O mistério da guerra da Ucrânia: qual a razão da invasão russa?

Há um “evento de origem” para a invasão russa. Mas há disputa em torno de sua existência real. Adesão da Ucrânia à OTAN é outra disputa narrativa

Vladimir Putin
Vladimir Putin (Foto: Sputnik/Alexei Druzhinin/Kremlin / Reuters)


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Por Mauro Lopes

O motivo real da invasão russa à Ucrânia é uma interrogação.

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À esquerda, os defensores da ação militar russa e mesmo alguns analistas que mantêm um tom crítico à aventura de Putin referem-se a um “evento de origem”.

 O “evento de origem”

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Tal evento é um acordo sobre o qual há controvérsias e questionamentos quanto à sua real existência.

Ele teria sido firmado no ocaso da União Soviética, que ruiu sem qualquer guerra ou ao menos um tiro; implodiu em dezembro de 1991. Mas é preciso recuar um pouco, até 1989, ano da queda do Muro de Berlim. Segundo a versão russa, considerada verídica por quase toda a esquerda, naquele ano o todo poderoso secretário de Estado da administração George Bush, James Baker, teria prometido a Mikhail Gorbachev, presidente da URSS e secretário-geral do Partido Comunista, que a OTAN não avançaria “nenhuma polegada para o leste” de suas fronteiras originais. Não foi o que aconteceu.

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Houve a promessa? A Rússia garante que sim.

Os EUA dizem que não. Em novembro passado, a professora Mary Elise Sarotte, pesquisadora do Centro de Estudos Europeus da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, publicou um livro que tem como título exatamente a expressão que se tornou icônica: “Not one inch” ou “Nem Mais Uma Polegada”. O título integral é “Not One Inch: America, Russia, and the Making of Post-Cold War Stalemate” ou “Nem mais uma polegada: América, Rússia e a criação do impasse pós-Guerra Fria” (Yale University Press, 2021).

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Antes de chegar a Baker-Gorbachev, os estadunidenses estavam, com os alemães, às voltas com a questão de como reunificar a Alemanha. Segundo Sarotte, em uma das reuniões, a portas fechadas, Baker perguntou: e se eles prometessem ao Gorbachev que a Otan não moveria sequer uma polegada para o leste, ou seja, não incorporaria países do Leste Europeu ao tratado? “Ele disse assim, com uma interrogação no fim, de forma especulativa. Está lá nas anotações dele, que eu li”, diz Mary Sarotte. Os alemães gostaram da ideia e, em uma reunião com Gorbatchev, apresentaram a sugestão. Gorbatchev viu com bons olhos mas nada foi acertado, sacramentado ou transferido para uma folha de papel. Nada de preto no branco. 

Ou seja, na versão apurada pela pesquisadora estadunidense, a sugestão jamais teria se transformado em acordo efetivo. Os russos, de fato, não apresentaram qualquer documento para sustentar sua versão, mas garantem que o acordo existiu, ainda que verbal. 

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Em 15 de fevereiro passado, adverte-me o amigo Mario Vitor Santos, a revista alemã Der Spiegel publicou uma extensa reportagem sobre a controvérsia ao redor do "evento de origem" na qual a versão russa é reforçada por uma série de depoimentos dos participantes das negociações que informam ser do espírito das conversas a contenção do Ocidente quanto ao avanço da OTAN para o leste. 

No entanto, o texto do jornalista Klaus Wiegrefe adverte quanto ao caráter controverso das versões:

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"As versões fornecidas por Mikhail Gorbachev, o último líder da União Soviética, são particularmente confusas. Em uma ocasião, ele disse que o chanceler alemão Helmut Kohl e os americanos haviam lhe prometido que a Otan 'não se moveria um centímetro mais para o leste'. Mas em outro caso, ele disse que 'o tema da expansão da OTAN nunca foi discutido' - mesmo assim, ele insistiu que o Ocidente havia violado o espírito dos acordos alcançados na época".

São consistentes a indicação de que o Ocidente sinalizou à Rússia que não haveria avanço. Entretanto, observa a reportagem: "não existe nenhum acordo juridicamente vinculativo entre os dois lados desde o período que se seguiu à queda do Muro de Berlim. O veredicto sobre se o Ocidente quebrou sua palavra depende inteiramente de quão vinculantes se acredita que as garantias feitas por Major [John Major, primeiro-ministro britânico em 1991] e os outros realmente eram".

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A vida seguiu nos anos 1990 e, apesar das divergências internas no governo Clinton (1993-2001), acabou prevalecendo a “linha dura”. Inicialmente, Clinton projetou uma adesão dos países do Leste -até da Rússia- à OTAN, sem a cláusula vinculativa. Trata-se do famoso capítulo 5, que prevê que o ataque a um dos membros da OTAN é um ataque a todos. Sem essa cláusula, nenhuma associação entre os países ameaçaria a Rússia. Entretanto, a tese, majoritária no primeiro ano da administração, acabou derrotada.

Os Estados Unidos, aproveitando-se do esboroamento do socialismo real e da fragilidade de uma Rússia alquebrada, foram em frente e, com seus parceiros europeus, aceitaram o ingresso à OTAN de vários países que integraram o campo soviético: Polônia e República Checa, em 1999; Romênia, Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Lituânia e Letônia, em 2004; Albânia e Croácia, em 2009; Montenegro, em 2017, e Macedônia do Norte, em 2020.

É fundamental esclarecer algo aqui. A expressão "expansão da OTAN para leste" estabelece um imediato vínculo mental-emocional de agressividade, de iniciativa da aliança para obrigar os países que integraram a União Soviética ou seu campo de influência no Leste Europeu a ingressarem no pacto militar. Mas a expressão é equivocada. Como observou o embaixador Rubens Ricupero em entrevista ao "Forças do Brasil" do mesmo amigo Mario Vitor Santos, no sábado (5), todos os países, da Polônia em 1999 à Macedônia do Norte, em 2020, foram bater às portas da OTAN e pediram para entrar. Nunca houve concentração de tropas da aliança nas fronteiras desses países para obrigá-los a aderir à OTAN. Eles todos, anotou o embaixador, referência brasileira em política externa, buscaram a OTAN com medo do expansionismo russo, para evitar situações como a que é vivida agora pela Ucrânia.

O fato é que a Rússia não teve como reagir à ação dos 13 países que se filiaram à OTAN, pois estava, até o fim do século 20, de joelhos. Mas recuperou-se ao longo do novo século. Sob a liderança de Vladimir Putin, o país reergueu-se, com a sequência de perdas e derrotas atravessadas na garganta do nacionalismo russo.

 A motivação de agora

 Dando um enorme salto na história, do “evento de origem” para a motivação que, segundo o governo Putin, teria colocado as tropas russas em movimento, também há uma disputa narrativa. O governo russo alega que havia uma iminente adesão da Ucrânia à OTAN e que por isso foi necessário invadir o país para evitar a instalação de mísseis capazes de atingir Moscou e outros centros cruciais da Rússia. 

Apesar de a adesão à OTAN estar contemplada na campanha eleitoral de Zelensky em 2018-19, o assunto nunca entrou na agenda efetiva de seu governo com a Europa ou os EUA. 

Havia e sempre houve desde 2014 pelo menos, tensão com a Rússia em função das repúblicas de Lugansk e Donetsk. Mas isso não era motivo suficiente para incendiar a região e a Europa, tanto que Putin reconheceu a independência das duas e, provavelmente, mesmo que tivesse ocupado militarmente os territórios, a consequência deveria ser a mesma da ocupação de Crimeia: choro e ranger de dentes da Ucrânia e da OTAN, mas nada além disso. 

Na virada de 2021 para 2022, Putin começou a escalar a crise, alegando uma iminente adesão da Ucrânia à OTAN. O tema pegou a Europa de surpresa, mas os líderes europeus consideraram que uma guerra estava fora de cogitação. O governo Biden, não. Desde janeiro, a administração estadunidense afirmou que a invasão poderia acontecer e indicou que os exercícios conjuntos entre os exércitos da Rússia e da Bielorússia pareciam um ensaio para a invasão. Ninguém levou a sério e o governo russo respondeu com ironias, afirmando que os EUA estavam “marcando data” para uma invasão que nunca aconteceria. 

Putin começou a concentrar tropas na fronteira, chegando a um número estimado em mais de 150 mil soldados antes da invasão. 

Em fevereiro, as negociações entre a Rússia e a Europa, sobretudo Alemanha e França, aceleraram-se. Até que, em 14 de fevereiro, o chanceler alemão, Olaf Scholz, anunciou, em Kiev, ao lado de Zelensky, que a entrada da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) estava "praticamente fora da agenda". No dia seguinte, ele embarcou para Moscou com a mesma notícia para Putin e tudo pareceu desanuviar. 

Ainda no dia 15, as tropas russas começaram a voltar aos quartéis, informou o Ministério da Defesa da Rússia. "As unidades dos distritos militares Sul e Oeste, que já concluíram suas tarefas, começaram a carregar equipamentos para o transporte ferroviário e rodoviário e começarão hoje o retorno para seus quartéis", afirmou então o porta-voz do ministério, Igor Konashenkov.

Tudo parecia resolvido e Putin consagrou-se como o vencedor da crise, pois a questão estava superada. Nas conversas, Scholz teria garantido a Putin o voto contrário da Alemanha ao ingresso da Ucrânia na OTAN -o que, por si só, liquidava com o projeto, pois é preciso voto unânime dos membros da aliança para que um novo membro seja aceito.

No entanto, para surpresa geral, Putin invadiu o país nove dias depois, em 24 de fevereiro. 

O mundo todo ficou estupefato. 

Qual a razão?

Se Putin havia ganho na mesa de negociações e bloqueado o ingresso da Ucrânia na OTAN, por que recuou do recuo e partiu para o ataque? 

Por que lançou-se a uma aventura que o isolou quase completamente no momento em que havia isolado Biden e construído pontes com a Europa, havia recolhido admiração e ampliado sua capacidade de articulação global?

Nesta terça (2), Olaf Scholz voltou ao assunto, reafirmando que a entrada da Ucrânia na OTAN não estava na mesa. Em entrevista à TV alemã,  saudou a iniciativa da OTAN do ano passado de não aceitar a Ucrânia e a Geórgia no bloco e assegurou: a questão “não estava e não está” na pauta.

É um mistério a razão de Vladimir Putin.

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