O horror da gravidez de Soledad Barrett
Comecemos pela farsa que nega a gravidez de Soledad Barrett. Em 17 de outubro de 2011, o Cabo Anselmo se apresentou no Roda Viva. Ele estava à vontade, porque os entrevistadores pesquisaram mal a história dos seus crimes
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O horror, o terror continua vivo, 45 anos depois dos acontecimentos da ditadura brasileira. E a indignação em silêncio forçado também, como veremos a seguir.
Comecemos pela farsa que nega a gravidez de Soledad Barrett. Em 17 de outubro de 2011, o Cabo Anselmo se apresentou no Roda Viva. Ele estava à vontade, porque os entrevistadores pesquisaram mal a história dos seus crimes, para confrontar suas esquivas com os depoimentos de testemunhas de 1973, ano das execuções de 6 militantes socialistas no Recife.
Em um dos momentos de calculado cinismo, Anselmo se refere a Soledad Barrett. Entrevistador: " O senhor contesta que ela estivesse grávida, como a versão histórica ...?"
Cabo Anselmo: " Se eu acreditar, como dizem os médicos, que o DIU era o mais seguro dos preservativos, eu contesto, sim".
E o entrevistador levanta a bola para o traidor : "Então o feto encontrado lá não era dela?"
Cabo Anselmo: "Eu imagino que seria da Pauline. A Pauline estava grávida, inclusive teve problema de gravidez, e Soledad a levou até o médico".
Conheçam agora a palavra de Nadejda Marques, filha única de Jarbas Marques, um dos seis militantes socialistas mortos no Recife. Hoje, Nadejda Marques é doutora em Direitos Humanos e Desenvolvimento. Ela é autora de um livro ainda não traduzido no Brasil, o "Born Subversive: A memoir of Survival", que narra a sua difícil sobrevivência depois da chacina da granja São Bento em 1973.
Nos dias de carnaval, conversei com ela. De passagem, me contou: "Soledad Barrett me deu uma roupinha de bebê". E pude ver o que não queria, nem imaginava. Nadejda descobriu um quadro que até então era desconhecido sobre o Cabo Anselmo e Soledad Barrett. Aqui vai resumido, nos limites permitidos, o seu depoimento:
"A minha avó Rosália, mãe de Jarbas Marques, conseguiu entrar no necrotério. Ela, entre os vários trabalhos que tinha, era também enfermeira. Ela conhecia a pessoa de Soledad. Minha avó sempre contava o que viu no fatídico janeiro de 1973. Meu pai, com marcas de tortura pelo corpo tinha marcas de estrangulamento no pescoço e água nos pulmões compatíveis com o resultado da tortura por afogamento. Os tiros no peito e na cabeça foram dados após sua morte. O corpo de Soledad, ensanguentado ainda, tinha restos de placenta e um feto dentro de um balde improvisado".
Esse depoimento acaba de vez com o cinismo e sinuosas mentiras que negam a gravidez de Soledad Barrett. Antes, o Cabo Anselmo afirmara que Mércia Albuquerque, por não conhecer Soledad, havia confundido os cadáveres - Pauline, a outra vítima, é que seria a dona do feto. E que, portanto, Soledad estaria livre de qualquer embrião no ventre. Mas na pesquisa com sobreviventes aparecem muitos relatos de pessoas que conheciam Soledad, grávida, e pelo menos uma delas, enfermeira, a viu no necrotério destruída, com o aborto causado pela morte. O problema é saber se o feto viu antes a luz ou as trevas no necrotério.
Como horror, isso bastaria. Já ultrapassa o ponto. Mas o inferno continuou para as sobreviventes. A mãe de Nadejda e uma tia, para não serem mortas, se esconderam num apartamento vazio de um parente. Esse lugar foi buscado e achado pelo Cabo Anselmo e Fleury. Pelo olho mágico da porta, elas viram os dois. E vem então mais um trauma: enquanto a campainha tocava, a mãe de Nadejda fechava a boca da criança com força, para que ela não chorasse e denunciasse a presença delas. Apertou com tamanho desespero que machucou o queixo da filha. Nadejda era um bebê com 10 meses de idade.
Tanto quiseram mentir, difamar a memória do terror de Estado no Brasil. Tanto quiseram desmerecer a denúncia da advogada Mércia Albuquerque, mas a história afinal dá razão e comprova o que ela uma vez falou:
"Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror. Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela. O que mais me impressionou foi o sangue coagulado em grande quantidade. Eu tenho a impressão de que ela foi morta e ficou deitada, e a trouxeram depois, e o sangue, quando coagulou, ficou preso nas pernas, porque era uma quantidade grande. O feto estava lá nos pés dela. Não posso saber como foi parar ali, ou se foi ali mesmo no necrotério que ele caiu, que ele nasceu, naquele horror".
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