O linchamento dos tempos bolsonarianos

"A Globo produziu o espetáculo político dos tempos bolsonarianos. Escolheu a dedo alguém que complicasse a associação automática da imagem de uma mulher negra e forte à ideia de afirmação de negritude, feminismo e militância", escreve Moisés Mendes, do Jornalistas pela Democracia

Karol Conká
Karol Conká (Foto: REPRODUÇÃO/GLOBOPLAY)


✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no canal do Brasil 247 e na comunidade 247 no WhatsApp.

Por Moisés Mendes, do Jornalistas pela Democracia

O Brasil estava à espera da chance de espancar uma celebridade negra poderosa. Deveria ser um espancamento coletivo, decidido no voto, que tivesse o poder de um massacre.

continua após o anúncio

O Brasil não consegue derrubar Bolsonaro, porque não tem forças para reagir ao fascismo, mas lavou a alma esfolando Karol Conká. São as compensações que oferecem conforto enganoso.

A Globo produziu o espetáculo político dos tempos bolsonarianos. Escolheu a dedo alguém que complicasse a associação automática da imagem de uma mulher negra e forte à ideia de afirmação de negritude, feminismo e militância antirracismo.

continua após o anúncio

O Brasil não massacrou um negro pobre, com o perfil dos que a polícia mata todos os dias, às dezenas, nos morros e nas periferias. Bateu em uma negra linda, poderosa, bissexual, influente, que está ficando rica.

Malharam uma figura dos nossos tempos, a artista e influenciadora com milhões de seguidores. Não foi cancelamento, foi linchamento.

continua após o anúncio

E aí vem a pergunta incômoda: atacaram em massa por ela ter se revelado violenta, tóxica, destrutiva, abusiva, falsa, preconceituosa, manipuladora e vilã, ou porque, antes, ela é uma negra?

A Globo estava em busca de um impacto que provocasse a maior rejeição a um participante do programa. Karol foi pulverizada com 99,17% dos votos.

continua após o anúncio

Havia ficado antigo e batido para a Globo marcar presença no debate da afirmação de diferenças consagradas e exploradas pela mídia e pelo marketing, mas comportadas demais.

Era preciso explorar as contradições e a complexidade das lutas identitárias e mostrar que nesses contingentes quase sempre associados às esquerdas não há só mocinhos e mocinhas.

continua após o anúncio

Novelas de TV, romances (a literatura está investindo nesse filão), filmes e séries devem ter mais do que negros, gays, trans, defensores da maconha e do aborto e feministas.

A Globo precisava fugir dos clichês idealizados pelo identitarismo. Karol não é um acaso, foi escolhida a dedo. São muitas as informações de que sua vida real está muito próxima da personagem que representou no programa.

continua após o anúncio

A Globo não queria ser repetitiva com as mensagens edificantes do gay assertivo e intelectualizado Jean Wyllys ou da médica e humanista negra Thelma Assis. A protagonista tinha que ser uma barraqueira com o poder de Karol Conká.

Karol é a figura dos nossos tempos gasosos. As pessoas dizem: mas nunca ouvi falar. Não ouviram porque ainda vivem na realidade analógica e envelhecida dos artistas e das estrelas do entretenimento da Globo.

continua após o anúncio

As grandes bolhas do século 20 nem sempre têm dutos com as bolhas gigantescas dos espaços e das falas de gente com a representatividade de Karol Conká.

A Globo teve de ir buscar no mundo digital dos artistas influenciadores o contraponto impositivo, forte, autoritário de uma artista que tem seguidores. Quem ainda tem fãs à moda antiga, como Fiuk, que se acomode, abatido, num cantinho desse cenário.

O Big Brother começou com 20 participantes, nove deles negros. Saíram Nego Di, que quase foi uma Karol, Lucas, que foi embora porque não aguentou, e a própria Karol. Os outros são os outros, sem a imprevisibilidade politicamente incorreta desses dois.

É certo que a Globo, pouco antes do desfecho, investirá de novo num final que passe coisas boas. Mas aí o estrago já terá sido feito. A Globo disse ao Brasil: parem com essa frescura de que só os brancos são pessoas cruéis com os negros.

Logo depois de ser expulsa, ao vivo, Karol admitiu: “Eu me perdi dentro de mim. Nunca imaginei que eu fosse dar uma surtada”.

Enquanto ela surtava na jaula, o que pode ser sua desculpa, o Brasil se preparava para esfolar a negra que todos poderiam odiar sem culpas.

Enquanto isso, Thelma Assis, a vencedora do Big Brother do ano passado, voltava a ser uma médica negra invisível no inferno de Manaus, no maior pronto-socorro do Hospital 28 de Agosto, onde salva vítimas da Covid-19.

iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Este artigo não representa a opinião do Brasil 247 e é de responsabilidade do colunista.

Comentários

Os comentários aqui postados expressam a opinião dos seus autores, responsáveis por seu teor, e não do 247

continua após o anúncio

Ao vivo na TV 247

Cortes 247