Campinas: Papirus, 1988.
Trevisan relançou seu clássico Seis tiros num buraco só: a crise do masculino justamente no meio do governo de Jair Bolsonaro, autointitulado “imorrível, imbrochável e incomível”, atualizando a obra com a “nova” estratégia (de sempre) da extrema direita brasileira durante os anos de chumbo de Temer e Bolsonaro.
David William Foster, da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA), escreve sobre o tema. Trazemos trecho seu:
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“De fato, o Brasil pode contar, bibliograficamente falando, com os primeiros textos sobre a homossexualidade: O Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha e O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo. É verdade que o romance de Caminha utiliza a figura do homossexual como eixo de várias linhas de força do poder, poder étnico, racial, social e sexual: se bem que Caminha não se interesse numa defesa do homossexual (antes tende a lamentar a situação do marginalizado), acaba fornecendo o primeiro retrato do novo fenómeno constituído pelo discurso jurídico-médico da época. No caso de O cortiço, o enredo em tomo de Pombinha, embora ocupe apenas um fragmento deste romance naturalista, desempenha um papel crucial pois, em certa medida, constitui o ponto de contato entre o nacional e o estrangeiro. Além disso, a experiência da jovem com a cortesã Libidinosa e lésbica provoca a maturidade menstrual da moça, possibilitando assim que passe a ocupar seu lugar produtivo no esquema social. Estes dois textos estabelecem uma tradição, não só em termos do tratamento mais ou menos explícito da sexualidade na literatura brasileira, mas também da homossexualidade muito antes da temática se tomar comum, nos últimos vinte anos, na literatura latinoamericana. Parker, em seu estudo Bodies, Pleasures, and Passions, ao detalhar o desenvolvimento da ideologia da higiene sexual no Brasil, mostra como falar do sexo queria dizer basicamente falar da necessidade do seu controle no âmbito da administração da sociedade moderna. Neste sentido, seria impossível encontrar na bibliografia oitocentista análises que propiciassem qualquer dimensão de "liberação sexual", sendo estas obras, na sua maioria, dignos exemplos—e, no seu momento, influentes—da tecnologia do sexo e do corpo.
Peter Fry, na coletânea de ensaios intitulada Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira, estabelece dois princípios para a pesquisa sobre o tema: 1) a(s) ideologia(s) sexual(is) no Brasil nada têm a ver como aberto erotismo que as interpretações paradigmáticas—especialmente as do turismo estrangeiro—pretendiam fornecer, nem se vinculam às versões da cultura popular que se prestam a rápidas imagens de carnalidade libidinosa; 2) o discurso oficial do sexo no Brasil tem como agenda fundamental apresentar um conceito "civilizado" do país, no qual as possíveis fontes de libidinosidade desaparecem, sanitarizam-se ou ficam circunscritas (ademais de serem entendidas sobretudo em termos oposicionais perante critérios europeus e ocidentais) à cultura indígena, à cultura negra, à cultura imigrante e em toda cultura que seja um amálgama de qualquer elemento não-“branco". Aliás, a cultura "branca" se normaliza e fica regulada de maneira a proporcionar uma sólida base de decência, adequada, como que "para inglês ver". Se é necessário fornecer ao o inglês (aqui entendido na acepção de um observador externo, provavelmente um estrangeiro) certa imagem social de uma sexualidade higiénica, ativamente cultivada, é também rigorosamente preciso oferecer à contemplação do olhar de quem está fora uma vigorosa depuração de quaisquer elementos em dissonância com tal imagem social. Este duplo processo embutido no projeto oficial no que diz respeito ao sexo—depuração e culto—constitui o núcleo gerador de estruturas ainda muito resistentes à mudança no Brasil, e cujo reforço funcionou, efetivamente, como uma dimensão importante do golpe militar do 64. Para consolidar este discurso hegemónico, Fry alude à premissa, na história institucional do Brasil, da medicina e da psicologia; seu intento vem a ser, no fundo, uma recodificação destes dados, lançando mão, agora, de uma teorização pelo viés da antropologia social.”
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O que podemos concluir com tudo isso? Que o pânico moral promovido pela direita e pela imprensa hegemônica é uma tradição do Brasil desde suas raízes mais profundas, antes mesmo de termos sido invadidos pelas frotas portuguesas em 1500. Assim, os bodes expiatórios que André Valadão e seus assemelhados escolhem continuarão a existir, porém de forma cada vez mais caricatural e expressados de modo cada vez mais grotesco e atentando contra o Estado democrático de direito, avesso à barbárie.
E que, por outro lado, há no Brasil uma série de forças progressistas que parecem aumentar à medida que suas contracorrentes puxam mais forte para o lado conservador. Destaco, mais uma vez, a importância essencial que as mídias progressistas desempenham.
Cabe a nós entendermos isso e continuarmos promovendo a politização das massas, para não precisarmos enveredar por anos de chumbo (21 anos, na ditadura militar, ou 6 anos, na insanidade Temer-Bolsonaro) a cada período de tempo. A história mostra que mais ou menos a cada 30 anos surge no Brasil um outsider completamente delirante e amalucado, mas igualmente perigoso. Assim foi com Janio Quadros, Collor, Bolsonaro.
Não precisamos mais repetir essa lição. É preciso desmascarar as tragédias e as farsas que a direita tem para nos oferecer. Os inimigos fictícios, que na verdade são todas as pessoas que não aderem ao ethos restrito do ódio que bolsonaristas trouxeram de dentro de seus Inconscientes, precisam ser cada vez mais empoderados, ter cada vez mais lugar de fala e ser cada vez mais politizados para não caírem no fascismo introjetado que acomete pessoas de classes oprimidas que se tornam opressoras. Trata-se de uma contraofensiva, que necessita de estratégia, método e persistência.
Esse ódio irracional, indisciplinado e sectário precisa ser combatido com instrução e politização.
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