O inimigo que vem de dentro
A indústria da guerra estripa a nação, tropeça de um fiasco militar ao próximo, despoja-nos das liberdades civis e nos empurra na direção de guerras suicidas
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Originalmente publicado no The Chris Hedges Report em 30/4/23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Os EUA são uma estratocracia, uma forma de governo dominada pelas forças militares. É axiomático, dentre os dois partidos dominantes (Democratas e Republicanos), que deve haver uma preparação constante para a guerra. Os orçamentos massivos da máquina de guerra são sacrossantos. Os seus bilhões de dólares de desperdícios e fraudes são ignorados. Os seus fiascos militares no Sudeste da Ásia, na Ásia Central e no Oriente Médio desapareceram na vasta caverna da amnésia histórica. Esta amnésia, que significa que jamais haja prestação de contas, licencia a máquina de guerra a estripar o país e a impulsionar o Império em um conflito autodestrutivo após o outro. Os militaristas ganham todas as eleições. Eles não podem perder. É impossível votar contra eles. O estado de guerra é um Gotterdämmerung [Crepúsculo dos Deuses], como escreve Dwight Macdonald: “sem os deuses”.
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, o governo federal dos EUA gastou mais da metade dos dólares dos seus impostos com operações militares do passado, do presente e do futuro. Esta é a maior despesa contínua das atividades do governo. Os sistemas militares são vendidos antes de serem produzidos, com garantias de que os enormes excessos de custos serão cobertos. A ajuda a países estrangeiros é contingente à compra de armas estadunidenses. Do Egito, que recebe algo como US$ 1,3 bilhão em financiamento militar do estrangeiro, é exigido que dedique este valor para comprar e manter sistemas de armas dos EUA. Israel recebeu US$ 158 bilhões em assistência bilateral dos EUA desde 1949, quase tudo isto desde 1971, na forma de auxílio militar, sendo que a maior parte disso foi usado para compras de armamentos de fabricantes estadunidenses. O público dos EUA financia a pesquisa, o desenvolvimento e a construção de sistemas de armamentos e depois compra estes mesmos sistemas de armamentos para benefício de governos estrangeiros. Este é um sistema circular de bem-estar corporativo.
Entre outubro de 2021 e setembro de 2022, os EUA gastaram US$ 877 bilhões com as suas forças militares — o que é mais do que o total dos 10 países seguintes, incluindo a China, a Rússia, a Alemanha, a França e o Reino Unido combinados. Estas enormes despesas militares, juntamente com o crescente custo de um sistema de saúde com fins lucrativos, elevaram a dívida nacional dos EUA a US$ 31 trilhões, quase US$ 5 trilhões a mais do que o PIB inteiro dos EUA. Este desequilíbrio não é sustentável, especialmente porque o dólar não é mais a moeda de reserva mundial. A partir de janeiro de 2023, os EUA gastaram um recorde de US$ 213 bilhões com o serviço dos juros da sua dívida nacional.
O público, bombardeado pela propaganda de guerra, faz torcida pela sua própria autoimolação. Ele festeja a desprezível beleza da nossa valentia militar. Ele fala com os clichês que matam o pensamento vomitados pela cultura de massas e pelas mídias de massa. Ele absorve a ilusão de onipotência e chafurda na autoadulação.
A intoxicação da guerra é uma praga. Ela dá um 'barato' que é insensível à lógica, à razão ou aos fatos. Nenhuma nação está imune a isso. O erro mais grave cometido pelos socialistas europeus às vésperas da Primeira Guerra Mundial foi a crença de que as classes trabalhadoras da França, da Alemanha, da Itália, do Império Austro-Húngaro, da Rússia e da Grã-Bretanha não se dividiriam em tribos antagonistas devido às disputas entre os governos imperialistas. Os socialistas se reasseguravam que eles não se alistariam na matança suicida de milhões de trabalhadores nas trincheiras. Ao invés disso, quase todos os líderes socialistas desistiram das suas plataformas anti-guerra para apoiarem a entrada das suas nações na guerra. A pequena minoria que não o fez, como Rosa Luxemburgo, foram enviados à prisão.
Uma sociedade dominada por militaristas distorce as suas instituições sociais, culturais, econômicas e políticas para servir aos interesses da indústria de guerra. A essência dos militares é mascarada com subterfúgios — usando as forças militares para executar missões de socorro humanitário, evacuar civis em perigo e, como estamos vendo no Sudão, definindo a agressão militar como uma “intervenção humanitária” ou uma maneira de proteger a democracia e a liberdade, ou louvando as forças militares como executores de uma função cívica vital ao ensinarem jovens recrutas sobre liderança, responsabilidade, ética e várias habilidades. A verdadeira face das forças militares — as matanças industriais — é escondida.
O mantra do estado militarizado é a segurança nacional. Se cada discussão começa com uma questão de segurança nacional, todas as respostas incluem o uso da força ou a ameaça da força. A preocupação com ameaças internas ou externas divide o mundo em amigos e inimigos, bem e mal. As sociedades militarizadas são solos férteis para demagogos. Os militaristas, assim como os demagogos, veem outras nações e outras culturas segundo as suas próprias imagens — ameaçadoras e agressivas. Eles só buscam a dominação.
Não era do nosso [dos EUA] interesse nacional fazer a guerra durante duas décadas no Oriente Médio. Não é do nosso interesse nacional ir à guerra contra a China ou a Rússia. Mas os militaristas precisam da guerra da maneira como o vampiro precisa de sangue.
Após o colapso da União Soviética, Mikhail Gorbachev e depois Vladimir Putin fizeram lobby para se integrarem às alianças econômicas e militares do Ocidente. Uma aliança que incluísse a Rússia anularia as conclamações para expandir a OTAN — que os EUA haviam prometido que não fariam para além das fronteiras da Alemanha unificada — e tornaram impossível convencer os países no centro e no leste da Europa a gastarem bilhões de dólares em equipamentos militares dos EUA. Os pedidos de Moscou foram rejeitados. A Rússia foi transformada no inimigo, caso ela quisesse sê-lo, ou não. Nada disso nos tornou mais seguros. A decisão de Washington de interferir nos assuntos internos da Ucrânia ao apoiar um golpe de estado em 2014 provocou uma guerra civil e a subsequente invasão russa.
Porém, para aqueles que lucram com a guerra, antagonizar a Rússia, assim como antagonizar a China, é um bom modelo de negócios. A Northrop Grumman e a Lockheed Martin viram os preços das suas ações aumentarem em 40% e 37%, respectivamente, como resultado do conflito na Ucrânia.
Uma guerra contra a China, que agora é um gigante industrial, perturbaria a cadeia global de suprimentos, com efeitos devastadores sobre a economia dos EUA e a economia global. A Apple produz 90% dos seus produtos na China. O comércio dos EUA com a China foi de US$ 690,6 bilhões no ano passado. Em 2004, a produção industrial dos EUA foi mais do que o dobro da China. Agora, a produção da China é quase o dobro daquela dos EUA. A China produz a maior quantidade de navios, aço e telefones celulares no mundo. Ela domina a produção global de produtos químicos, metais, equipamentos industriais pesados e produtos eletrônicos. Ela é a maior exportadora mundial de terras raras, é a maior detentora de reservas minerais e é responsável por 80% da refinação destes em todo o mundo. Os minerais de terras raras são essenciais para a manufatura de chips de computadores, telefones celulares, telas de televisores, equipamentos médicos, lâmpadas fluorescentes, carros, turbinas eólicas, bombas 'espertas', jatos de combate e comunicações via satélite.
A guerra contra a China numa massiva escassez de uma variedade de bens e recursos, alguns vitais para a indústria da guerra, paralisando as empresas estadunidenses. A inflação e o desemprego disparariam para cima, o racionamento seria implementado. Os mercados globais de ações, pelo menos a curto prazo, seriam fechados. Isso deflagraria uma recessão global. Se a Marinha dos EUA fosse capaz de bloquear os embarques de petróleo para a China e de perturbar as suas rotas marítimas, o conflito poderia potencialmente tornar-se nuclear.
No documento “NATO 2030: Unified for a New Era” [OTAN 2030: Unidos por uma Nova Era], a aliança militar vê o futuro como uma batalha pela hegemonia com estados rivais, especialmente a China. Ele clama pela preparação para um conflito global prolongado. Em outubro de 2022, o general da Força Aérea dos EUA Mike Minihan, chefe do Comando de Mobilidade Aérea, apresentou o seu “Manifesto de Mobilidade” para uma conferência militar lotada. Durante a sua diatribe alarmista desequilibrada, Minihan argumentou que, se os EUA não escalarem dramaticamente as suas preparações para uma guerra com a China, as crianças estadunidenses se verão “subservientes a uma ordem baseada em regras que beneficiam apenas um país [a China]”.
Segundo o The New York Times, o Corpo de Fuzileiros Navais [Marines] dos EUA está treinando unidades para ataques a praias, onde o Pentágono acredita que possam ocorrer as primeiras batalhas com a China, ao longo da “primeira cadeia de ilhas” que inclui “de Okinawa e Taiwan até a Malásia, bem como o Mar do Sul da China e as disputadas ilhas nas Spratlys e nas Paracels”.
Os militaristas drenam fundos dos programas sociais e de infraestrutura. Eles despejam dinheiro em pesquisa e desenvolvimento de sistemas de armamentos e negligenciam as tecnologias de energia renováveis. Pontes, estradas, redes elétricas e diques colapsam. As escolas decaem. As manufaturas domésticas declinam. O público é empobrecido. As severas formas de controle que os militaristas testam e aperfeiçoam no estrangeiro migram de volta para a pátria. Polícia militarizada. Drones militarizados. Vigilância. Vastos complexos de prisões. Suspensão das liberdades civis básicas. Censura.
Aqueles, como Julian Assange, que desafiam a estratocracia, que expõem os seus crimes e a sua loucura suicida, são impiedosamente perseguidos. Mas o estado de guerra abriga dentro dele as sementes da sua própria destruição. Isso canibalizará a nação até ela colapsar. Antes disso, ele atacará, como um ciclope cego, buscando restaurar o seu poder decrescente através da violência indiscriminada. A tragédia não é que o estado de guerra dos EUA se autodestruirá. A tragédia é que arrastaremos tantos inocentes conosco.
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