O “diálogo” civil-militar

"Se a Defesa brasileira persistir ditada por comandantes, como sempre ocorreu, será perdulária, tacanha e vexatória", enfatiza Manuel Domingos Neto

Presidente Lula se reúne com chefes das Forças Armadas
Presidente Lula se reúne com chefes das Forças Armadas (Foto: Ricardo Stuckert/PR)


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Oficiais reagem mal à ideia de a Defesa Nacional ser formulada e conduzida pelo poder político. Consideram que orientações sobre tal matéria devem ser fruto do “diálogo” civil-militar. Desta forma, rejeitam o princípio da soberania popular que fundamenta a democracia moderna. É uma ideia que amesquinha a Carta e é inexequível. 

Ao castro o que é do castro, ao político o que é do político. O político não deve nem pode se imiscuir no que é intrínseco à corporação. Corporação militar tem seu jeito único, que precisa ser respeitado nos limites da lei e segundo prescrições da Defesa Nacional. Intromissão externa no quartel é deletéria e quimérica: comandantes não podem abdicar de suas autoridades e corporações não abrem suas caixas pretas sob pena de se esvaírem. O castro acumula experiência milenar. O mais renovador dos exércitos incorpora Sunt Tzu, Aníbal, César, Napoleão... 

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 A ideia de “diálogo” anula a autoridade do Estado. Apenas o poder político pode estabelecer diretrizes políticas. Não cabe ao militar o papel de interlocutor, não obstante ser consultor indispensável ao político. Ao Estado, cumpre qualificar-se para estabelecer a política de Defesa, o que implica em deter corpo profissional especializado, capaz de perceber o ponto de vista da caserna sem se engabelar com fraseados panegíricos e interesses menores. 

Generais, almirantes e brigadeiros são limitados para formular a Defesa Nacional porque se trata da política pública de amplo espectro. Abrange o conjunto do aparelho de Estado e a sociedade. Transcende os assuntos militares. Quem controla a Defesa, controla o Estado e tenta impor sua vontade sobre a sociedade. Se o militar der as cartas na Defesa, encarnará o poder discricionário de reis e imperadores que comandavam tropas montados a cavalo. 

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Caso se dedique à tarefa eminentemente política, o militar comprometerá suas habilidades no manuseio de armas e no preparo dos combatentes, tal como o neurocirurgião que, ocupado em planejar política de saúde pública, perderá seu desempenho em mesa de cirurgia. Exceções confirmam a regra.

Comandantes militares brasileiros devem observar as lições da história: as corporações pontificaram desde sempre na Defesa e fracassaram. Não construíram aparato autônomo, mas um sistema subalterno à potência estrangeira hegemônica. Deixaram a sociedade alheia aos assuntos de Defesa. Em que pese o grande volume de recursos públicos empregados em mais de um século, o Estado brasileiro continua incapaz de negar seu espaço territorial, marítimo, aéreo e cibernético ao desafiante preparado. 

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O estabelecimento de uma política pública pressupõe confronto de proposições. Em mãos castrenses, as escolhas seriam limitadas pela unidade política e ideológica dos integrantes da hierarquia. Todos passaram pelos mesmos crivos para ascender na carreira e, uns mais, outros menos, foram contaminados pelo pensamento único empobrecedor. Todos assimilaram a história sob o prisma do quartel e repelem mudanças sociais que afetem estruturas orgânicas e funcionais de suas corporações.

Corporações vivem de rivalidades. Alimentam velhas rusgas e disputam polegadas de poder no aparelho de Estado. No caso brasileiro, por exemplo, postergam o inevitável: o reconhecimento do chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas como autoridade militar maior. Desde a Revolta da Armada, no início do regime republicano, a voz mais forte é a do comandante do Exército, não pelo fato de sua corporação ser mais capaz de reagir ao agressor estrangeiro, mas por ser mais capaz de se impor internamente. 

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Comandantes disputam permanentemente recursos orçamentários e posições no sistema de Defesa. Assim, comprometem decisões necessárias à eficácia do sistema. A falta de entrosamento acarreta custos devido à sobreposição de estruturas, em particular nos âmbitos do ensino, assistência médica e produção de armas e equipamentos. 

A fidelidade principal do militar é com sua corporação. Laços de camaradagem são cultivados desde o início da carreira e escoram a ascensão hierárquica. Neste sentido, nenhuma outra cultura corporativa se iguala à militar, que defende suas instituições com unhas e dentes, assim como valoriza sua especialidade. 

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O militar é um ególatra de berço. O infante diz que a infantaria é eterna majestade das linhas combatentes. O artilheiro acha que o mais alto valor de uma nação ruge n´alma do canhão. O engenheiro quer a Engenharia fulgurando sobranceira na paz ou na guerra. O cavaleiro diz ser a estrela guia em negros horizontes. O aviador se reclama bandeirante audaz, cavaleiro do século do aço. O marinheiro acha que sua linda galera protege os verdes mares da pátria em que tanto pensa. O militar não é o mais indicado tomar decisões que afetem diretamente suas corporações e especialidades. 

A egolatria castrense encafifa o civil, mas é compreensível e indispensável: o espírito de corpo é imperativo para candidatos ao gesto supremo de abater o semelhante ou morrer. Disso decorre o estímulo permanente à competição no seio das fileiras, onde cada um busca superar-se e ser o melhor. 

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A egolatria é compreensível, mas, na concepção de Defesa, precisa ser contida pelo representante da soberania popular, que deve saber ouvir e construir arranjos corporativos mirando o entrosamento e a eficácia do conjunto. 

O militar é sacrificado com a guerra, mas é também beneficiado: mostrando serviço, ganha promoção hierárquica e glória. A necessidade de reconhecimento do militar é exibida no peito enfeitado por insígnias, explorado por cartunistas. Sendo beneficiário da ação guerreira, o militar não é o servidor público indicado para decidir sobre o emprego da força. O militar deve ser ouvido na formulação da política de Defesa, assim como os policiais no estabelecimento da Segurança Pública e os profissionais da saúde na política de saúde. 

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 A lembrança dos que custeiam as fileiras não faz parte da cultura corporativa, seja civil ou militar. O servidor público que lembra quem o sustenta, ou seja, a sociedade, é um exótico. O militar não agradece ao povo seus proventos. “Devo o que sou ao Exército”, “devo o que sou à FAB”, “devo o que sou à Marinha”, são frases comezinhas no ambiente militar.

Cumpre ao poder político deliberar, sem pressão castrense, sobre gastos militares. A relação entre o militar e o parlamentar que decide sobre orçamentos deve ser rigorosamente eliminada. A Defesa não pode ser refém do desempenho de assessores militares junto ao Parlamento e ao aparelho de Estado. Essa tarefa deve ser entregue ao corpo civil do Ministério da Defesa.  

A Defesa requer a participação decisiva da sociedade. Quem se prepara para conduzir tropas não é o mais capaz para captar o jogo de interesses que leva ao derramamento de sangue. A mobilização da sociedade para a Defesa é tarefa do político, não do militar. 

A veiculação de propaganda corporativa nos veículos de comunicação precisa acabar. Este tipo de publicidade faz com que as corporações se confundam com partidos políticos. Em nada beneficia a Defesa. Quando o militar se dirige diretamente à sociedade, dispensa o político e o aparelho burocrático especializado. 

Apenas a chefia do Estado tem condições de conduzir a Defesa. Caso se abstenha, o militar toma conta do Estado e a sociedade ficará sujeita ao desígnio corporativo.

Se a Defesa brasileira persistir ditada por comandantes, como sempre ocorreu, será perdulária, tacanha e vexatória. A democracia ficará sob risco permanente e a soberania persistirá uma quimera. 

 (Trecho de um livro que estou finalizando, no qual alinho apontamentos para uma reforma militar)

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