O estranhamento digital, um problema também da esquerda

"A polêmica trazida pela ministra do esporte, Ana Moser, a respeito do próprio conceito de 'esporte' é bizarra", critica Fernando Horta

Ana Moser
Ana Moser (Foto: Divulgação)


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O termo “progressista” pode dar a errada percepção de que o indivíduo tem posições voltadas à transformação (e aceitação dos resultados dessa transformação) em todas as áreas de sua vida. As mulheres que se identificam como participantes do campo da esquerda já denunciaram, no entanto, posturas de homens “progressistas” que, no entanto, são tão (ou mais) conservadoras sobre determinados assuntos que os indivíduos que se reconhecem como conservadores. É verdade que não há uma inclinação política pétrea com os quais os indivíduos se sintam representados, o que não se espera de uma esquerda crítica é permitir que o senso comum se sobreponha às percepções críticas no entendimento das coisas do mundo.

A polêmica trazida pela ministra do esporte, Ana Mozer, a respeito do próprio conceito de “esporte” é bizarra. Primeiro porque nem deveria ser usado o termo “polêmica”, eis que a ministra está completamente equivocada no que fala. A segunda razão da bizarrice é perceber um enorme contingente de pessoas analógicas demonstrando um enorme preconceito para com as transformações do mundo digital. E um preconceito informado pelo senso comum em moldes muito parecidos com aqueles demonstrados pelos chamados “bolsominions”. Se você acredita que e-sports NÃO é “esporte”, sinto dizer que você não só está errado, mas também demonstra uma enorme incapacidade de compreender as mudanças.

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Em primeiro lugar, vamos colocar a bola no chão. Minha discussão aqui não é sobre verbas ou direitos e possibilidades de investimento. Acho que os e-sports têm capacidade de autofinanciamento sendo que talvez seja requerido apenas um ou outro programa de renúncia fiscal para incentivo, sobretudo para a participação de grupos sociais mais carentes. Essa discussão, contudo, não é nova. O futebol também é um esporte “rico”, que pode se autofinanciar, e, mesmo assim, outras modalidades se ressentem da diferença de investimento entre eles.

Em segundo lugar, esporte é diferente de “atividade física”. Esporte nem sempre é benéfico para a saúde pois implica em um nível de treinamento que – seja em qualquer nível – traz problemas aos praticantes. Desde lesões corriqueiras até lesões repetidas, todo atleta sabe que seu corpo sofre com a prática dos treinamentos que o ESPORTE exige. E nem falo aqui de esportes cuja prática efetivamente leva a destruição do corpo como no caso das lutas ou mesmo do futebol de competição. Esporte traz uma ideia de transpassar os limites do corpo que, não raro, leva a problemas na vida dos próprios atletas. O melhor lutador de boxe de todos os tempos, Mohammed Ali, sofreu de doença causada pelo esporte. E que não se pense que as lutas são o único lugar em que se pode ver esse paradoxo entre “esporte” e “saúde”. Os joelhos, cartilagens e outras estruturas corpóreas que sejam testemunhas em futebolistas ou ginastas por aí.

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Nenhum médico nunca prescreve a prática de “esportes”, portanto. Prescrevem atividades físicas. Esporte é, em grande medida, uma escolha consciente que o cidadão faz por uma atividade competitiva em que a primeira luta do atleta é sempre contra o seu próprio corpo.

Passado esses primeiros passos é preciso tentar diferenciar “esporte” de “jogo”. Essa é uma discussão complexa que foi enfrentada já em vários países por conta das demandas dos jogadores de xadrez, de Poker, Go, Damas e etc. Seriam essas modalidades “esportes” ou “jogos”? E esta questão é mais complexa do que parece. Não cabe aqui o argumento do “entretenimento” que erroneamente a ministra trouxa. Não há como sustentar uma dicotomia entre “esporte” e “entretenimento”. Todo esporte pode ser entretenimento (e normalmente o é para quem pratica ou para quem consome) e todo mundo que já trabalhou com o ensino de esportes para crianças (como este que aqui escreve) sabe da importância de fundir essas duas categorias. No fundo a diferença entre “jogo” e “esporte” tem muito de preconceito. O caminho mais efetivo que vi era a partir do sentido de “sorte”. O melhor argumento (e que não é bom) nessa discussão afirma que “jogo” é quando o fator sorte se sobrepõe às habilidades humanas no resultado da disputa. “Esporte” seria quando as habilidades humanas seriam responsáveis últimas pelo desfecho.

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Ocorre que esse argumento é também difícil de sustentar. Se eu juntar um time com os melhores jogadores de futebol do mundo, contra outro time de jogadores amadores, é provável que o resultado seja de vitória para o time “dos bons” na imensa maior parte das vezes. O que se observa, contudo, é que quando vai se diminuindo a diferença entre as condições de treinamento, os resultados não obedecem claramente a esta regra nos esportes coletivos. Se eu jogar cem partidas de xadrez contra um grande mestre de xadrez, meus resultados serão muito menores do que se um time de segunda divisão do futebol jogar contra um de primeira. No tênis, na natação, no atletismo e etc. esse comportamento vai se repetir. Nos esportes coletivos o fator “sorte” (ou outros fatores que não as habilidades individuais) também impactam os resultados.

Mas e no poker? Inicialmente pode parecer que o fator sorte é determinante, mas essa é uma percepção errada. Os grandes jogadores de poker diminuem muito o fator sorte. Há demonstrações, por exemplo, de jogadores de poker que ganharam torneios com mais de cem pessoas sem sequer ver as próprias cartas. O fator sorte, embora seja uma aposta interessante para diferenciar “jogo” de “esporte”, sobretudo com o uso de ferramentas estatísticas, me parece insuficiente.

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O que define “esporte” é a sociedade e o interesse político. Na Grécia antiga, esportes eram praticados somente por homens livres e cidadãos, ainda. Era parte da formação do “caráter” dos indivíduos e uma atividade divina. Na antiga Roma, “esportes” eram apenas atividades físicas que simulassem os esforços de guerra. O Pancrácio, os arremessos, as corridas (incluindo bigas) e etc. somente eram reconhecidas como atividades se estivessem relacionadas à guerra. O mesmo sentido existia na idade média em que as “justas” eram consideradas esportes nobres. Falcoaria, caça, tiro e etc. todas modalidades aceitas por fazerem parte dos valores da elite da época. A compreensão da história do esporte nos mostra novamente como a ministra está equivocada. Não há uma maneira cabal de determinar o que é esporte a partir da natureza única da prática. Essas definições são socialmente construídas.

Bom, mas afinal, o que é esporte?

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E aí está todo o problema da fala da ministra. Cabe ao poder político presente definir o que para ele é esporte. E isso significa que Ana Mozer tem por função primeira definir isso. E como um governo de esquerda, nossas definições devem ser inclusivas e não exclusivas. Devemos respeitar e compreender a história e a passagem do tempo e não ser conservadores atávicos e é preciso respeitar a diversidade e não fortalecer o elitismo. Nada disso fez a ministra na sua desastrada manifestação.

Esporte é uma atividade humana de competição entre dois ou mais adversários com regras claras e definidas anteriormente e cujo desenlace do evento se dê necessariamente a partir do embate entre habilidades humanas. A ministra precisa aprender que “habilidades humanas” não se restringem a braços e pernas e que o cérebro – apesar da não aceitação de muitos – é parte do corpo humano. A ode ao suor, aos músculos e ao sofrimento que fazem parte do meta-texto da definição da ministra só encontra eco nas sociedades clássicas em que as mulheres não podiam participar dos esportes. Há esportes em que a relação “esforço físico de braços e pernas” e “capacidade intelectual” é balanceada de forma diferente. Uma luta de boxe e um jogo de xadrez requerem habilidades diferentes, mas são esportes (aliás existe a modalidade “Chess-boxing que vale conferir). Entre a exaustão de um maratonista e a precisão de um praticante de arco e flecha, vai uma enorme gama de diferentes usos de habilidades humanas. E todas são esportes porque a sociedade assim o definiu.

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Mas e o digital? E os E-Sports?

Bom, primeiro é preciso que deixemos de lado as falas ofensivas de algumas pessoas que perguntaram “vídeo game é esporte”, “bulita é esporte?” e infantilidades do gênero. Essas pessoas não são interlocutores válidos nessa discussão e esse é o tipo de argumento que os estúpidos usam quando discutimos temas sérios. No caso da avaliação sobre os E-Sports a ministra erra fragorosamente também. O nível de treinamento, concentração, compreensão, cooperação, adesão às regras comuns que se vê nos E-Sports é exatamente o mesmo que se vê nos esportes “clássicos”. “Vídeo game” não é esporte assim como uma pelada de final de semana não vai te habilitar para jogar no Milan. Quando a atividade é levada à sério em nível de competição, contudo, ela é idêntica às definições de esportes clássicos.

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Isso quer dizer que alguém que joga “tênis” num jogo digital é tão esportista quanto o Roger Federer?

A resposta é sim. Se houver esforço social para transformar o jogo digital de tênis em um jogo competitivo não há diferença. Vamos lembra que o tênis surge como um jogo de madames. Como uma distração para os longos e entediantes dias nas cortes europeias da idade moderna e que era praticado por “senhouras” de espartilho, botas e vestidos longos. A atividade humana se transforma e a transformação digital é inerente ao século XXI. Tentar conter, controlar e excluir a novidade é o caminho dos conservadores. Não dos progressistas.

A ministra ainda usa argumentos ruins, mal elaborados e falsos para justificar seu ponto de vista. Afirma que os e-sports “não são imprevisíveis” (SIC) como se alguma modalidade esportiva realmente o fosse. A essência do esporte é, aliás, ser previsível. As disputas entre as habilidades humanas precisam se dar previsivelmente dentro das regras. E as regras do futebol, do vôlei ou do xadrez criam um ambiente controlado e previsível (que supostamente não oferece risco à vida do atleta na busca pela vitória) da mesma forma como as regras construídas pelos programas digitais. Não há diferença aqui. As regras do tênis foram organizadas (ao longo do tempo) para especificar determinadas habilidades humanas que seriam necessárias para a vitória. Coordenação entre olho e braço, capacidade cardiopulmonar, desenvoltura corporal e leitura do oponente, por exemplo. Um jogo digital de tênis, especifica outras habilidades humanas para a vitória. Mas ainda habilidades humanas.

O último argumento da ministra é ainda pior. Afirma que nos E-sports, uma empresa é “dona” da modalidade, como se isso fosse razão de diferença. Sugiro à ministra, correndo o risco do pedantismo, que procure ver a dificuldade que os clubes profissionais de futebol estão tendo para criar uma “Liga” sem o aval da CBF. Se conseguirem criar, contudo, precisarão do aval da FIFA. E quando a ministra baixar uma lei garantindo a todos os clubes poder participar de quaisquer campeonatos, e submeter a CBF e a FIFA, então voltamos a conversar sobre “donos de modalidades”.

No fim, a fala de Ana Mozer demonstrou um elitismo inaceitável quando se trata de esportes. A ministra desconhece sequer o que seja esporte e defende uma visão de músculos, suor e fibra que deixa de fora muitas modalidades que a sociedade aceita já como esporte. Na fala da ministra transparece uma divinização do atleta, bem aos moldes gregos e que não tem mais lugar nas sociedades atuais. Que a grande Ana Mozer seja reconhecida como uma das maiores atletas e vôlei desse país é realmente algo histórico. E eu perdi a conta dos gritos de felicidade que dei com os ataques de entrada ou saída de rede, com bloqueios ou com as fantásticas recuperações que a ministra nos brindou enquanto atleta. Agora, como ministra, esperamos que Ana Mozer compreenda que a sacralização do esporta não impõe a exclusão das transformações digitais e tampouco o elitismo da constituição física. O Esporte precisa ser democratizado e é função da ministra fazer jovens negros serem revelados no hipismo, no automobilismo ou nas disputas de LOL. E eu torço por ela, como torcia naqueles jogos de vôlei que tanto acompanhei.

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