O necrarca e o candidato de centro
Temo que, percebendo sua inviabilidade eleitoral, sem um discurso unificador e posicionado na periferia do centro, Ciro tente dar uma faca em si mesmo, emulando a estratégia do Necrarca. Não funcionará. Jamais existirá um cirismo, porque em Ciro não se vê um projeto, mas apenas a projeção do seu ressentimento, o cabra é um pote até aqui de mágoa
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Todos o sabemos, o Brasil está sendo presidido por um Necrarca (Necro+arkhe = senhor da morte).
E essa não é apenas uma digressão morfológica, mas uma questão conceitual.
Creio que chamar o presida de Thanatus, como já o fizeram alguns, é impreciso. Thanatus é a morte propriamente dita, já o nosso Necrarca é aquele que dita a morte.
Dito isto, digo mais.
O Brasil já foi presidido por dois ciganos, JK e Washington Luís. Também já foi comandado por um Jaburu Usurpador, de origem libanesa.
Já tivemos diversos presidentes católicos e fomos chefiados por um FHC confessadamente ateu.
Como o Brasil é um país múltiplo e diverso, os empresários da fé, esses homens de bens e de bufunfas, acreditam que se aproxima a hora de emplacar o primeiro presidente terrivelmente evangélico.
Porém, apesar de já figurarem nas câmaras de vereadores Brasil afora, e já contarem com deputados estaduais, federais e até senadores, os evangélicos ainda não encontraram um nome que vá além do seu rebanho.
O irascível Silas Malafaia, uma espécie de Ciro Gomes de púlpito, não é consenso nem entre os evangélicos.
No entanto, para a minha surpresa, abro os jornais e só vejo o desespero dos bilionários que comandam a mídia e o mercado em busca de um candidato de centro.
Surpreso com a novidade e propenso a religiar tudo, fui à floresta consultar o meu oráculo, o sapiente Cacique Papaku, para saber se esse candidato de centro seria um espírita ou um babalorixá.
Papaku sorriu da minha ingenuidade política.
Explicou-me que, nessa diegese, o centro é um lugar imaginário entre a direita e a esquerda, e me aconselhou a procurar uma entidade, no seio da floresta, para esclarecer minhas dúvidas.
Subi no meu pangaré rocinante e rasguei a vegetação agreste com os peitos.
Um dia inteiro a cavalo dentro da mata - pocotó, pocotó, pocotó -, o silêncio sendo quebrado a trotes, as aves amuadas nas árvores, o mugido mudo do gado magro e o sol gritando surdo no céu: “sai do mei que lá vai fogo”.
Pocotó, pocotó, pocotó; as fustigações abrasivas tostando a pele de um e o pelo do outro.
No caminho, lembrava que Ciro Gomes arvorara-se a ser esse tal candidato de centro, não sendo ele kardecista e nem macumbeiro; “estanho”, pensei.
A noite sendo.
Ao surgir as primeiras estrelas no céu, apeei o rocinante esbaforido no tronco de um angico, improvisei um cocho de cabaça seca, despejei nele toda a água do cantil e segui mata adentro.
Mais hora e meia de caminhada, os lábios crispados de ressecamento, a cabeça enfurnada em forno, as pernas bambas com dores láticas e o facão cortando caminhos: chape, chape, chape...
“Pai Ciro, do alto dos seus 4%, acredita que o Necrarca (30% ou mais) não irá ao segundo turno, que será disputado entre ele e Lula. Como se vê, trata-se de uma questão de fé, ou de má fé, não de aritmética”.
Esses são meus pensamentos pensando sozinhos, o excesso de sol causa vertigens e delírios.
Finalmente, ouvi o gorgolejar da água em rodopios, num esfregar sensual e sinuoso por entre os lisos seixos de pedras.
Rasgando a árida e sépia paisagem, o riacho serpenteava, iluminado pelo luar do sertão (“não há, oh gente, oh não...”), as margens pedregosas e chapadeiras. E o pensamento pensando:
“Na verdade, Ciro sabe que não tem a menor chance, ele não nasceu ontem, e o que pretende é sabotar mais uma eleição do Petê. Com essa conversa mole de que Bolsonaro está fora do jogo, Ciro abre caminho para bater, sem dó e nem dor, no nosso Lula Livre, sua terrível obsessão”.
Mais quarenta minutos de caminhada água adentro e lá estava o poço encantado indicado pelo Cacique Papaku, quase redondo: a água vestida de uma coloração ferrosa, provocada pela sedimentação das folhagens, refrescada pela umbrosa sombra ciliar; o véu da cachoeira lacrimando.
A água, que batia com força nas pedras, libertava os cristais liquefeitos e se expandia, formando um souvenir de arco-íris; duas borboletas amarelas adejavam em volta, um sedento papa-capim equilibrava-se numa pedrinha musgosa e lambia o líquido saciante.
Sentada sobre uma pedra seca, mas dentro d’água, estava ela: espelho na mão, escovando os cabelos longos e anelados com um pente de relva, as costas nuas, o busto nu, a cintura delgada equilibrando uma saia longa.
“Eparrey”, eu gritei em saudação. “Quem vai aí?”
“Sophia”, ela respondeu.
“Sophia de quem?”, redargui.
“Sophia de Iansã. Quem vem lá?”, inquiriu a magnífica criatura.
“De minha parte é espírito de luz. Venho por indicação do venerando Mestre Cafuna e do honorífico Cacique Papaku”, respondi.
“Mergulhe”.
Mergulhei. O corpo inteiro transparecendo na limpidez da água, emergi já na pedra onde Sofia esperava-me sentada e danei a falar:
“Na direita já temos um candidato raiz, o Necrarca, apoiado por seus Thantus fiéis e inseparáveis; a esquerda pertence a Lula; isso coloca Ciro no centro, me parece uma boa posição...”
“Alto lá”, cortou-me a entidade, “no momento, Ciro é candidato a candidato do centro, ele não está em disputa com o Necrarca e nem com Lula, a refrega de Ciro é com os anões Danilo Gentili e Mamãe Falei, com o minúsculo Luciano Huck e com o ínfimo Mandetta. Nesse cenário, Ciro corre sério risco de ficar pelo caminho e ser derrotado pelo comediante”.
“Mas Ciro sempre terá Paris”, obtemperei.
“O problema é que Paris nunca terá Ciro, o pária”, redarguiu o ser encantado, “espírito obsessor, Ciro tenta emplacar como vice o mindinho ACM Kid, aquele sujeito que bravateou um dia que surraria Lula; serão surrados os dois, nas ruas e nas urnas.”
Disse isso e mergulhou, sereiamente.
Como que num encanto, seu corpo se liquefez e ela desapareceu; tudo ali era água, a entidade não deixou vestígio.
Vestido em sua curtíssima tanga de penachos, Papaku me observava do alto da cachoeira, sorridente.
“É isso”, pensei comigo, “assim como fizeram com Heloisa Helena, Marina Silva e Cristovam Buarque, os bilionários se divertem batendo palmas para os delírios de Ciro, ele é útil enquanto faz do seu ressentimento uma arma para tentar destruir a reputação do sapo barbudo, mas ninguém leva o sujeito a sério, é uma espécie de aríete com o qual tentam arrombar a porta, mas uma vez a porta aberta, ele não entra”.
Temo que, percebendo sua inviabilidade eleitoral, sem um discurso unificador e posicionado na periferia do centro, Ciro tente dar uma faca em si mesmo, emulando a estratégia do Necrarca.
Não funcionará.
Jamais existirá um cirismo, porque em Ciro não se vê um projeto, mas apenas a projeção do seu ressentimento, o cabra é um pote até aqui de mágoa.
Suspeito que o destino de Ciro é virar meme, entrar para o anedotário nacional e viver para sempre no folclore dos políticos brasileiros, uma espécie de mula sem cabeça engravatada.
Palavra da salvação.
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