O Emérito Aluno de Marx, Keynes e Schumpeter
Das incontinências do nosso tempo, nos resta o tempo da crítica, vilipendiado pelo pouco tempo de reflexão que nos permitimos
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A Universidade de Campinas concedeu o título de professor emérito a Luiz Gonzaga Belluzzo. O título foi entregue dia 2 de junho no Centro de Convenções da UNICAMP. Sem presunção, gostaria de prestar a homenagem por parte dos alunos de tantas gerações que Belluzzo ajudou a formar. Não imagino maneira mais apropriada que recordando sua trajetória como aluno, especialmente, como discípulo de Marx, Keynes e Schumpeter.
Tenho para mim que a obra de Belluzzo amarra esses três autores no exercício de interpretar as transformações estruturais do capitalismo até seus contornos contemporâneos, sendo a continuidade viva de perguntas eternas.
A tríade Marx, Keynes e Schumpeter forma o corpo central de compreensão do capitalismo e, em especial, de seu núcleo sublime: as relações monetário-financeiras capazes de sugar para a superfície do capital os frutos da divisão do trabalho. Esses autores estão para a Economia, como Sócrates, Platão e Aristóteles para a Filosofia Grega.
Marx compreendeu, como nenhum outro, que a fantasmagoria que incide sobre o processo social, o convertendo em processo capitalista de produção, nasce da ocultação, do feitiço que a propriedade privada, instalada como praça central da vida moderna, impõe às relações entre os homens: ao que importa acumular tudo aparece como fruto de seu direito de propriedade, ao que importa sobreviver nada resta senão seu papel como matéria descartável da frutificação.
Diante do avanço das forças produtivas, revela Belluzzo, é na potenciação da força de trabalho – sua assimilação e descarte – que o sistema de produção fornece ao modo de produção as forças que afirmam e negam sua essência. O modo de produção, o modo de ser, explicita sua existência em seu movimento, o perpétuo curso da acumulação. Afirma-se a riqueza que cria mais riqueza, como essência da forma. As formas flutuam, os fluxos se consomem e se destroem até seu refinamento como mais-valor que retorna à forma dinheiro e é petrificado como propriedade. O ato de criação de valor conflui para sua negação, para a destruição do trabalho vivo e sua reanimação fantasmagórica como dinheiro, e emulação cadavérica como capital fixo.
Essa é, segundo suspeito, a chave que Belluzzo encontrou em sua Tese de Doutoramento, Valor e Capitalismo, para entender a teoria do valor-trabalho como teoria da valorização do capital. O movimento circular ao qual as astúcias dos marxismos vulgares submeteram a teoria do valor, acabava por denunciar um consumo de mão de obra limitado pela atrofia das condições de exploração: uma circulação entrincheirada que acabaria no estouro de um aneurisma no cérebro social.
Como teoria da valorização, portanto, como movimento contraditório que produz sua superação (negação e assimilação em um estágio superior de desenvolvimento), a teoria do valor e o próprio valor-trabalho estão condicionados a realização daquilo que lhes origina, isto é, a lei geral da acumulação capitalista cujo princípio e o fim, ou o velho começo e o novo começo, não se dão de outra forma senão na forma redentora do dinheiro. Acumular não é o instinto degenerado desse sistema e sim seu instinto de afirmação e aperfeiçoamento que degenera suas bases sociais elementares para regenerar e fortalecer suas formas necessárias, a forma do dinheiro e do capital-propriedade.
Da dissimulação do morto-vivo, vem Schumpeter ao socorro, as forças criadoras que “animam a carcaça de Fausto”, nela preservam as formas mortas e destruídas, assimiladas em seu movimento como abstração real. Por isso, a aparência monetária assombra os que negam a essência creditícia do dinheiro... O demônio que escapa dos fluxos da produção, do emprego e da renda, insulta a razão econômica com as diabruras do crédito: a criação de riqueza futura que se realiza no presente através do gasto capitalista.
Como Belluzzo já ensinou, uma coisa é uma coisa e outra coisa é a mesma coisa. Não por menos, a globalização desigual e combinada, o carreirão neoliberal, deram a chave do inferno ao demônio que prendeu o carcereiro. O Estado Social e Democrático foi aprisionado à rota de contenção das misérias e da miserável dependência entre a valorização da riqueza privada e o endividamento público, salvo conduto que dissipa o aneurisma do cérebro social, deslocando o coágulo financeiro para o eixo pulsante que corrói as democracias no ritmo crescente do ressentimento das massas entregues ao desemprego e à precarização.
No redemoinho dos satãs, Keynes se encarregou de explicar que o pecado precede a redenção, o gasto vem antes da renda sem poupança “ex-ante” que resolva a contenda entre os que procuram o valhacouto do dinheiro e os que liberam o instinto animalesco do gasto. À frente, “ex-post”, as expectativas são marcadas de forma intranquila e a valorização ou desvalorização da riqueza respeitam a morbidez e as vicissitudes do amor ao dinheiro.
As pulsões de morte, de destruição, de castração, de abstinência, não deixam de estar ligadas, no entanto, aos vícios virtuosos da criação, sobretudo, a criação de tempo-livre “que escorre do capital fixo para os caixas fortes do capital-propriedade”. Esse tempo que corre nas veias precárias do trabalho digital, excita e anima o intelecto genérico, condicionando a vida social à ciranda do trabalho precário, do consumo efêmero e do endividamento perpétuo, motivos de exaustão do tecido social.
Por isso mesmo, os incautos resistem na peregrinação pelos caminhos do indivíduo como centro fundador do universo, primo do agente representativo e gestor do equilíbrio intertemporal... Se morto o rentier, o tempo-livre socializado não poderia ser sugado pelo consumismo e pelo endividamento crescentes.
O tempo de trabalho como tempo de produção que se esmagam no valor das coisas, esmagam o tempo de vida sem valor nenhum. Por isso, uns deliberam por aí que são tempos de reforma, de criar uma nova forma de comprar tempo antes da crise civilizatória que já nos sufoca. Das incontinências do nosso tempo, nos resta o tempo da crítica, vilipendiado pelo pouco tempo de reflexão que nos permitimos. Por isso, valorizar quem deu seu tempo ao ensino, também é criar novos tempos para aprender.
Ainda, é essa dimensão do tempo que transforma o aluno em professor. Outros tempos, o do saber, menos resfolegante, o da vida, mais turbulento. O primeiro passa e perdemos a corrida, passamos o bastão para que outros continuem. O segundo flui e insurge sobre a própria vida na fé, no amor e nas amizades. Os dois se encontram e perguntam quanto tempo passou?
Ao mestre.
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