O gigante idílico pode deitar-se em berço esplêndido, os progressistas não
Valem mais as críticas de Lula aos militares na reunião com os governadores do que as ilusões de alguns com a comunidade fardada, escreve José Reinaldo Carvalho
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Por José Reinaldo Carvalho, 247 - Somente os incautos, os ingênuos, os desprovidos de senso podem crer que Jair Bolsonaro e seus asseclas no Brasil e os que estão homiziados com ele em Miami não têm nada a ver com a intentona golpista do último domingo. Ou que entre os coadjuvantes do golpismo não se encontrem oficiais de todas as patentes das três armas. Pensar que as forças progressistas e de esquerda podem ser distraídas por tertúlias mansas sobre o caráter democrático da instituição castrense é subestimar a capacidade de análise e ação política de forças cuja missão histórica é comandar a luta por transformações políticas de fundo no país. Por isso valem mais as alusões críticas de Lula aos militares na reunião com os governadores do que as ilusões de alguns com a comunidade fardada.
O virulento ataque à democracia ocorreu em meio a uma inaudita polarização política, expressa nos próprios resultados das urnas. Ficou evidente que parte significativa da população brasileira foi capturada por promessas demagógicas e pelo discurso da extrema-direita bolsonarista, que explorou sentimentos populares e acusou as forças democráticas e progressistas de serem corruptas e contrárias a concepções arraigadas quanto a temas religiosos e de convivência familiar e social. Mas é inequívoco que o terrorisno bolsonarista e seu chefe saíram isolados dos terrificantes episódios de 8 de janeiro.
Jair Bolsonaro é o chefe da intentona. Tudo o que fez ao longo dos quatro anos em que esteve à frente do Poder Executivo foi no sentido de criar uma situação propícia a que empalmasse o poder por meios heterodoxos visando a implantar uma tirania através da qual seu clã se locupletaria por tempo indefinido. Tudo o que fez foi exceder-se em declarações e atitudes que agridem a democracia, o bom senso, a justiça, as aspirações e a opinião democrática da maioria da população. Em incessantes atos de traição nacional, trabalhou para submeter o Brasil a interesses alienígenas e da extrema-direita mundial sob a égide de Donald Trump. Nisso ele foi transparente e mesmo na última fala explicou ao seu público que fez de tudo e tentou até a undécima hora encontrar uma alternativa que contornasse o resultado eleitoral. E deixou avisado que prosseguiria na tentativa de executar a estratégia do golpe continuado.
Nos últimos quatro anos Bolsonaro afrontou as instituições do estado democrático de direito, a Constituição, as leis, comprometendo o prestígio do país, a tal ponto que mesmo personalidades e forças políticas que ajudaram a pavimentar o caminho golpista que o levou ao poder foram dele se afastando e ao final da campanha eleitoral aderiram à candidatura de Lula. Bolsonaro nunca respeitou os Poderes republicanos, nem mesmo o Executivo, do qual era titular eventual apenas para favorecer seu clã. Dedicou-se à tentativa de desmoralizar o sistema eleitoral e a arregimentar turbas que lhe serviram de massa de manobra. Cooptou numerosos efetivos e quadros superiores das Forças Armadas, previamente disponíveis pelo seu atávico reacionarismo. Pôs a seu serviço outras corporações policiais nos estados e corrompeu parte da Polícia Federal. Foi um trabalho diuturno que resultou em bloqueios de rodovias, em manifestações e acampamentos dentro das zonas militares, onde os bandos bolsonaristas encontraram abrigo, proteção e estímulo. Tantas foram as violações às mais elementares normas democráticas que não creio ser difícil aos Poderes arrolar os seus crimes, processá-lo e condená-lo no mínimo à perda dos direitos políticos.
Bolsonaro nunca reconheceu sua derrota eleitoral. Desde o dia do segundo turno (30 de outubro), lideranças bolsonaristas organizaram em todo o país ocupações de rodovias e acampamentos de multidões nas portas dos quartéis militares, entre estes o do Comando do Exército em Brasília. Foram organizadas caravanas com centenas de ônibus que se deslocavam entre diferentes cidades. Essas mobilizações contavam com a participação de pessoas financiadas por empresários, sobretudo do setor agrário. No dia 12 de dezembro, quando o Tribunal Superior Eleitoral certificou Lula com o diploma de presidente eleito, do acampamento em frente ao QG do Exército em Brasília saíram terroristas que atearam fogo em instituições, inclusive policiais, e instalaram uma bomba em um caminhão-tanque de combustível em frente ao aeroporto. Se a bomba tivesse sido detonada (o atentado foi abortado em tempo hábil, mas por mero acaso), teria ocorrido uma tragédia de incalculáveis proporções.
A intentona de 8 de janeiro é o corolário de tudo isso - dos quatro anos do mandato bolsonarista e dos dois meses transcorridos desde o segundo turno, durante os quais os bolsonaristas atuaram afanosamente por um golpe.
Os ataques à democracia de 8 de janeiro mereceram a condenação unânime das instituições brasileiras, das mais diversas forças políticas e organizações dos movimentos populares. Igualmente da comunidade internacional, numa demonstração de que não há ambiente favorável aos golpistas.
Lula comportou-se de maneira serena e firme e conseguiu debelar o golpe. Mas as movimentações golpistas indicam que seu mandato poderá ser marcado por graves conflitos políticos, o que exigirá vigilância e mobilização das forças democráticas e progressistas. A ameaça do neofascismo brasileiro não deve ser subestimada. Outras intentonas golpistas podem ocorrer no futuro.
Há desafios urgentes a enfrentar. O primeiro é organizar a resistência democrática - institucional e popular - contra o terrorismo bolsonarista.
Outro desafio é começar a governar efetivamente, enfrentar os graves problemas nacionais, a começar pela questão social e dar início à caminhada que leva ao desenvolvimento.
Não é possível prever como evoluirá a situação. Em qualquer circunstância será necessário consolidar os progressistas no interior do governo de coalizão e no parlamento, para melhorar a correlação de forças numa situação política em que, para obter condições de governabilidade, Lula promoveu a coabitação com setores conservadores visando a isolar o bolsonarismo. Seu governo é um amálgama entre forças de esquerda, democráticas e progressistas com forças de centro, centro-direita e direita, excluindo a extrema-direita bolsonarista. Por isso será um governo em disputa, fortemente apoiado pela esquerda, forças democráticas unidas em frente ampla e o movimento popular.
A batalha não está ganha, devido à desigualdade de forças entre os progressistas e os conservadores. O essencial para enfrentar o golpismo, defender a democracia e assegurar o êxito do governo de Lula será a mobilização popular e a iniciativa para corresponder aos anseios da população e fazer o que a nação reclama. Isto exige luta, não afirmações vazias de conteúdo, retórica de efeito midiático. Menos ainda a conciliação com inimigos figadais do povo e a pusilanimidade.
O gigante idílico do Hino Nacional pode deitar-se em berço esplêndido, as forças progressistas e de esquerda não.
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