'O mundo está se tornando mais multipolar', a hegemonia ocidental está declinando, admite o Banco Central Europeu
A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, reconheceu que “as placas tectônicas da geopolítica estão se deslocando mais rapidamente”
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Originalmente no Geopolitical Economy. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, fez um discurso reconhecendo que "as placas tectônicas da geopolítica estão se deslocando mais rapidamente" e "podemos ver o mundo se tornando mais multipolar", com o declínio da hegemonia do dólar americano, a guerra na Ucrânia e a ascensão da China.
"Poderemos ver mais multipolaridade à medida que as tensões geopolíticas continuarem a aumentar", acrescentou Lagarde.
O editor-chefe do Geopolitical Economy Report, Ben Norton, analisou o discurso de Lagarde com Radhika Desai, professora do Departamento de Estudos Políticos da Universidade de Manitoba e diretora do Geopolitical Economy Research Group:
No seu discurso de 17 de abril, intitulado 'Bancos centrais num mundo em fragmentação”, a presidente do Banco Central Europeu citou a “crescente rivalidade entre os EUA e a China”. Lagarde declarou:
Então, eu decidi aceitar a ideia, e eu o faço relutantemente, porque eu não penso que esta é necessariamente uma imagem bonita, mas aceitar a ideia de que estamos nos movendo na direção de um mundo fragmentado, ou mais fragmentado do que temos tido, e que nós não estamos necessariamente numa situação completamente bipolar, mas que poderemos nos mover naquela direção.
Nós estamos testemunhando uma fragmentação da economia global em dois blocos competidores, com cada bloco tentando puxar o quanto mais possível o resto do mundo para mais perto dos seus respectivos interesses estratégicos e valores compartilhados. E esta fragmentação, como mencionei, pode muito bem coalescer em torno de dois blocos, liderados respectivamente pelos EUA e pela China, as duas maiores economias do mundo no momento.
Na sua apresentação, Lagarde insinuou que a União Europeia poderia potencialmente tentar seguir por um caminho independente, mencionando a “pauta de autonomia estratégica na Europa”.
Esta foi uma clara referência a um conceito que o presidente francês Emmanuel Macron promoveu. Neste mês de abril, Macron visitou a China e criticou publicamente a dominação da Europa pelos EUA, argumentando que os líderes da região não podem simplesmente ser “vassalos” e “seguidores” de Washington.
Lagarde é uma das pessoas mais poderosas na Europa. Antes, ela foi a ministra das finanças da França e depois serviu como diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI).
A atual presidente do BCE fez este discurso para o CFR — Council on Foreign Relations em Nova York, um think-tank poderoso que tem uma relação íntima com o governo dos EUA e age, essencialmente, como a conexão entre o Departamento de Estado e Wall Street.
Os politicamente conectados oligarcas Rockefeller cultivaram o CFR no início do século XX, patrocinando o seu influente Projeto de Estudos da Guerra e da Paz durante a Segunda Guerra Mundial e colaboraram com Washington para ajudar a planejar a Primeira Guerra Fria contra a União Soviética.
Lagarde falou ao CFR apenas um dia depois que a ex-presidente do Federal Reserve e atual secretária do tesouro dos EUA, Janet Yellen, admitiu em 16 de abril numa entrevista à CNN:
Quando nós usamos sanções financeiras que estão ligadas ao papel do dólar, há um risco que, com o passar do tempo, isso possa minar a hegemonia do dólar.
Obviamente, isso efetivamente cria um desejo da parte da China, da Rússia e do Irã de encontrar uma alternativa.
Salários crescentes dos trabalhadores asiáticos alimentam a inflação nas economias ocidentais
A professora Radhika Desai assinalou que muito do discurso de Lagarde foi sobre a inflação.
“Este ponto sobre a inflação vai ao nó da questão da multipolaridade — a qual, em última instância, o que é senão a diminuição do poder do imperialismo?”, Desai disse.
No seu discurso no CFR, Lagarde reconheceu que, após o final da Primeira Guerra Fria, o mundo estava “sob a liderança hegemônica dos EUA”.
Lagarde disse:
No período após a Guerra Fria, o mundo se beneficiou de um ambiente geopolítico notavelmente favorável.
Sob a liderança hegemônica dos EUA, instituições internacionais baseadas em regras prosperaram e o comércio global se expandiu.
Isso levou a um aprofundamento das cadeias globais de valor e, quando a China entrou na economia mundial, a um aumento massivo no suprimento global de trabalhadores.
Como resultado disso, o suprimento global se tornou mais elástico às mudanças de demanda doméstica, levando a um longo período de inflação relativamente baixa e estável.
Isto, por sua vez, sustentou um quadro de política no qual os bancos centrais independentes podiam focar em estabilizar a inflação ao canalizar a demanda sem ter que dar muita atenção às interrupções do lado do fornecimento.
Nestes comentários, Lagarde estava indicando claramente que a exploração de trabalhadores chineses que ganham salários baixos pelas companhias ocidentais era um fator significativo para reduzir a inflação dos índices de preços ao consumidor no centro do sistema imperialista mundial.
As observações de Lagarde são reminiscentes de uma confissão feita pelo chefe da política exterior da União Europeia, Josep Borell, que admitiu em Bruxelas em outubro que “a nossa prosperidade estava baseada na China e na Rússia”:
Então a nossa prosperidade estava baseada na China e na Rússia — energia e mercado.
Vocês, os EUA, cuidam da sua segurança. Vocês, China e Rússia, provêm a base da nossa prosperidade.
Este é um mundo que não existe mais.
A nossa prosperidade tem sido baseada na energia barata vinda da Rússia — o gás russo, barato e supostamente acessível, seguro e estável, o que não era o caso.
E o acesso ao grande mercado da China para exportações e importações, para a transferência de tecnologia, para investimentos e para ter bens baratos.
Eu penso que os trabalhadores chineses, com os seus baixos salários, têm feito muito melhor e muito mais para conter a inflação do que todos os bancos centrais juntos.
Portanto, a nossa prosperidade estava baseada na China e na Rússia — energia e um mercado.
Dessai salientou que não é verdade, como Lagarde alegou, que “o mundo se beneficiou de um ambiente geopolítico notavelmente favorável” sob a “liderança hegemônica” dos EUA.
“Não, foi o Primeiro Mundo que se beneficiou”, Desai rebateu.
Como o sistema hegemônico do dólar estadunidense causa danos ao Sul Global
Desai notou que este sistema de hegemonia dos EUA, que jamais foi verdadeiramente estável, estava baseado em duas coisas: “Por um lado, o poder militar dos EUA, mas, também igualmente importante, o sistema do dólar estadunidense”.
“E, se nós olharmos para isso um pouco mais de perto”, disse Desai, “em praticamente todos os aspectos importantes, o sistema do dólar não tem sido bom para o Terceiro Mundo; não é bom para a vasta maioria dos países do mundo, que não são ocidentais, que não têm um lugar no G7, onde ele possam coordenar as políticas macroeconômicas e assegurar-se que os aliados dos EUA não se queimem demais com o sistema do dólar dos EUA — apesar de eles também terem sido bastante queimados por isso, como vimos em 2008”.
Desai explicou:
Em primeiro lugar, o sistema do dólar subvaloriza as moedas do Terceiro Mundo.iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
E quando você subvaloriza uma moeda, o que você está fazendo é que você está subvalorizando os recursos e o trabalho destes países.
Precisamente, este é o mecanismo pelo qual o Ocidente conseguiu ter acesso aos recursos e ao trabalho destes países de maneiras baratas.
E isto também significa que o resto do mundo tem que vender os seus recursos por uma bagatela e trabalhar o dobro, o triplo, afim de vender – eles têm que vender um volume massivo de bens, exportar um volume massivo de bens para os países ocidentais, a fim de ganhar em moedas ocidentais, incluindo o dólar, porque o dinheiro deles é sistematicamente subvalorizado em relação a isto.
Portanto, sempre houve uma grande discrepância entre o volume de exportações e o valor das exportações – que obviamente está diminuindo artificialmente pelo câmbio ruim.
Em segundo lugar, o sistema financeiro do dólar não deu coisa alguma ao mundo, senão uma série de crises seguidas de crises, um alto grau de volatilidade.
Um meio internacional de câmbio deveria ter um valor estável, porém o valor do dólar segue flutuando.
Um outro problema, e uma grande parte da volatilidade e a tendência à crise, deriva do fato que, se um sistema monetário apropriado deveria se basear num tipo de ambiente equilibrado, o dólar exige sistematicamente desequilíbrios.
O principal destes, obviamente, são os vastos déficits de contas correntes dos EUA, os quais o resto do mundo tem que financiar.
Mas, também, os desequilíbrios que são criados pelo sistema financeiro centrado no dólar estadunidense – o qual, por um lado, tem criado vastas quantias de dívidas insustentáveis em dólar, endividando lares, endividando negócios e endividando governos no mundo todo.
Por outro lado, isto tem explodido bolhas de ativos, de modo que as instituições financeiras dos EUA e indivíduos com grandes fortunas podem ganhar muito com a inflação de valores de ativos.
Mas isto, obviamente, só leva ao colapso destes, ou os estouros destas bolhas, e isto tem criado mais problemas.
Além disso, dizem ao Terceiro Mundo que os EUA têm um sistema financeiro muito sofisticado; isto é ótimo, isso vai lhes prover com o capital que vocês dolorosamente precisam para o desenvolvimento.
Mas, obviamente, na realidade o sistema financeiro focalizado nos EUA oferece o oposto disto, porque o capital para investimentos produtivos – os quais, efetivamente, o Terceiro Mundo e o resto mundo realmente necessitam – precisa ser estável, capital de longo prazo que é capaz de investir por um longo período em projetos de infraestrutura e projetos de longa gestação, mas que são, em última análise, muito importantes e bons para a economia.
Mas este não é o tipo de capital que o sistema financeiro dos EUA oferece. Ao invés disso, o sistema financeiro estadunidense oferece capital de curto prazo que apenas inflaciona o valor dos ativos existentes, ao invés de investir produtivamente na criação de novos bens e serviços.
Assim, dizem ao resto mundo, você sabe, 'Removam as suas restrições sobre contas de capital, permitam o livre fluxo de capitais e vocês receberão todo o capital que quiserem'.
Na verdade, o que o Terceiro Mundo recebe é o oposto disso: o capital que eles não querem – dinheiro quente que entra em debandada quando estes investidores, não são particularmente bem informados, pensam que as coisas são boas e o dinheiro quente que sai em debandada, deixando atrás crises econômicas, crises de crédito, crises monetárias e, obviamente, crises econômicas.
Alguns outros pontos que se devem adicionar a isto: Número um, este sistema, especialmente as crises de dívidas, das crises de dívidas do Terceiro Mundo em diante, aplicaram um sistema de responsabilidade do devedor, ignorando completamente que qualquer relação de crédito tem duas partes relativamente iguais e, se as coisas não vão bem, tanto o devedor quanto o credor são co-responsáveis pelo problema.
Ao invés disso, todo o peso do ajuste, o peso do repagamento, etc., é jogado sobre os devedores.
Como você sabe, este é o principal mecanismo pelo qual tanto dinheiro está sendo drenado dos países devedores – que são a vasta maioria dos países do Terceiro Mundo – que entra nos cofres dos países ricos.
E um ponto final: Dado que este sistema tem sido tão horrível, naturalmente os países querem abandoná-lo.
E, historicamente, o que os EUA têm feito aos países que querem abandoná-lo? Essencialmente, declaram guerra contra eles.
Pense em Saddam Hussein. Pense em Muammar Gaddafi. O que era crucial sobre estes dois líderes? Era o fato que, em cada caso, um dos seus principais projetos era de abandonar o sistema do dólar e tentar criar uma alternativa ao sistema do dólar.
E foi por isso que eles foram essencialmente depostos e mortos - de maneira macabra, no caso de Gaddafi.
E, obviamente, os seus países foram deixados essencialmente como presas de todos os tipos de instabilidades militares, políticas, financeiras e econômicas.
Portanto, este não é um sistema estável.
Portanto, finalmente, o resto do mundo tem alternativas. E os EUA não podem sequer declarar uma guerra para forçar o Terceiro Mundo a voltar ao sistema do dólar.
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