O mito do isolamento do Brasil e as cadeias globais de valor
Como Fênix, esse tema costuma ressurgir das cinzas ideológicas de um livre-cambismo quimérico para assombrar as consciências colonizadas por medos atávicos de autarquias imaginadas por reais complexos de inferioridade
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Os conservadores brasileiros têm obsessões e temas recorrentes. Em política externa, há vários. Mas talvez o mais renitente seja o relativo ao suposto isolamento do Brasil.
Como Fênix, esse tema costuma ressurgir das cinzas ideológicas de um livre-cambismo quimérico para assombrar as consciências colonizadas por medos atávicos de autarquias imaginadas por reais complexos de inferioridade.
Em passado não muito longínquo, que coincidiu com o início da hegemonia do pensamento neoliberal no país, falava-se muito na “globalização” e no grande perigo de o Brasil ficar à margem desse processo virtuoso, quase magnânimo, que conduziria o mundo a uma era definitiva e irreversível de modernidade e crescimento para todos.
Na época, nossos liberais nos advertiam que, para aceder a esse brave new world, tínhamos de abrir a economia à saudável concorrência internacional, reduzir o tamanho do Estado, privatizar e diminuir consideravelmente custos trabalhistas, previdenciários e tributários.
Se o fizéssemos, subiríamos ao “bonde” ou ao “trem” da História, metáfora talvez apropriada à Revolução Industrial, mas fora de lugar e época em nosso caso.
Caso falhássemos em promover as reformas liberalizantes que nos incluiriam na “globalização” simétrica e virtuosa, perderíamos o trem da História, o qual, como o Expresso Polar do filme infantil de Robert Zemeckis, nos levaria ao mundo encantado do Papai Noel de mãos invisíveis.
Pois fizemos. Não tudo, porém bastante. Alguns vizinhos, como a Argentina, fizeram tudo e mais um pouco. Chegaram ao ponto de estabelecer relaciones carnales com o principal país beneficiário da desinteressada globalização.
Ante tal assimetria relacional, podemos imaginar as posições assumidas por cada um. E podemos constatar, hoje, que tal estratégia de integração ingênua à globalização foi um desastre para a Argentina e a maioria dos países da América do Sul. Não por coincidência, no início deste século, boa parte desses governos que haviam apostado na integração incauta e acrítica à globalização assimétrica já tinha sido substituída por governos mais atentos à realpolitik presente nas relações internacionais. Realidade melhor explicada por Clausewitz; não por Kant.
Contudo, agora ressurge o “trem da História” a apitar de novo a sua urgência liberalizante na estação Tupiniquim. É o mesmo trem, com o mesmo itinerário. Contudo, mudou de nome. Não se chama mais globalização. Hoje, atende pelo nome mais sofisticado de “cadeias globais de valor”.
Os hodiernos paleoliberais agora nos advertem que o Brasil estaria “excluído das cadeias globais de valor”. Mais: nos informam, furiosos, que os recentes governos brasileiros, com sua política externa “terceiro-mundista” e “bolivariana”, “isolaram” e “marginalizaram” o país da comunidade internacional. O Brasil teria se transformado num pária econômico, comercial e diplomático.
Bem, afirmações peremptórias e dramáticas como essas demandariam, é claro, substancial base fática para sua sustentação.
Não obstante, a solidez da base empírica de tais “teses” parece inversamente proporcional à sua altissonância ideológica.
Por exemplo: seria de se esperar que, nesse período em que o Brasil foi, em tese, marginalizado e isolado, a nossa participação no comércio internacional tivesse caído dramaticamente. No entanto, os dados demonstram exatamente o contrário.
Nos primeiros 11 anos deste século, justamente nesse período de “nefasto isolamento bolivariano”, a participação das exportações brasileiras no comércio mundial cresceu de 0,88% para 1,46%, um aumento de 63%, muito significativo para um período tão curto.
Pode-se argumentar, é óbvio, que esse percentual é ainda muito baixo, que poderíamos ampliá-lo mais. Mas não se pode afirmar, com bases nesses dados, que o Brasil foi isolado, no período histórico recente. Também se pode argumentar que esse período coincide parcialmente com o ciclo das commodities, que se iniciou realmente em 2005. Porém, se o Brasil estivesse marginalizado, como se alega, não poderia ter aproveitado tão bem esse ciclo.
Da mesma forma, não se pode alegar que a diminuição recente da participação Brasil no comércio internacional, que caiu para 1,3% em 2014, é fruto de um suposto isolamento. Isso é clara consequência do recrudescimento da crise e do fim do ciclo das commodities.
Também seria de se esperar que, nesse período de suposta autarquização ideológica, os investidores estrangeiros tivessem fugido deste nosso perigoso país terceiro-mundista.
Curiosamente, as informações da UNCTAD, agência especializada da ONU dedicada ao comércio e ao desenvolvimento, demonstram o inverso. Segundo os relatórios dessa agência, insuspeita de bolivarianismo, em 2012, 2013 e 2014, o Brasil foi, respectivamente, o 4º, o 5º e novamente o 5º país receptor de investimentos estrangeiros diretos. Como um país “isolado e marginalizado” consegue tamanha façanha, em meio à crise internacional que vem reduzindo os fluxos globais de investimentos, escapa à nossa compreensão.
É possível, contudo, que os arautos do novo trem da História estejam se referindo a uma suposta marginalização política e diplomática, mais que a um isolamento comercial e econômico.
Não obstante, também nesse caso temos dificuldades em encontrar a base fática para tal “tese”.
Desde 2003, o Brasil abriu 44 novas embaixadas em todos os continentes do mundo, demonstrando, desse modo, indiscutível disposição para o “isolamento e a marginalização”. Concomitantemente, entre 2003 e 2012 Brasília recebeu 30 novas embaixadas, se colocando, naquele último ano, como a 13ª capital do mundo em número de missões diplomáticas estrangeiras. Hoje, essa colocação de Brasília já deve ser bem superior, pois em 2012 havia 13 novas embaixadas na fila para a instalação em nossa capital.
Temos dificuldades em entender como esses dados se coadunam com o suposto processo de “isolamento” e “marginalização” do Brasil. Dificuldades compartilhadas também pelo presidente Obama. Com efeito, por ocasião da recente visita de Dilma Rousseff aos EUA, jornalista brasileira, certamente imbuída da crença no isolamento do Brasil, afirmou que aquele país nos considerava mera potência regional. Foi corrigida, com firmeza, pelo próprio Obama, o qual afirmou que os EUA hoje consideram o Brasil potência mundial, que contribui positivamente para a solução de problemas globais.
Tal status jamais havia sido alcançado e reconhecido nos governos que apostaram na integração acrítica à globalização assimétrica. Nada mal para um país “marginalizado” e para um governo “bolivariano”.
Na realidade, nesse período de suposto isolamento, o Brasil deu um salto de qualidade em seu protagonismo internacional. Hoje, nosso país é ator internacional de primeira linha, interlocutor necessário e respeitado em todos os foros globais. E nosso monoglota líder Lula tem, sem dúvida nenhuma, muito mais prestígio internacional que os poliglotas que o antecederam.
O Brasil nunca esteve, de fato, isolado e marginalizado. Nunca fomos um país autárquico. O Brasil foi criado pelas “caravelas da História”. Foi construído pelos fluxos internacionais de comércio, desde a época do pau-brasil. Sempre fomos, em maior ou menor grau, integrados e dependentes.
Mas, então, com base em que os críticos dos governos supostamente “bolivarianos e terceiro-mundistas” afirmam que o Brasil estaria isolado? Simples: o Brasil estaria isolado e marginalizado porque não assinou, nesse período, muitos acordos de livre comércio.
Ora, em primeiro lugar, isso é apenas uma meia verdade. O Brasil, quer bilateralmente, quer via Mercosul, já assinou, em período recente, 10 acordos de livre comércio, em âmbito regional, e 5 outros acordos, em âmbito extrarregional.
Por certo, esses acordos extrarregionais não são substantivos, embora o Brasil e o Mercosul estejam se esforçando para fechar um amplo acordo com a União Europeia, que resiste a abrir seu mercado agrícola e insiste numa abertura irrestrita do nosso mercado industrial e em novas regras para serviços, compras governamentais e propriedade intelectual. Mas é certo também que os acordos regionais são importantes e substanciais. Em razão deles, até 2019 toda América do Sul será uma grande área de livre comércio.
Muito embora o novo entusiasmo com o velho trem da História desdenhe dessa “integração cucaracha”, é preciso considerar que ela é de enorme relevância estratégica para o Brasil, especialmente para nossa indústria. No período 2011-2014, a Associação Latino-Americana de Integração (ALADI) absorveu mais exportações brasileiras de manufaturados que todos os países desenvolvidos somados.
Ademais, essa integração e esses acordos regionais são importantes também para a nossa participação nas tais cadeias globais de produção. Isso porque elas não são realmente globais. A bem da verdade, as evidências empíricas mostram que elas são claramente regionalizadas.
De fato, não existem grandes cadeias globais de produção, simétrica e harmoniosamente distribuídas pelo planeta. O que há, na realidade, são grandes cadeias regionais, hierarquizadas e centradas em países líderes.
Há a “fábrica da América do Norte”, liderada incontestavelmente pelos EUA; a “fábrica Europa”, liderada, sobretudo, pela Alemanha; e a “fábrica da Ásia”, liderada mais intensamente pela China e, de forma hoje secundária, também pelo Japão.
Nessas grandes “fábricas” predomina a agregação de valor em nível regional e doméstico. Estudo feito por economistas do BID, intitulado “As Cadeias Globais de Valor são Realmente Globais?”[1] demonstra que na Europa, Ásia-Pacífico e América do Norte a contribuição intrarregional para o valor agregado estrangeiro é de 51%, 47% e 43%, superando, com sobras todas as fontes extrarregionais. Ademais, o valor agregado estrangeiro, somando todas as fontes, mal chega a 30%, na maioria do casos. Especificamente nos EUA, o conteúdo de valor doméstico agregado às exportações chega a 89%, de acordo com a OCDE. Contudo, na América Latina, a contribuição de outra região (no caso, a América do Norte) na agregação de valor é superior à contribuição da própria região.
Essas grandes fábricas, além de serem regionalizadas, competem muitas vezes entre si. Os recentes acordos do TPP e do TTIP refletem movimentos estratégicos que visam limitar ao crescimento da fábrica da China, a qual por sua vez, lançou contraofensiva, na forma de seu próprio acordo, o RCEP.
O que tudo isso demonstra?
Demonstra que, para os países que pretendem ter alguma base industrial, os elementos regional e nacional são vitais, bem mais importantes que a inserção em inexistentes cadeias “globais”, simétricas e harmônicas de produção e valor.
Assim sendo, deve-se perguntar qual a melhor estratégia que o Brasil poderia seguir: abandonar a união aduaneira do MERCOSUL e assinar celeremente, com as grandes economias do mundo, acordos de livre comércio de “recente geração’, com novas regras sobre serviços, concorrência, propriedade intelectual, etc.; ou investir na integração regional e tentar construir, em escala evidentemente mais modesta, uma fábrica “América do Sul”, liderada pela indústria brasileira?
Países da América Latina, como México, que apostaram na integração panglossiana a um inexistente globalismo econômico, apresentam, hoje, resultados muito ruins, principalmente no que refere à sua capacidade de gerar inovação tecnológica e agregar valor substancial às cadeias regionalizadas. Especificamente no México, o valor doméstico acrescido às exportações de manufaturas mal chega a 34%[2]. O México subiu no trem da História no vagão da segunda classe.
Melhor seria, portanto, reconstruir estrategicamente o Mercosul e a integração regional, buscando inserir-nos de forma mais competitiva e soberana no cenário mundial e agregando substancial valor doméstico e regional às nossas exportações.
Para isso, no entanto, é necessário enfrentar, em definitivo, aquele fator concreto que realmente nos “isola”, notadamente isola a nossa indústria, da economia mundial: o câmbio.
Afinal, é impossível comprar a passagem no “trem da História” com câmbio sobrevalorizado, mesmo assinando todos os acordos de livre comércio existentes. Principalmente assinando todos os acordos de livre comércio existentes.
[1] Antoni Estevadeordal, Juan Blyde e Kati Suominen, “As Cadeias Globais de Valor são Realmente Globais?”, RBCE, nº 115.
[2] “Estimating Foreign Value-added in Mexico’s Manufacturing”, Justino De La Cruz, Robert B. Koopman
Zhi Wang e Shang-Jin Wei, OFFICE OF ECONOMICS WORKING PAPER, U.S. INTERNATIONAL TRADE COMMISSION, 2011.
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