O mistério da literatura

Capítulo do livro recém-lançado “Palavras para Walnice”

(Foto: Reprodução/Jornal da USP)


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(Publicado no site A Terra é Redonda)

1.

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Voltando-se para a experiência da linguagem, Maurice Merleau-Ponty falava em prodígio: ela exprime perfeitamente sob a condição de não exprimir completamente, toda sua força estando nessa maneira paradoxal de acercar-se das significações, aludi-las sem jamais possuí-las. Não apenas prodígio, a linguagem é também mistério: usa o corpo dos sons e dos sinais para nos dar um sentido incorpóreo só alcançado pela virtude da corporeidade sonora e gráfica. Por isso, no exato momento em que está obcecada consigo mesma, é-lhe dado, como que por excesso, abrir-nos para uma significação. Transgredindo a materialidade dos vocábulos se acasala com o invisível. “Como o tecelão, o escritor trabalha pelo avesso: só tem a ver com a linguagem e é assim que, repentinamente, se encontra cercado de sentido”.[i]

O livro interpelante, prossegue Merleau-Ponty, é “máquina infernal, aparelho de criar significações”, pois o momento da expressão é aquele em que o escritor, tendo imprimido uma torção inusitada no léxico disponível, o faz “secretar uma significação nova”, deixando-a à disposição do leitor não prevenido de quem se apodera. O escritor não convida quem o lê a reencontrar o que já sabia, mas toca nas significações existentes para torná-las destoantes e conquistar, por virtude dessa estranheza, uma nova harmonia que se aposse do leitor. Escrever é essa astúcia que priva a linguagem instituída de centro e de equilíbrio, reordena os signos e o sentido e ensina tanto ao escritor como ao leitor o que sem ela não poderiam dizer nem pensar, pois a palavra não sucede nem antecede o pensamento porque é sua contemporânea.

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Como ler um livro interpelante? A resposta a essa indagação é a obra de Walnice Nogueira Galvão, pensadora em que o conhecimento profundo das humanidades – filosofia, teologia, história, antropologia, psicologia, psicanálise – e das artes – literatura, teatro, pintura, escultura, arquitetura, música, cinema – se volta para a compreensão do que são as letras brasileiras e que, ao fazê-lo, transforma seu saber em meditação, numa tecelagem que puxa os fios do imaginário mesmo quando (ou especialmente quando) o escritor se quer tecelão do real, mas tece realmente as formas do falso.

Nada mais verídico do que a maneira como Guimarães Rosa recupera proezas, aproveita padrões da vida sertaneja da região do São Francisco, retoma a lenda do pacto com o Diabo e do corpo fechado, “uma das mais caras tradições do sertão”.[ii]

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No entanto…

Grande Sertão: Veredas é uma novela de cavalaria. E não é. Riobaldo é um par de França letrado e Diadorim, uma princesa encantada. E não são. O Diabo está separado de Deus. E não está.

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Nada mais verídico do que os variados recursos empregados por Euclides da Cunha no colossal esforço para dar sentido à tragédia de Canudos.

No entanto…

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Os Sertões é um documento de descrição realista-naturalista da guerra de Canudos. E não é.

Dentre as inúmeras dimensões da leitura dessas obras por Walnice – literária, sociológica, histórica, política – que desfazem a imagem feudal do sertão, eu gostaria aqui de mencionar aquela que me parece decifrar o vínculo interno entre Grande Sertão: Veredas e Os Sertões: a dimensão teológico-metafísica que os sustenta e lhes imprime o selo de obras literárias magnas.

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Não me refiro apenas ao lugar que Walnice Nogueira Galvão atribui à culpa que dilacera Riobaldo e o força a indagar se o Diabo existe ou se há apenas “homem humano”, nem ao “complexo de Caim” que faz de Os Sertões o mais gigantesco mea culpa de nossa literatura, Euclides em busca de perdão para uma falta sem remissão. Refiro-me à busca “do sentido dessas culpas”: a origem e as formas do Mal. Donde, no caso de Grande Sertão: veredas, o lugar central que Walnice confere ao caso de Maria Mutema, “parábola que fala do mal puro, o mal em si sem motivação”[iii], relato estruturante do próprio romance, construído como posição e reposição incessante daquilo que Walnice Nogueira Galvão decifra como “a coisa dentro da coisa” e que, ao fim e ao cabo, tece a relação cósmica entre Deus e o Diabo.

A questão do Mal originário move a interpelação de Walnice Nogueira Galvão ao desfiar duas obras fiadas com o fio que define o próprio ser da literatura: o “é e não é”. Questão filosófica primeira e última: με óη (o ser / o não ser). E por isso também questão primeira e última da literatura quando Walnice escreve: “O fetiche do texto se mostra em sua maior nitidez quando o narrador se detém na descrição de Diadorim morto: “Não escrevo, não falo!” – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo!” (GSV, 563) “Então o texto assume o nível do real e empurra o real para fora, de modo tal que passa a ser real aquilo que o texto instaura”.[iv]

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Se o escritor trabalha no avesso, Walnice Nogueira Galvão, dotada daquilo que Gracián chamou de engenho agudo – aquele que capta o oxímoro como estrutura fundante do real e do imaginário –, se volta para Guimarães Rosa e Euclides da Cunha para revelar que não trabalham simplesmente no avesso, mas criam um mundo às avessas. Eis porque Walnice decifra o enigma que percorre Grande Sertão: Veredas ou o périplo de “a coisa dentro da coisa” como mudança de toda coisa no seu contrário, o avesso de seu avesso. Em outras palavras, a origem do Mal, contradição incessante de todas as coisas e de todos os acontecimentos que se voltam contra si mesmos, abre o abismo, isto é “o Diabo na rua no meio do redemoinho”, “… ritornelo que surge e ressurge a intervalos no seio do texto, texto-súmula que o narrador compôs para si mesmo como um extrato (tanto no sentido de “tirado de” como de “concentrado”) de toda a sua experiência de vida, é a imagem-mor que fixa essa concepção, por um lado, e por outro todas as imagens da coisa dentro da coisa. (…) Na concepção do narrador, o diabo vige dentro do homem, mas também vige dentro de todos os seres da natureza (…) Tudo se passa como se o cosmos fosse Deus, princípio positivo, mas admitindo a existência de um princípio negativo que leva o nome de Diabo”.[v]

ţō óη με óη que se exprime na fala final de Riobaldo: “O Diabo não há! É o que eu digo, se for…”.

No caso de Os Sertões, a dimensão teológico-metafísica do mundo às avessas criado pelo Mal é descortinada a partir do momento em que Walnice Nogueira Galvão assinala a diferença entre o intento de Euclides da Cunha e o texto realmente escrito por ele. Com efeito, Euclides pretende oferecer uma descrição realista, objetiva, imparcial, científica da guerra de Canudos, mobilizando para isso todos os recursos provenientes das ciências naturais e humanas. Todavia, desde suas primeiras linhas, o realismo cede o passo à ficção e o livro não é descritivo, mas, do começo ao fim, narrativo, épico e trágico, ou, como explica Walnice, “um epos trágico, impossivelmente sem herói”.

“A postura do narrador – esse narrador que manejando a intertextualidade finge a apresentação de um simpósio de sábios – é peculiar. Intromete-se naquilo que está narrando, em tom conspícuo, e com alguma freqüência apostrofa os autores e seus assuntos sempre no plural majestático. O narrador reveste a persona de um tribuno, discursando para persuadir. (…)

Assim é que Os Sertões constitui-se em narrativa desde a primeira palavra; mesmo aquilo que parece descrição, ou tem por objeto aparente descrever, já é narração”.[vi]

Ora, essa narrativa traz em seu cerne a dimensão milenarista de Canudos. No entanto, Walnice não a coloca onde estamos acostumados a encontrá-la, isto é, na figura de Antonio Conselheiro. Numa virada do mais alto engenho agudo, Walnice a deposita na figura de Euclides da Cunha. Misto de cientista e tribuno, mas atormentado com a origem do Mal, a fonte de Euclides é a Bíblia. Porém uma Bíblia peculiar: Os Sertões se realiza como gigantesca e maligna inversão dos arquétipos do Gênesis e do Apocalipse.

“Por aí começa a primeira parte de Os Sertões, com sua mimese do Gênesis, seu andamento desmesurado, tirânico, narrando o caos parindo a Terra. Tudo ali é convulso e em movimento (…) na região de Canudos o Gênesis ainda não terminou: os excessos da temperatura estão modificando incessantemente a própria morfologia dos minerais, o líquen está em vias de atacar a pedra para transformá-la em solo, e assim por diante”.[vii]

Não apenas a gênese não está completa, mas se realiza como o contrário do Gênesis: em vez de luz radiante e kósmos, imperam escuridão, desordem, excesso, convulsão. Todavia, não é apenas o Gênesis que está do avesso, também o Apocalipse no qual estão ausentes a redenção e a glória finais na Jerusalém Celeste.

“E por isso tudo está virado pelo avesso nesse Apocalipse, que não é paradisíaco, porém demoníaco, do inferno, dos mundos ínferos, do que é rejeitado pela razão, do que confunde o entendimento humano. (…) Em vez de predominarem o ar em que resplandece a Cidade de Deus e a água que a fecunda, ali só há terra e fogo”.[viii]

Percebemos, então, que o fio que tece o vínculo metafísico-teológico entre Os Sertões e Grande Sertão: veredas nos permite compreender porque neste reencontramos o Apocalipse às avessas, quando Walnice nos golpeia com sua presença: “Em bela página, que suponho única no romance brasileiro, Guimarães Rosa constrói uma visão apocalíptica com as virtualidades da miséria (…) Este quadro fantasmagórico e tremendo mostra a plebe rural desencadeada, monstro coletivo que avança para tomar tudo o que lhe foi negado por séculos de miséria e opressão. O horror da visão leva o narrador a abstrair os conteúdos dela, para com eles construir uma alegoria negativa: “Nem me diga o senhor que não – aí foi que pensei o inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas coisas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade”.[ix]

Mas não só isso. Com Walnice, descobrimos que Os Sertões decifra o título da obra magna de Guimarães Rosa: as veredas são desejo de rio, que, entretanto, só existe às avessas, seco. Me on.

2.

Assinalei como Walnice Nogueira Galvão lê livros interpelantes. Quero, agora, assinalar como ela cria um livro interpelante. Refiro-me a A Donzela-Guerreira, que nos interpela desde o momento em que nos deparamos com a grafia proposta e nunca abandonada por Walnice Nogueira Galvão – Donzela-Guerreira –, indicando que estamos diante de um sintagma, pois é a unidade interna dos dois termos que constitui o ser do arquétipo: uma virgem aguerrida.

A interpelação do enigma de Grande Sertão: veredas e Os Sertões nos arrasta na travessia da culpa em busca da origem do Mal. A reconstrução literária de A Donzela-Guerreira por Walnice nos interpela pelo deciframento de um outro enigma metafísico: a origem do ser do feminino a partir da alteridade radical de uma mulher que transgride os limites culturalmente impostos aos gêneros.

O enigma é anunciado desde o início do livro com a apresentação do arquétipo feminino construído sem a figura da mãe e esvaziado de todos os atributos com que as culturas inventam o ser mulher.

Primeiro enigma: a Donzela-Guerreira é mítica ou histórica, imaginária ou real? Afinal, a galeria mistura os fios da tecelagem: Palas Atena, Atalanta, Bellatrix, Camila, Mu-Lan, Yansã, Durga-Parvati, Débora, Judite, amazonas, valquírias, Diadorim, Joana d’Arc, Catalina de Erauso, Simone Weil, Maria Quitéria, Clara Camarão, Bárbara de Alencar, Maria Bonita são figuras que pertencem a tempos e espaços ora imaginários ora reais, habitados por deusas, santas, princesas, rainhas, jagunças, patrícias façanhudas, revolucionárias, personagens de poemas, peças teatrais e romances, mas também mulheres de carne e osso, cujas proezas são trazidas por documentos históricos.

Segundo enigma: a figura da Donzela-Guerreira se propaga por difusão cultural de um núcleo primitivo ou é sistematicamente construída nas mais diferentes épocas e culturas a partir da presença do sagrado, como evidenciam as figuras de Palas Atena, Judite, Mu-lan, Yansã?

Esses dois enigmas, entretanto, não esgotam a interrogação. Uma terceira questão é proposta por Walnice Nogueira Galvão: por que não podemos confundir a Donzela-Guerreira com outras figuras que também se furtam ao destino de esposa e mãe? Por que não tomá-la como feiticeira, hierodula, hetaira, prostituta e meretriz, ainda que muitas vezes essa identificação tenha sido feita, como no caso de Joana D’Arc, bruxa antes de ser santa, e ainda que essas figuras causem espanto, medo e repulsa pelo exercício desabrido de uma sexualidade sem finalidade reprodutiva?[x]

Ora, comparada a essas figuras, a Donzela-Guerreira “se destaca por ser outra: ela não é mãe, nem esposa, nem prostituta, nem feiticeira, etc. Seu nicho muito especial deve ser procurado ali onde não radica nenhuma dessas”.[xi]

A radical alteridade da Donzela-Guerreira é exatamente o que a transforma num enigma maior dos que foram mencionados até aqui. Por isso, a milenar construção do arquétipo, recolhida por Walnice numa impressionante coletânea de textos, abre uma nova interrogação.

“Essa personagem freqüenta a literatura, as civilizações, as culturas, a história, a mitologia. Filha de pai sem concurso de mães, seu destino é assexuado, não pode ter amante nem filhos. Interrompe a cadeia das gerações, como se fosse um desvio do tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade. Sua potência vital é voltada para trás, para o pai; enquanto ela for só do pai, não tomará outro homem. Mulher maior, de um lado, acima da determinação anatômica; menor, de outro, suspensa do acesso à maturidade, presa no laço paterno, mutilada nos múltiplos papéis que a natureza e a sociedade lhe oferecem”.[xii]

É preciso ir mais longe, descer à origem, chegando ao avesso do avesso para nele encontrarmos a dimensão propriamente metafísico-teológica que sustenta a invenção da Donzela-Guerreira na fieira dos tempos e na multiplicidade de culturas, quer a virgem aguerrida seja imaginária, quer seja real.

Para isso, Walnice examina a assimetria incontornável trazida pelo arquétipo, uma vez que a Donzela-Guerreira sempre desempenha papéis masculinos, mas “o contrário não é verdadeiro: raramente os homens se prestam a desempenhar papéis femininos”, a não ser por tradições teatrais (como o teatro grego, o elizabetano, o No e Kabuki japoneses, a Ópera de Pequim) ou, então, por deboche, como no carnaval (e sem esquecermos Virgínia Woolf analisando vestes cerimoniais masculinas como becas universitárias, roupagem de magistrados, fardas de militares). Walnice Nogueira Galvão se ocupa primeiro com a ambivalência que se exprime nesses casos para, a seguir, voltar-se para o que se esconde sob ela: a assimetria que diz a inferioridade das mulheres perante o poder do qual os homens têm o monopólio e explica porque as donzelas sempre transgrediram os limites impostos.

No entanto, se a ambivalência esconde a assimetria, o que interessa a Walnice é o que se esconde sob a própria assimetria, pois praticamente inexiste “a fantasia feminina no sentido de obrigar um homem ter destino de mulher”. Essa constatação lhe permite levantar a hipótese de que “a donzela-guerreira, antes de ser uma aspiração feminina, possa constituir uma fantasia masculina”[xiii]. Assim, a assimetria “nos ajuda a raciocinar pelo avesso”[xiv] para descobrirmos que estamos diante “da concretização mítica de uma fantasia masculina de maternidade”[xv], não sendo acidental a existência de inúmeras cosmogonias em que o Um primordial é hermafrodita, gerando os dois sexos ao parir o primeiro pai e a primeira mãe, mas também como Jeová criando Adão com cujo concurso Eva será criada. Se a psicanálise inventou e alardeou aos quatro ventos a inveja do pênis, silenciou sobre a inveja da gestação e – completa Walnice – nada nos impede de considerar a primeira como fantasia compensatória para a segunda.

Estamos, assim, conduzidos aos mitos fundadores, reabrindo o campo do sagrado, que fora aberto com a interpelação de Grande Sertão: veredas e Os Sertões.

Na cultura ocidental, o mito fundador exemplar é, sem dúvida, o de Palas Atena, virgem – parthenos –nascida da cabeça de Zeus, revelando o desejo imaginário de uma partenogênese masculina e de um pacto jamais rompido, pois a filha sempre será donzela e jamais se transformará em mulher pela mediação de um parceiro sexual. Ainda uma vez, lembra Walnice Nogueira Galvão, os homens da psicanálise, obcecados com o complexo de Édipo, deixaram na sombra o de Electra: “o par pai-homem-maduro com filha-donzela-morta é um par esquecido”.[xvi]

Isto porém, não basta. Com efeito, se a Donzela-Guerreira nasce com ausência da mãe (ou órfã de mãe, como Diadorim), será preciso indagar se há filho que nasce sem concurso do pai.

De Palas Atena passamos ao arquétipo da Pietà, a mãe abraçada ao filho morto cuja ressurreição está anunciada. Esse arquétipo se encontra presente nas culturas mediterrâneas com Afrodite e Adônis, Isis e Osíris, Selene e Dionísio, Astarte e Tamus, Tétis e Aquiles, e, evidentemente, Maria e Cristo.

“Essas representações da morte e ressurreição do filho, garantia do eterno retorno do ciclo sazonal, seriam típicas de regiões onde as estações são muito marcadas em seus limites, onde tudo morre no inverno e tudo renasce na primavera. Expressão do princípio feminino, as deusas são variantes da mesma Grande Mãe mediterrânica (…) apesar de mãe sempre virgem, no sentido de não-esposa: ela é Mãe com o Filho, fecundada por Deus. O pai nunca importa ou então se trata de estrita partenogênese”.[xvii]

Que, depois desse percurso magistral, Walnice escolha Orlando para o capítulo final de A Donzela-Guerreira, intitulado “Arremate: o enigma”, não há de nos surpreender. Com o romance de Virgínia Woolf, a questão da diferença de gênero retoma o enigma decifrado na obra de Guimarães Rosa, o “é e não é”, a personagem alternando-se como homem e mulher.[xviii]

Todavia, ao concluir o romance, Virgínia Woolf, deixa aberto o enigma: quando homem, Orlando se apaixona por uma arquiduquesa, mas, agora, tornado mulher, ele a reencontra como um arquiduque, levando-a a exclamar: “você era uma mulher!”, ao que o amado retruca: “você era um homem!”. E Walnice comenta: a atitude de Virgínia é de “zombeteira incapacidade de dar conta de tão portentoso enigma”, fazendo como Clarice e Machado que, “correndo risco de encarar o enigma, não se atreveram a ir mais longe”.[xix]

Por isso A Donzela-Guerreira faz interpelar: afinal, por que, depois de haver decifrado o enigma da Donzela-Guerreira, Walnice repõe, com Virgínia, Clarice e Machado, o “portentoso enigma” do “é e não é”?

Penso que posso responder: porque, interpelando outros e nos interpelando, sua obra nos diz que Walnice Galvão desvenda o mistério do ser da literatura, que dá ser ao que não é e rouba o ser daquilo que é. ţō óη με óη.

Referência

Antonio Dimas & Ligia Chiappini (orgs.). Palavras para Walnice. São Paulo, edições Sesc, 2023, 390 págs.

Notas

[i] Maurice Merleau-Ponty “Le langage indirect et les voix du silence”, Signes. Paris, Gallimard, 1960, p. 56.

[ii] Walnice N. Galvão As formas do falso. São Paulo, Perspectiva, 1972. p. 67.

[iii] Ibidem p. 119.

[iv] Ibidem, p. 90-91.

[v] Ibidem p. 129

[vi] Walnice N. Galvão, “Fortuna crítica”, in Os Sertões. Edição crítica e organização Walnice Nogueira Galvão, São Paulo, Ubu Editora/Edições SESC São Paulo, 2016, p. 625, 626.

[vii] Ibidem p. 626, 627.

[viii] Ibidem p.627

[ix] Walnice N. Galvão As formas do falso, op. cit. p. 67.68

[x] Por isso Walnice se volta para cada uma dessas figuras revelando que exprimem uma “radicalização intransigente dos papéis femininos que parece ser um ideal da cultura masculina” na qual o homem transita através de múltiplas esferas de atuação e espera, em cada uma delas, ter à sua disposição uma mulher que executa uma única função.

[xi] Ibidem p. 34.

[xii] Ibidem p. 11,12.

[xiii] Ibidem p.140

[xiv] Walnice N. Galvão “A Donzela-Guerreira”, Donzela Guerreira”. São Paulo, SESC São Paulo, 2009, p. 9.

[xv] Ibidem.

[xvi] Walnice N. Galvão, A Donzela-Guerreira, op. cit., p. 141. “Problema deles, afinal”, escreve Walnice, comentando com graça a obsessão dos homens da psicanálise com o Édipo em detrimento de Electra.

[xvii] Ibidem p.141

[xviii] Não menos significativo é que, ao indagar o que é ser mulher ou homem, Virgínia Woolf o faça por intermédio da personagem como escritor e escritora. Um romance dentro do romance? Walnice me permitiria dizer que reencontramos a “coisa dentro da coisa”?

[xix] Ibidem p. 236.

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