O imbróglio do Banco Central
Ao contrário da decisão adotada em 2003, com certeza não gostaria de se ver obrigado a engolir Campos Neto e sua equipe à frente do BC
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A cada novo resultado das pesquisas a respeito das intenções de voto para Presidente da República, o conjunto das forças políticas e econômicas ensaiam alguma reacomodação das respectivas estratégias de como lidar com aquele que deverá ser o governo brasileiro em 2023. Caso as eleições fossem realizadas hoje ou mesmo ao longo dos últimos meses, Lula teria vencido o primeiro turno à frente de Bolsonaro e também bateria o atual ocupante do Palácio do Planalto em um eventual segundo turno.
É lógico que sempre vale a máxima de que “pesquisa é fotografia e processo eleitoral é filme”. Bolsonaro conta com o importante poder da caneta presidencial e tem o apoio de boa parte das forças políticas do establishment conservador. O fisiologismo do Centrão tomou conta de seu governo na figura do Senador Ciro Nogueira (PP/PI), que ocupa o estratégico cargo de Ministro Chefe da Casa Civil. Além disso, o núcleo duro de apoio à reeleição tem a solidariedade dos presidentes das duas casas do Congresso Nacional. Arthur Lira (PP/AL) na Câmara dos Deputados e Rodrigo Pacheco (DEM/MG) no Senado Federal têm prestado todo o tipo de serviço a Bolsonaro, sempre de olho nos cargos na máquina da administração pública federal e nas verbas milionárias oriundas do Orçamento Secreto. O poder das famosas “Emendas do Relator do Orçamento” torna-se ainda mais atrativo em ano eleitoral.
No entanto, a persistência dos resultados colhidos pelos institutos de opinião torna inescapável as especulações em torno de quais seriam os eventuais perfis dos possíveis futuros governos. A reeleição de Bolsonaro, além de significar uma completa tragédia para a sociedade brasileira, não deveria trazer grandes diferenças para com o desenho dos últimos meses de seu governo. Seria a continuidade de uma dependência extrema em relação ao fisiologismo e uma conotação de repeteco de ensaio neoliberal na área da economia. Já um retorno de Lula para um terceiro mandato abre uma enorme discussão a respeito de quais seriam as alternativas quanto à composição de sua equipe e quanto à orientação de seu novo governo.
Novo governo e as mudanças necessárias
A questão da política econômica recebe destaque especial nesse debate de perspectivas. Afinal, estão na pauta temas sensíveis e urgentes, tais como: i) a austeridade e o teto de gastos imposto pela EC 95; ii) a reforma trabalhista; iii) a política monetária e o patamar da Selic; iv) a política de preços da Petrobrás; v) a continuidade da privatização e o que fazer com as empresas estatais já vendidas ao capital privado; vi) a independência do Banco Central; entre tantos outros assuntos relevantes.
No que se refere à maioria dos itens acima listados existe uma grande resistência à mudança no interior do financismo e das elites tupiniquins. Por mais que seja argumentado que a recuperação de qualquer projeto de desenvolvimento nacional deva envolver alterações no atual quadro da institucionalidade da política econômica, as nossas classes dominantes parecem ter uma relação atávica com o modelo herdado do período de ouro do neoliberalismo. Assim, não conseguem transpor para esse tema a sua conhecida relação de admiração e subserviência que mantêm para com aquilo que é praticado por suas congêneres nos Estados Unidos e demais países do chamando mundo desenvolvido. De qualquer forma, estes assuntos podem ser objeto de debate e de
no Congresso Nacional, sempre guardadas as dificuldades para alguns casos em que seja necessária uma alteração constitucional ou lei complementar.
No entanto, dentre as complicações elencadas, há um detalhe que não é pequeno e muito menos de pouca importância. Trata-se da independência do Banco Central. Esta foi uma bandeira que as forças vinculadas à defesa dos interesses do sistema financeiro sempre levantaram. E finalmente conseguiram um governo disposto a levar tal reivindicação às últimas consequências. Paulo Guedes ofereceu-lhes o favor, criou a oportunidade e convenceu o governo a batalhar pela aprovação da Lei Complementar nº 179, em fevereiro de 2021.
Independência do BC e o mandato de Campos Neto
Assim, de acordo com o previsto na nova regra vigente, o atual presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, conta com o direito adquirido de permanecer por um mandato de 4 anos assegurado à frente da instituição, prazo esse que dever ser contado a partir de 1 de janeiro de 2021. A encomenda apresentada sutilmente nos dispositivos aprovados pelo Congresso Nacional oferece um tratamento especial a ser concedido aos dirigentes da autoridade monetária:
(…) Art. 4º O Presidente e os Diretores do Banco Central do Brasil serão indicados pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação de seus nomes pelo Senado Federal.
§ 1º O mandato do Presidente do Banco Central do Brasil terá duração de 4 (quatro) anos, com início no dia 1º de janeiro do terceiro ano de mandato do Presidente da República.
§ 2º Os mandatos dos Diretores do Banco Central do Brasil terão duração de 4 (quatro) anos, observando-se a seguinte escala:
I – 2 (dois) Diretores terão mandatos com início no dia 1º de março do primeiro ano de mandato do Presidente da República;
II – 2 (dois) Diretores terão mandatos com início no dia 1º de janeiro do segundo ano de mandato do Presidente da República;
III – 2 (dois) Diretores terão mandatos com início no dia 1º de janeiro do terceiro ano de mandato do Presidente da República; e
IV – 2 (dois) Diretores terão mandatos com início no dia 1º de janeiro do quarto ano de mandato do Presidente da República. (…)
Isso significa que um eventual governo Lula já começaria seu terceiro mandato com 7 dos 9 diretores do BC nomeados por Bolsonaro & Guedes, inclusive Roberto Campos Neto. Vale recordar que o primeiro ano do governo, de forma geral, é especialmente importante do ponto de vista simbólico e das expectativas criadas em torno das mudanças na política econômica. Caso haja realmente o interesse em romper com a estratégia austericida e de recuperar um programa de desenvolvimento e de geração de empregos, o novo governo vai necessitar o apoio de uma política monetária compatível com essa perspectiva.
Ocorre que a diretoria do BC se converte, a cada 45 dias, no Comitê de Política Monetária (Copom), que se responsabiliza pela definição do patamar da taxa oficial de juros, a nossa Selic. Ou seja, além de operar como órgão de regulação e fiscalização do sistema financeiro, o colegiado dos diretores nomeados (e agora com mandato fixo) é composto pelos mesmos que estabelecem os mecanismos para estimular ou restringir as opções do crescimento das atividades da economia. Ora, o compromisso da atual diretoria com o projeto de Guedes e do financismo não poderia ser mais explícito. Basta ver a recente trajetória explosiva da taxa oficial de juros promovida por eles, sempre baseada em um diagnóstico totalmente equivocado a respeito das razões da retomada da aceleração dos preços de forma generalizada. Na dúvida, eles seguem as determinações dos manuais ultrapassados de macroeconomia e aumentam a Selic. Em pouco mais de um ano, por exemplo, ela saiu de 2% e ameaça ultrapassar o patamar de 12% na próxima reunião do Copom, marcada para 3 e 4 de maio.
É bem verdade que a própria lei que estabeleceu a independência do BC também prevê a possibilidade de exoneração dos integrantes da direção do banco. Seria o caso, dentre outros, de quando os mesmos “apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil”. Sob tais circunstâncias, o Conselho Monetário Nacional encaminha a proposta de exoneração do diretor ao Presidente da República, mas a medida ainda necessitaria ser aprovada por maioria absoluta pelo Senado Federal.
BC pode sabotar o programa de desenvolvimento
Esse é o verdadeiro imbróglio. Ou o presidente e os diretores de mais essa herança maldita de Bolsonaro reconhecem a realidade da nova conjuntura e pedem demissão de forma voluntária, ou então será necessário criar um clima amplo na sociedade que os obrigue a tal saída. E convenhamos que esse não é o melhor quadro para um início de governo que procura o entendimento nacional e busca a confiança generalizada para retomar o crescimento das atividades econômicas. Mas, por outro lado, a permanência dos mesmos no comando da autoridade monetária pode se converter em elemento de sabotagem dos projetos do novo governo no campo da economia.
Essa é a verdadeira faceta da intenção dos defensores da independência do BC. Um grupo de poucos indivíduos, sem nenhuma forma de legitimidade da vontade popular, pode inviabilizar a implementação de um programa governamental escolhido pela maioria da população nas urnas. Na verdade, é o reinado perverso de uma certa tecnocracia imposta pelas elites sobre a democracia, tal como estabelecida pelo pleito definido nas regras constitucionais. O Parágrafo Único do artigo 1º diz o seguinte:
(…) Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (…)
É bem verdade que em um passado recente, ainda que sem a independência formal do BC, um importante defensor dos interesses do financismo ficou por 8 anos como presidente do BC, indicado e apoiado por Lula entre 2013 e 2010. Henrique Meirelles era presidente internacional do Bank of Boston até antes de voltar ao Brasil em 2002 e ter sido eleito deputado federal pelo PSDB de Goiás. Mas abriu dessa carreira parlamentar e aceitou o convite para comandar a política monetária no governo do PT. Recebeu carta branca para desenvolver o seu trabalho da forma que quisesse e ainda recebeu de presente uma medida provisória sob encomenda. A proposição estabelecia que o cargo de presidente do BC seria equiparado ao de Ministro de Estado. A intenção do texto escandaloso era uma exigência do postulante, que receava ser preso e algemado como havia ocorrido com alguns de seus antecessores. Com a novidade, ele passava a contar com o privilégio do foro privilegiado. Qualquer medida judicial nessa linha deveria ser apreciada primeiramente pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas o fato concreto é que, mesmo na ausência de independência formal do BC, durante os 8 anos do reinado de Meirelles, o Copom fixou a taxa oficial em patamares muito elevados. O Brasil seguiu a sina de se apresentar ao mundo das finanças como o campeão internacional da taxa de juros. Durante o primeiro mandato de Lula e Meirelles, a Selic manteve uma média de 19% ao ano. Em seguida, entre 2007 e 2010, ela baixou um pouco e ficou em uma média de 11%. Mas ainda assim, tratava-se de um nível muito acima do razoável e do necessário, quadro ainda muito agravado pela mais completa ausência de controle fiscalização do BC sobre as taxas definidas pelos bancos comerciais.
Enfim, corremos o risco de ver mais uma vez a História se repetir. De acordo com Marx, a primeira vez ela ocorre como tragédia e depois como farsa. Esse é um dos grandes imbróglios que Lula vai enfrentar, caso vença as eleições. Ao contrário da decisão adotada em 2003, com certeza não gostaria de se ver obrigado a engolir Campos Neto e sua equipe à frente do BC. A ver qual estratégia será adotada por ele para desembrulhar esse pacote do legado bolsonarista.
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