O futebol do machismo, do racismo e da sonegação é uma paixão nacional?
A relação entre esporte e cidadania é construída intencionalmente e exige condições de pactuação social, podendo apontar para a barbárie ou para a evolução
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A premissa de que existe uma relação óbvia entre o esporte e a formação moral dos seus praticantes pode facilmente ser refutada com os últimos acontecimentos no mundo esportivo. Alegar que o esporte por si só seja suficiente para contribuir com uma sociedade mais justa é um lugar-comum que não se sustenta à primeira busca no Google.
O futebol, em especial, tem perdido de 7x1 para as novas agendas do século XXI. Parte significativa dos “boleiros” profissionais representa o anacronismo comprometido com a velha misoginia, a velha ilegalidade e o velho racismo.
O comportamento criminoso e repugnante de alguns jogadores de futebol brasileiros prestigiados mundialmente faz cair por terra a afirmação de que esporte e cidadania caminham juntos naturalmente. De “socar a cara” da vítima de um estupro, como afirmou Robinho em áudios vazados, ao perdão de Daniel Alves à mulher que o denunciou como estuprador, acompanhamos de camarote a decadência da figura do atleta bom cidadão.
Na contramão dessa crença, parte justamente do atleta cidadão de bem, declaradamente bolsonarista e apoiador da tríade “Deus, pátria e família”, o pedido público de desculpas pela traição à namorada grávida. Neymar Júnior recebeu apoio de diferentes personalidades, sendo parabenizado pela coragem egocentrada e narcisista de realizar uma postagem no Twitter assumindo seu “erro” e expondo Bruna Biancardi, mãe de seu segundo filho. Aliás, a fama do “menino Ney” não está circunscrita aos campos, frequentemente seu nome está envolvido em escândalos e casos controversos envolvendo a cultura da misoginia e do ódio.
Para além do machismo, nos últimos meses temos sido surpreendidos com a participação de diversos jogadores num esquema mafioso de apostas. De direito à negócio, o mundo esportivo está cada vez mais dominado pela lógica patriarcal e capitalista do “quem pode e ganha mais”, refletindo (e criando) as mazelas sociais e sendo palco de escândalos que apontam um caminho distante do olhar iluminista que figura no imaginário popular ao relacionar esporte e civilidade. Haja visto o triste exemplo dos jogadores da seleção brasileira comendo carne com ouro no Qatar, enquanto milhões de torcedores em seu país vendem o almoço para comprar o jantar.
Ainda dentro do espectro econômico, cabe-nos perguntar quanto dos impostos sonegados por jogadores que têm ganhos exorbitantes serviriam para financiar políticas públicas que favoreceriam jogadores mais pobres (por exemplo os outros 95% que ganham menos de 3 salários mínimos), ou quem sabe, sonhando alto, atletas de outras modalidades esportivas? Poderiam, inclusive, financiar políticas públicas de combate ao racismo e à homofobia presentes nos estádios. Um monstro que só cresce.
Para não dizer que não falamos das flores, é preciso defender a militância política de alguns jogadores em apoio a importantes causas sociais, assim como a atuação de diversos setores da sociedade que reivindicam e promovem o esporte mais estruturado no campo educacional, voltado para a formação integral dos sujeitos. Como é o caso, por exemplo, de inúmeros atletas, profissionais ou não, que têm sido beneficiados pela Lei de Incentivo ao Esporte, uma política pública que compreende e reafirma o esporte como um direito.
Essa discussão pode nos aproximar de uma questão inquietante: é o esporte que promove a cidadania ou é a cidadania que promove o esporte? Historicamente, governos autoritários e conservadores utilizaram o esporte como um dispositivo disciplinar de domesticação dos corpos, prevenção de doenças e afirmação meritocrática da potência corporal e suas capacidades físicas. A relação entre a prática esportiva e o militarismo é bastante orgânica, vale relembrar a apropriação que o governo militar fez da conquista do Tri Campeonato Mundial que a seleção brasileira obteve em 1970. Por vezes, ela também é patética, como pudemos assistir no freak show oferecido pelo ex-presidente Bolsonaro, aquele do “histórico de atleta”, que mimetizou flexões de braço mal executadas.
Em tempos democráticos, o esporte se configura como manifestação cultural esportiva, fator de promoção da saúde e educação e, finalmente, como um direito social. Um fenômeno que não se restringe aos campos de futebol, não se aliena à lógica do mercado e não se circunscreve apenas à dimensão de performance. Em sua forma de performance, de lazer, de formação ou educacional, o acesso ao esporte, assim como os demais avanços sociais dos quais que gozamos, é fruto de muita luta e da compreensão de que o esporte deve carregar consigo princípios sustentáveis e democráticos, como a inclusão e a diversidade.
A relação entre esporte e cidadania não é natural, ela é construída intencionalmente e exige condições mínimas de pactuação social, podendo apontar para a barbárie ou para a evolução. Em 2023, o Ministério do Esporte foi reconstituído pelo presidente Lula, contando com a atuação da ministra e ex-atleta Ana Moser para garantir que o esporte chegue a todos e todas, do chão das quadras das escolas aos campinhos de terra, com a potência que a manifestação esportiva pode e deve ter. Entre o dever e o direito, assim como funciona a cidadania, que possamos, enfim, encontrar no esporte uma das fontes da construção de um Brasil menos envergonhado por seus pseudoatletas milionários que, infelizmente, pelo destaque que recebem da mídia, acabam por influenciar negativamente milhares de crianças e jovens.
Em contrapartida, que a luta encampada por Vinicius Junior, dentre outros, ou de inúmeros casos/exemplos de superação e transformação social obtidas por meio da prática esportiva possam se sobrepor e ganhar evidência, influenciando positivamente a atual e futuras gerações. O esporte é uma prática social, portanto, uma produção humana. Portanto, ele não é, em sua essência (como dizem), nem ruim, nem mau. É aquilo que fazemos dele.
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