O ignorante feliz
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Ignorante é aquela pessoa que, por inúmeras razões, ignora/desconhece algo ou alguma coisa. Nossa crônica, no entanto, não pretende discorrer sobre esses homens e mulheres que, mesmo desconhecendo muita coisa, não podem jamais serem colocados na categoria de “estúpidos”, pois conhecem outros mundos e possuem uma sapiência que não se enquadra naquilo que a educação formal compreende como conhecimento. Esse tipo de ignorante não guarda aproximações com o ignorante feliz.
O ignorante feliz, por sua vez, é aquele tipo de gente que tem orgulho da sua estultice. Em meio a uma pandemia, por exemplo, mesmo tendo-se a orientação de ficar em casa em quarentena, o ignorante feliz decide que deve sair em carreata em defesa do indefensável. O ignorante feliz, como dizem os norte-americanos, é um loser, ou seja, um perdedor, um fracassado, mesmo que seja rico, muito rico, pois a ignorância independe de dinheiro. O ignorante feliz se orgulha de jamais ter lido um livro. Informar-se por meio de aplicativos de mensagens já é o suficiente para ele, não se importando se são mensagens verdadeiras ou falsas. O importante mesmo é passá-las adiante. O ignorante feliz não consegue ler e interpretar vinte páginas. Para ele, os livros didáticos contêm muitas letras. O ignorante feliz acha que escola, praia, jornal, macaco, carro e livro é tudo a mesma coisa. Para ele, tudo isso é coisa de esquerdista. E grita a plenos pulmões: “nossa bandeira jamais será vermelha”. A quem achar ruim, grita mais forte: “vá pra Cuba!”. Ao pobre vocabulário do ignorante feliz a elite financeira brasileira adicionou lexias como “petralha, esquerdopata, comunista, ideologia de gênero, mamadeira de piroca” etc, as quais são regurgitadas pelo ignorante feliz toda vez que sai do curral, para uma voltinha na cidade.
O ignorante feliz ainda é do tempo em que se seguiam gurus. Rasputin se remexe na tumba. O ignorante feliz sabe que há um mínimo que precisa saber, para compreender por qual razão ele é um ignorante. O ignorante feliz adora ver capas de livros de astrólogos e gurus. O ignorante feliz, sim, é parente muito próximo do idiota útil. Quando juntos, constituem o que se chama de imbecil coletivo. O ignorante feliz acha que é rico, quando está apenas sendo usado pelo ignorante feliz rico. Mas ele, sorrindo amarelo, finge que não sabe.
Para o ignorante feliz, “bandido bom é bandido morto”. Bandido preto e pobre, claro. O ignorante feliz não sabe, e tem raiva de quem sabe, quem é Chomsky. O ignorante feliz jamais lerá O mestre ignorante, de Jacque Rancière. O ignorante feliz não sabe como as democracias morrem. O ignorante feliz não soube da morte do autor. E daí? perguntaria ele. O ignorante feliz se autodenomina um “cidadão de bem”. É, como diria Belchior, um cidadão comum, como esses que se vê na rua. Fala de negócios e vê show de mulher nua.
De dia, o ignorante feliz é defensor da tradicional família brasileira e dos bons costumes (seja lá o que isso queira dizer), mas à noite “todos os gatos são pardos”. O ignorante feliz rosna pelo direito de possuir uma arma, quando não consegue pagar nem as próprias contas. O ignorante feliz põe sua camiseta da seleção brasileira para ver lives de "artistas" que, assim como ele, acreditam em mitos e em messias com armas na mão. O ignorante feliz gosta da Regina. Adora vê-la defender ditaduras e tripudiar de mortos e torturados.
O ignorante feliz é um ser atormentado que, por suas observáveis aflições, poderia muito bem constar no tríptico de Bosch, o Jardim das Delícias Terrenas ou no Inferno, da Divina Comédia, de Dante. O ignorante feliz acredita que as instituições democráticas devem ruir, para que se instale a democracia. O ignorante feliz é intolerante, racista, misógino, xenófobo, homofóbico, velhofóbico, e é contra tudo o mais que não caiba nas limitações da sua cabecinha oca, controlada remotamente por robôs e trolls.
O ignorante feliz é feliz no seu vazio existencial.
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