O Lênin imaginário e a defesa do social chauvinismo e do agronegócio
Não é possível defender que a pauta de exportações seja baseada nas commodities do latifúndio citando Marx e Lênin, sem estar mentindo, de forma descarada
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Do jeito que andam espancando a memória de Lênin, tenho a impressão de que algum dia, Vladimir Ulianov, ateu e materialista dialético, baixará em algum terreiro de umbanda, mesclado com candomblé, para sair dando voadora no peito de quem falseia o leninismo para defender social chauvinismo e, até, pasmem, o latifúndio e o agronegócio.
Escrevi nesta forma “Dorival Caymmi” de espaçar meus textos (a preguiça como metodologia de trabalho) vários artigos sobre a invasão russa da Ucrânia. O primeiro, chamando a invasão de invasão e fazendo uma previsão fácil de ser feita (para quem não teve o cérebro sugado e não entrou naquele triunfalismo grotesco estilo Pepe Escobar) de que a guerra seria prolongada, sem nenhuma previsão de vitória para as ambas as partes, que a Rússia estaria se metendo num atoleiro semelhante ao do Afeganistão de que só quem lucraria com o conflito seria a indústria da guerra e da morte.
Para quem assassinou o internacionalismo proletário e a dialética marxista, trocando por um tosco campismo de inspiração duginista chauvinista, de recuperação das fronteiras da antiga Rússia dos czares, restou uma redução maniqueísta do conflito, tergiversando sobre o conceito moderno de imperialismo de Lênin (que não tem que ver só com territórios e, inclusive, versa sobre conflitos de grandes potências capitalistas com subpotências e imperialismos regionais, pela contínua repartição de zonas de influência no mundo), foi necessário, para estes defensores do social-chauvinismo, fazer um reducionismo ad absurdum, que transformou a Rússia atual na “herdeira” da luta socialista da antiga União Soviética, e a oligarquia, que liderou a contrarrevolução que liquidou o socialismo, em uma nova liderança da luta do proletariado internacional.
A falsidade destas posições levou a dois movimentos concatenados, o primeiro de tentar descolar a guerra de agressão russa da ideologia duginista e conservadora neochauvinista russa, tentando negar as conexões dos atos de guerra com o discurso ultranacionalista, e criar uma oposição entre Putin e Dugin, mesmo que a guerra tenha sido começada com um ataque aberto à herança leninista, com um discurso ultrachauvinista que dizia que a “Ucrânia era uma invenção de Lênin”. Qualquer leitura desatenta das posições de Lênin, sobre as guerras revolucionárias e sobre o chauvinismo russo, levaria a uma inevitável condenação da agressão armada e da continuidade das hostilidades, até porque, em nenhuma das possibilidades de defesa de guerra revolucionária, prognosticadas por Lênin, se encaixa a guerra de agressão ao povo ucraniano.
A segunda perna deste autômato desmiolado, que se move de pé feito um zumbi clamando por um cérebro, é tentar colar todos que se posicionam contra a guerra como “defensores da Otan”. O ridículo desta posição faz lembrar dos mencheviques russos, que, em pleno governo revolucionário de fevereiro de 1917, acusavam e tentavam prender Lênin por ser, supostamente, um espião alemão e um defensor da potência rival, tudo porque Vladimir Ulianov fazia a defesa aberta do fim da guerra imperialista, e da paz imediata, ao mesmo tempo que defendia a guerra revolucionária, contra o czarismo, e que as armas dos povos russos e ucraniano fossem viradas contra seus generais.
É fundamental lembrar que, dentro da Revolução de Outubro, Lênin trabalhou o princípio da autodeterminação dos povos e deu autonomia plena às repúblicas nascentes, que depois viriam a formar parte da União Soviética, dentre estas, a Ucrânia. Não tem como colar o social chauvinismo de Dugin e de Putin, e esta geopolítica que naturaliza o capitalismo, em Lênin sem falsear completamente o marxismo.
Ah, e sim, camaradas, nos condenamos a Otan, mas longe de o movimento da guerra afrouxar o predomínio e a hegemonia dos EUA e das potências centrais capitalistas, ela reforçou a defesa da Otan dentro da Europa Ocidental, abriu caminho para a adesão das eternamente neutras Finlândia e Suécia à aliança imperialista ocidental, retroalimentou a indústria de guerra e reforçou a aliança não como um movimento de defesa, antes, como um pacto de guerra ofensivo diante do cenário de guerra na Europa. A guerra é boa para as razões de Estado de Biden, de Putin e de Zelensky. É uma tragédia para o povo ucraniano.
Mas, isto é apenas repassar argumentos que deslindei em vários artigos, que estão nas páginas do 247 ou dos Resistentes e nem é o principal motivo deste artigo.
Eis que, agora, na polêmica sobre se o MST deve ou não continuar sua luta no campo, aparecem os “leninistas” defensores do agro e vociferando que “Lênin defendia a divisão social do trabalho e o papel da produção agrícola”. Isto não é nem mesmo um truísmo, a defesa de uma posição tão óbvia que não mereceria defesa, mas que visto no conjunto está fora de contexto, é uma posição falsa mesmo.
Nem vou entrar na disputa se o MST deve ou não fazer luta de classes no campo para “não balançar o governo Lula”, porque isto daria um outro artigo, quero centrar agora nestes argumentos, que vão na mesma linha de seguidismo teórico que embasa a apologia da guerra imperialista da Rússia na Ucrânia.
O campismo é um sistema de ideias que sofre de complexo de Édipo e medo de castração. Antes seguia a URSS, depois seguiu a China, chegou mesmo a seguir a Albânia e condenar a China e a URSS como sistemas de capitalismo de Estado, então, numa cambalhota mirabolante, capaz de deixar acrobatas do Cirque de Soleil boquiabertos, eis que, de uma hora para outra, sem nenhuma revisão do que fora dito antes contra URSS e China (países que seriam capitalismo de Estado), deve se voltar a uma defesa apaixonada (e nada dialética) de tudo que provenha destes dois países, e silenciar qualquer discussão que queira colocar o guizo no gato e discutir conceitualmente socialismo no século XXI.
Assim, as complexas negociações bilaterais, e que na soma das várias negociações entre países são, obviamente, multilaterais, gerariam este novo mundo multilateral (truísmo) que destruiria a hegemonia estadounidense, e este seria o grande objetivo da luta de classe mundial no século XXI.
É o tipo de dialética às avessas, na qual o epifenômeno some, tem apenas aparência de dialética, mas é uma forma kantiana de fazer ciência social, na qual a ideia a-priori tem que apenas ser provada.
Existe uma hipótese, elidem-se todas as contradições reais sobre esta ideia pré-concebida e, assim, ela é sempre provada sobre qualquer fato.
E isto, inclusive numa salada de fatos, que, às vezes, são muito desconexos. Juntam-se nos Brics, governos de todos os tipos de tendências, alguns aberta e francamente reacionários, como o Irã e a Índia, para se criar a utopia distópica do mundo multilateral.
Óbvio que nenhuma marxista defende existência de “eixo do mal”, ou que os EUA invadam o Irã e a China (é sempre bom alertar isto, porque da mesma forma que os bolsonaristas gritam “vai para Cuba”, toda vez que estão perdendo um debate, campistas adoram gritar um “seu defensor da Otan”, quando apontamos as contradições na fantasia multilateral), mas o simples acúmulo de comércio fora do centro capitalista do mundo não transforma este movimento numa ação anticapitalista e de emancipação humana ou socialista.
Para se defender esta nova utopia são feitas as mais bizarras justificações dos atos mais atrozes de regimes abertamente reacionários: o governo etnocêntrico da Índia, a guerra religiosa e a faxina étnica sendo passadas para debaixo do pano; a xaria misógina dos aiatolás e seus governos anticomunistas sendo passados como um movimento progressista dos povos; chegaram mesmo a saudar a vitória dos talibãs, a xaria mais misógina, feudal, teocrática e assassina como um movimento de libertação!
Nesta utopia distópica, a luta pelo socialismo e pela emancipação dos povos desapareceu, seremos felizes apenas e tão somente com uma mudança do eixo econômico do planeta, ainda e sobretudo comandados por uma lógica e uma ordem capitalistas.
Neste pacote, há que não se discutir qualquer contradição de uma relação comercial desigual e neocolonial entre o Brasil e a China. Pouco importa se a comitiva de Lula tinha 104 grandes latifundiários que foram fechar negócios do agro, ou se a principal e quase única pauta de exportação do Brasil para a China seja a venda de commodities. Um influencer pseudomarxista chegou mesmo a defender, abertamente, que não mais se taxasse nenhum produto industrial chinês, e que a substituição da indústria brasileira pela Chinesa, com a “quebra da burguesia brasileira”, seria importante para o progresso do país (de que país?).
Nesta insana dialética, os pseudomarxistas e pseudoleninistas decidiram rasgar Ruy Mauro Marini, Florestan Fernandes, Celso Furtado, Milton Santos e a regrinha básica de que economia neocolonial é aquela em que perduram relações econômicas desiguais e que a acumulação de capital vai se dar alhures, pouco importa se esta relação neocolonial é com a China ou com os Estados Unidos.
Desaparece toda a história da CEPAL e a luta, ainda nos marcos do capitalismo, contra a ideia ultraneocolonial de “vocação natural de um país” e a disputa por ter uma pauta de exportação de produtos com mais alto valor agregado. Exportar commodities nunca vai emancipar ou desenvolver de forma autônoma o Brasil. Implantar fábricas de alta tecnologia, cujo know how e as sedes continuem alhures, seja em Bejing ou Nova Iorque, não vai libertar o Brasil. Sem a mínima política industrial autônoma, que diminua o fosso tecnológico entre o Brasil e os países chaves do capitalismo, no qual a China está a cada dia se incluindo, não teremos projeto de nação.
Camaradas, sim, defendemos que o Brasil tenha pauta de comércio com a China. Sim, na atual configuração do capitalismo brasileiro, sim, isto vai se dar e muito pelo agro, mas, não, não é um processo sem contradições.
Vamos começar do início.
Primeira coisa foi esta questão de inventar um Lênin que naturalizaria a divisão do trabalho e do papel do agro. Este Lênin nunca existiu. Podem pegar a análise que ele faz do campo russo no livro de 1897 “A que herança renunciamos” e veja a condenação que ele faz do populismo e da romantização do mujique e das condições pré-capitalistas e semiservis do campesinato russo e como ele fala de uma modernização do campo, mas não como uma defesa do capitalismo, mas sim como uma defesa de que se libertando a mão de obra servil e se criando um moderno proletariado rural seria possível elevar a luta de classes a outro patamar (sim, a luta de classes que vocês estão esquecendo, camaradas).
Podem seguir lendo “Aos pobres do campo”, “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, “Quem são os ‘amigos do povo’ e como lutam contra os social democratas” e “O partido operário e o campesinato” e vejam qual a posição real de Vladimir Ulianov. Não há comparação entre o campo russo e o brasileiro. A Rússia aboliu a servidão apenas em 1861, mas em condições tão atrozes para os camponeses, que eles apenas saíram de uma condição de servidão legal para continuar numa situação de servidão semicapitalista de fato. Tanto Marx quanto Lênin se debruçaram sobre isto. Marx chegou a questionar se seria possível se passar de maneira direta, sem uma modernização capitalista da comuna rural (que fazia parte da divisão das terras entre proprietários feudais e mujiques russos, com terras que eram de uso comum dos camponeses) para uma forma mais elevada de propriedade, coletiva, sem necessariamente passar pela repartição da terra.
Lênin já analisa um movimento posterior a Marx e observa a apropriação das terras comunais pela aristocracia czarista. Lênin não tem muitas esperanças de que se passe diretamente de uma forma comunal servil para uma forma comunal socialista na Rússia e defende a reforma agrária (ainda nos marcos do capitalismo) e a modernização da propriedade capitalista na Rússia. A reforma agrária libertaria contingentes camponeses para a luta proletária e modernizaria o campo russo. Não há uma única linha de defesa de Lênin da grande propriedade capitalista (a não ser sobre seu uso moderno e criação de um moderno proletariado rural) ou do latifúndio. É terrível confundir as observações, sejam as de Lênin, sejam as de Marx, sobre a moderna agricultura capitalista com uma defesa da plantation, do agro, da monocultura ou do latifúndio. É mais que uma tergiversão de posição, é abrir mão completamente do marxismo e da luta de classes.
Lênin diz em todos os seus livros que marxistas não defendem valores absolutos e abstratos e que, em todo o momento, os princípios marxistas estão ligados ao grau de desenvolvimento da luta de libertação do proletariado. A situação do campesinato na Rússia levou a mudanças tanto táticas quanto estratégicas da linha de ação do POSDR leninista (Partido Bolchevique, depois Partido Comunista) sobre o campo. Num primeiro momento, a defesa intransigente da liquidação dos restos feudais e das obrigações legais que mantinham de fato o camponês submetido ao Estado czaristas e, desta forma, à aristocracia rural. Num país ainda não mecanizado, mais de metade dos camponeses russos não tinha cavalos (fundamental força motriz daquela época na Rússia) e, assim, tinha que vender seu trabalho, às vezes de forma parcial e em condições semifeudais para grandes e médios agricultores para sobreviver, por exemplo, para receber, por empréstimo, cavalos para arar a sua própria terra, depois de trabalhar na terra dos senhores.
No programa do POSDR-bolchevique, pré-revolução de 1917, para o campesinato russo, estava prescrito abertamente o FIM DO LATIFÚNDIO e a limitação do tamanho máximo de propriedades e que eles fossem produtivas, com destinação das terras improdutivas e das que passassem do limite máximo para reforma agrária. Isto não tem nada que ver com uma defesa do latifúndio ou das enormes empresas agrícolas que fazem parte de conglomerados transnacionais.
Os kolkozes são coisa muito distinta que só dá para ser pensada num programa de transição socialista, que foge e muito ao escopo deste artigo.
Confundir estas coisas é tudo, menos marxismo, menos socialismo, menos comunismo.
O Brasil do século XXI tem pouco a ver na sua estrutura camponesa com a Rússia do fim do século XIX e início do século XX. Primeiro que não há que se falar em liquidação de restos feudais, porque o moderno latifúndio brasileiro, ainda que utilize da mão de obra escrava e semiescrava, está longe de se apoiar numa estrutura cartorária feudal. O Brasil é o único país capitalista moderno que não fez reforma agrária. Sim, a reforma agrária é uma tarefa capitalista, mas numa luta combinada anticapitalista, anticolonial, no entendimento de que o capitalismo é um sistema desigual e coordenado, a reforma agrária também é uma luta para e pelo socialismo e anticapital.
O MST e a pequena propriedade agrícola no Brasil inserem-se numa luta contra a hegemonia do latifúndio, com todas as características nefastas do agro brasileiro: imensas extensões de terra; uso intensivo de maquinário pesado com supressão de mão de obra, excetuando-se épocas sanzonais de colheita; expulsão do homem do campo e desertificação do interior do Brasil (com seu impacto no crescimento desordenado das grandes cidades); produção voltada para o exterior como commodities (e não como alimento e segurança alimentar do povo brasileiro); fortalecimento de uma burguesia latifundiária neocolonial ultrarreacionária, inimiga dos setores populares e de qualquer desenvolvimento de um projeto autônomo de país; uso intensivo e extensivo de agrotóxicos e envenenamento da água, da terra e da mesa do povo brasileiro.
Juntando-se todas estas características do agro brasileiro é falso e reacionário dizer que eles cumprem uma pauta progressista, mesmo que saibamos da sua importância na nossa balança comercial. Nas razões de Estado e no processo de desindustrialização que o Brasil vem sofrendo, continuadamente (e que se acelerou com o golpe da Lava Jato contra o PT) é sabido que o agro, infelizmente, tem um peso fortíssimo na balança comercial e no PIB do Brasil, isto não pode e nem deve levar a que progressistas, socialistas e marxistas façam sua apologia.
A bancada golpista do agro retirou máximas concessões do governo federal e paga o mínimo de impostos, uma pauta baseada em commodities fortalece o setor mais reacionário da política brasileira. A apologia de um “agro verde e ecologicamente” correto, “responsável”, só desapareceria (no caso muito improvável do agro abrir mão dos agrotóxicos) umas das muitas contradições do latifúndio no Brasil, todas as outras, continuam sendo óbices a um desenvolvimento de um projeto de nação progressista.
Assim, é de todo falso ligar Lênin a apologia ao agro, até porque, todas as observações tanto de Marx, quanto de Lênin, sobre a mecanização da agricultura e das grandes propriedades, vieram sempre acompanhadas da crítica potente contra os resultados trágicos desta política, seja em Marx no Capital, seja em Lênin, que participou ativamente da elaboração do programa antilatifúndio do POSDR-Bolchevique.
Fundamental lembrar que Marx falava em acabar com o isolamento do homem do campo, com a oposição entre a cidade e o campo no socialismo e com a “estupidez do isolamento rural”. Nem um nem outro justificaram a divisão social do trabalho capitalista, seja dentro de um país, seja internacionalmente, muito pelo contrário, o socialismo é o movimento que visa a acabar com esta divisão e em O Capital o que Marx faz é retirar qualquer aparência de naturalidade desta divisão, mostrar que ela é histórica, condicionada e que tem de necessariamente desaparecer numa revolução socialista.
Sim, é possível defender o agro, sim é possível defender que a pauta de exportações no Brasil seja baseada nas commodities do latifúndio, só não é possível fazer isto, citando Marx e Lênin, sem estar mentindo, de forma descarada.
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