O difícil resgate da democracia no Brasil
O cientista político Emir Sader afirma que, depois do golpe de 64, "a esquerda passou a incorporar a dimensão democrática como uma questão essencial de suas lutas" e "a lutar não apenas pela democracia social, mas indissoluvelmente pela democracia política"; "Foi assim que foi possível a mais importante conquista política da história democrática do Brasil – a eleição de Lula", afirma o colunista do 247; para ele, o golpe de 2016 terá como "um dos seus piores efeitos a desmoralização da democracia", como quer a direita, a fim de facilitar um de seus maiores objetivos: "a imposição do voto optativo, que incentiva a massiva abstenção e ajuda a deslegitimar o sistema político"
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A esquerda brasileira havia sido acusada, no passado, de subestimar a importância da democracia. De criticar o capitalismo por suas injustiças, mas de não valorizar devidamente a democracia.
O golpe militar e o fim da democracia existente no Brasil antes de 1964 impuseram um duro aprendizado à esquerda, que se deu conta de como a democracia – como passou a ser moda a partir daquele momento – era um valor universal. Ou, pelo menos, como a construção da democracia não é uma simples forma ou, que, nas palavras de Hegel, a forma é a forma de um conteúdo, o que significa dizer que são inseparáveis forma e conteúdo, democracia e justiça social.
A ação repressiva da ditadura destruía tudo ao mesmo tempo, de forma indissolúvel: democracia e direitos sociais. O arrocho salarial chegou junto com a intervenção nos sindicatos e, simultaneamente, com a destruição de tudo o que representava algo de democrático no Brasil da época.
De uma ou outra forma, a esquerda passou a incorporar a dimensão democrática como uma questão essencial de suas lutas. A redemocratização, mesmo chegando de forma limitada e unilateral, trouxe um novo período histórico, marcado pela democratização política que permitia não apenas uma expressão mais ampla das opiniões, mas também condições mais favoráveis para a luta pelos direitos de todos. A esquerda passou a lutar não apenas pela democracia social, mas indissoluvelmente pela democracia política.
Foi assim que foi possível a mais importante conquista política da história democrática do Brasil – a eleição de Lula como presidente do país. Era uma demonstração de como a democracia brasileira era capaz de assimilar a vitória de um líder sindical de esquerda, um imigrante nordestino, líder de um Partido dos Trabalhadores.
A legitimidade dos governos que, pela primeira vez, colocavam a questão social no centro da sua ação e da agenda do país, permitiu que a democratização política da saída da ditadura fosse complementada com o maior processo de democratização social da história do país. O que levou a quatro vitórias sucessivas dos governos que o encarnaram, demonstrando como se havia formado uma maioria progressista, favorável ao modelo de desenvolvimento econômico com distribuição de renda.
Não foi sem enfrentar muitos obstáculos que esse modelo pôde se afirmar. O poder do dinheiro nas campanhas eleitorais, mais fortemente presente nos parlamentos, o caráter opressivo da manipulação dos monopólios dos meios de comunicação, são elementos que limitaram, até onde foram capazes, a expressão livre da vontade da massa da população.
Até que o golpe montado como atalho para tirar o PT do governo, sem ganhar eleições, representa um novo e duro golpe na democracia. Caso se consolide, um dos seus piores efeitos será a desmoralização da democracia, um dos efeitos que a direita busca com seu golpe. Que a descrença na democracia provoque o desencanto, a abstenção, que facilite um dos objetivos maiores da direita: a imposição do voto optativo, que incentiva a massiva abstenção e ajuda a deslegitimar o sistema político, considerado sempre democrático, mas com cada vez menor participação e menos legitimidade. Se instauraria assim uma "democracia relativa", segundo os cânones neoliberais, aquela que só atende as demandas que o modelo econômico neoliberal permite e exclui a grande massa necessitada da população, que não interessa ao mercado.
A esquerda tem pela frente, além da defesa diante da brutal ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, dos recursos para políticas sociais, do patrimônio público, o resgate da democracia. A começar pela democracia nas suas formas de atuação. Considerar o patrimônio público como sagrado, agir com total transparência, ter a ética como princípio fundamental da ação política e da vida pessoal.
Mas para resgatar a democracia, a esquerda precisa ter uma crítica radical dos obstáculos a uma verdadeira, ampla e profunda democracia no Brasil. Precisarão incorporar, como elemento fundamental, a democratização do sistema político e do próprio aparelho de Estado como questões indispensáveis para que o país se torne efetivamente democrático.
Os movimentos populares se deram conta, com a ameaça à democracia, como as próprias conquistas sociais só tinham sido possíveis com a democracia e como a ameaça a esta coloca em risco todos os direitos sociais conquistados. A direita brasileira, depois do "susto" da vitória de Lula e do sucesso dos governos do PT, está disposta a impor um sistema político antidemocrático, operação da qual faz parte a tentativa de inviabilizar a candidatura de Lula, como representante maior do fortalecimento da democracia brasileira, ao incorporar-lhe irreversivelmente sua dimensão social.
A luta pela democracia estará no centro do período contemporâneo no Brasil, seja como forma de garantia da imposição da vontade da maioria, seja como espaço indispensável para garantir os direitos conquistados, consolidá-los e retomar o processo de democratização social, econômica, cultural e política do Brasil.
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