O golpe de Estado continuado

"Com a vitória de Lula, a democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado continuado. E agora?", pergunta Boaventura Santos

Lula
Lula (Foto: Ricardo Stuckert)


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Por Boaventura de Sousa Santos 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Neste domingo tornou-se evidente que está em curso um golpe de Estado no Brasil. É um golpe de tipo novo, cujo curso poderá não ser substancialmente afetado pelo resultado das eleições, ainda que a vitória de Lula da Silva certamente afetará o seu ritmo.

É um golpe que começou a ser posto em movimento em 2014 com a contestação dos resultados das eleições presidenciais ganhas pela presidente Dilma Rousseff; prosseguiu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; com a prisão ilegal do ex-presidente Lula da Silva em 2018 de modo a impedi-lo de concorrer às eleições que foram ganhas pelo presidente Jair Bolsonaro, beneficiário principal do golpe de Estado na sua fase atual.

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Com a eleição de Jair Bolsonaro encerrou-se a primeira fase do golpe e iniciou-se uma segunda. Tal como Adolf Hitler em 1932, Jair Bolsonaro tornou claro desde o primeiro momento que se servira da democracia exclusivamente para chegar ao poder e que, uma vez atingido este objetivo, exerceria o poder com o exclusivo objetivo de a destruir. Nesta segunda fase, o golpe assumiu a forma de esvaziamento lento da institucionalidade e da cultura política democráticas, cujos principais componentes foram os seguintes.

No domínio da institucionalidade: exploração de todas as debilidades do sistema político brasileiro, nomeadamente do poder legislativo, aprofundando a mercantilização da política, a compra e venda de votos dos representantes do povo no período entre eleições e a compra e venda de votos de eleitores durante os períodos eleitorais; a cumplicidade do sistema judiciário conservador incapaz de imaginar a igualdade dos cidadãos perante a lei e habituado a conviver tanto com o primado do direito como com o primado da ilegalidade, dependendo dos interesses em causa; a captura das Forças Armadas através da distribuição massiva de cargos ministeriais e administrativos.

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No domínio da cultura política democrática: a apologia da ditadura e dos seus métodos repressivos, incluindo a tortura; utilização massiva das redes sociais para divulgar notícias falsas e promover a cultura do ódio e uma ideologia de bem-estar esvaziada de outro conteúdo que não o do mal-estar ou sofrimento infligido ao “outro” construído como inimigo; a capilarização no âmago do tecido social do imperialismo religioso conservador dos EUA (evangelismo neopentecostal) em vigor desde 1969 como preferencial política contra-insurgente.

Esta fase concluiu-se no final do primeiro turno das eleições presidenciais em 2 de outubro passado. A partir daí, entrou numa fase nova assente no ataque frontal ao núcleo duro da democracia liberal, o processo eleitoral e as instituições encarregadas de garantir o seu decurso normal. Esta fase é qualitativamente nova em razão de dois fatores.

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Em primeiro lugar, tornou-se mais clara a internacionalização do ataque à democracia brasileira por via de organizações de extrema direita globais originárias e financiadas pela plutocracia norte-americana. O Brasil transformou-se no laboratório da extrema direita global; aí se testa a vitalidade do projeto fascista global em que o neoliberalismo joga um novo (último?) fôlego.

O objetivo principal é a eleição de Donald Trump em 2024. Informações fidedignas dão-nos conta de que as empresas de desinformação e de manipulação eleitoral ligadas ao notório fascista Steve Bannon estiveram instaladas em dois andares de uma das ruas principais de São Paulo donde dirigiram as operações.

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Nesta fase eleitoral, as duas estratégias principais foram as seguintes. A primeira foi a intimidação para impedir o “voto errado” e os benefícios em troco do “voto certo” oferecido pelo baixo empresariado e por políticos locais. A segunda, há muito utilizada pelas forças conservadoras nos EUA, sob o nome de vote suppression, foi a supressão do voto. Tratou-se de um conjunto de medidas excecionais, sempre sob o verniz da normalidade legal, destinadas a impedir os grupos sociais mais inclinados a votar no candidato oposto aos golpistas de exercer o seu direito de voto: bloqueios de estradas, excesso de zelo na fiscalização de veículos que transportam potenciais votantes, intimidação de modo a provocar a desistência, suspensão de transportes gratuitos decretados pela lei eleitoral para promover o exercício do direito de voto aos mais pobres.

E agora, Brasil? A democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado continuado. Para isso contribuiu o notável e destemido envolvimento dos democratas brasileiros que viram no seu voto a prova de uma vida minimamente digna, a afirmação da sua auto-estima civilizatória, o princípio ativo da energia democrática para os tempos difíceis que se avizinham. Contribuiu também a firmeza das instituições da justiça eleitoral, no meio de pressões, de desautorizações e de intimidações de todo o tipo. Mas seria estultícia irresponsável pensar que o processo golpista terminou. Não terminou e vai entrar numa nova fase porque as condições e as forças nacionais e internacionais que o reclamam desde 2014 continuam vigentes e só se fortaleceram nestes anos mais recentes.

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O golpe de Estado continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas, ora mais institucionais com a mobilização desviante do poder legislativo para criar uma situação de permanente ingovernabilidade, nomeadamente com a ameaça de impeachment do governo eleito e dos quadros superiores do sistema judicial.

Embora o objetivo de médio prazo dos golpistas seja impedir que o Presidente Lula da Silva termine o seu mandato, o processo do golpe continuará e só será verdadeiramente neutralizado quando os democratas brasileiros se derem conta de que a vulnerabilidade da democracia é em boa medida auto-infligida, pela arrogância em pretender ser a única condição para a legitimidade do poder em vez de assumir que a sua legitimidade estará sempre à beira do colapso numa sociedade socioeconómica, histórica, racial e sexualmente muito injusta.

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Publicado originalmente no jornal Público.

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