O Demônio Monetário visita Jerome Powell

Algo mais poderoso do que a fé nos modelos econômicos são os ardis emprenhados na razão humana por obra do demônio monetário

Sede do Federal Reserve, em Washington
Sede do Federal Reserve, em Washington (Foto: REUTERS/Joshua Roberts)


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Inicio este texto navegando pelo pântano das previsões dos agentes financeiros sobre a economia global. A discussão proposta é uma síntese das motivações que levaram ao sinal de alerta dos mercados financeiros a respeito das recessões que se avizinham em contraste à postura do Federal Reserve em suas recentes elevações da taxa de juros.

Para começar, nada é mais revelador do que o discurso de Jerome Powell, presidente do FED (Banco Central dos EUA), ao Senado, após a última elevação da taxa de juros norte-americana (ocorrida em 15 de junho de 2022):

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“O FED está fortemente comprometido em combater a inflação... [que], obviamente surpreendeu para cima ao longo do último ano, e mais surpresas podem ocorrer. [Os EUA] deve continuar a tirar fôlego do crescimento e ajudar a melhor equilibrar a demanda e a oferta, pois a Economia está muito forte e bem posicionada para lidar com a política monetária mais apertada” – leia-se “juros mais altos”.

Nas entrelinhas, o Chairman do FED está sinalizando, na contramão das expectativas dos mercados financeiros, que as elevações consecutivas da taxa básica de juros – de 0,5% em maio e 0,75% em junho - não afetarão o crescimento econômico no segundo semestre. Curiosamente, Powell atribui a maior escalada inflacionária dos últimos 40 anos nos EUA mais aos efeitos prolongados do “lado da oferta” do que pressões vindas do “lado da demanda”. No entanto, por que Powell acredita que as elevações dos juros, as quais admite que podem não parar por aí, podem reconduzir a Economia norte-americana ao equilíbrio entre oferta e demanda, fazendo a inflação ceder, no longo prazo, à estabilidade dos 2% ao ano?

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Peço licença para a utilização de letras garrafais: PORQUE OS MODELOS ASSIM DETERMINAM! Os modelos utilizados pelos Bancos Centrais para orientar a tomada de decisão sobre a política monetária reproduzem a seguinte lógica: Diante da existência do hiato de produto - a diferença entre a atividade econômica observada e sua potencialidade em pleno emprego sem pressões inflacionárias – o FED pode alavancar o patamar da taxa de juros, sem prejuízo à atividade econômica. 

Trocando em miúdos: havendo espaço para a economia crescer, elevar as taxas de juros para combater a inflação, apenas afeta os preços, sem frear o crescimento desejado. O Crescimento da economia, impulsionado pela demanda, “puxa” o recondicionamento das condições de oferta, eliminando progressivamente o hiato de produto e reduzindo a inflação. Resultado: a economia norte-americana retorna ao equilíbrio em pleno emprego, domando a inflação. 

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Curiosamente, os mesmos modelos que afiançam as esperanças de Powell, fomentam as perturbações dos agentes financeiros. Esse descompasso interpretativo não incorre em contradição, mas expressa quais cartas estão sobre a mesa na disputa pela determinação da taxa de juros, o piso de remuneração do sistema financeiro.

O último relatório do Bank of America (BofA) projeta 40% de risco de recessão nos EUA em 2023, alegando a demora do FED em enfrentar a inflação e anunciando o inescapável patamar para as taxas de juros acima dos 4% (quase que triplicando o patamar atual de 1,75%). Em tom semelhante, o Goldman Sachs revisou as projeções de risco de recessão para 48%. O ex-diretor do FED, Vicent Reinhart foi ainda mais incisivo ao declarar que a subida de juros de 0,75% “provavelmente foi um erro do comitê do Federal Reserve...deveria ter sido mais agressivo”, e completa o atual economista-chefe do fundo de investimentos Dreyfus and Mellon ao ser perguntado sobre as expectativas de recessão nos EUA, ainda em 2022: “A recessão vai ocorrer porque a inflação é um grande problema que torna extremamente complexo o trabalho da política monetária”.

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Se a divergência de opiniões entre o presidente do FED e o mercado financeiro não vem da diferença de modelos, já que ambos palmilham pelo mesmo caminho na formação de suas expectativas sobre a taxa de juros, é necessário verificar quais cartas estão sobre a mesa.

Jerome Powell defende a solidez da atuação do Federal Reserve contra a inflação, pois está olhando também para o crescimento econômico e dificilmente iria neste momento, abdicar do crescimento e gerar desemprego para conter a inflação. Diante desse cenário, Powell, chamado para dançar o jazz monetário, tenta conduzir as expectativas de inflação que balançam em ritmo de rock n’ roll. Na outra ponta, os agentes financeiros apostam contra o FED, atirando a curva longa de juros para o penhasco nos mercados futuros, isto é, apostando na subida da taxa de juros acima das sinalizações do Federal Reserve.Jeremy Rudd, economista do FED, em estudo recente, lança faróis sobre a dinâmica dessa contenda. O Banco Central dá as cartas quando define a taxa de juros, os agentes financeiros quando se veem contentes com as cartas recebidas, apostam tudo e absorvem os títulos públicos estabilizando a curva longa de juros. Ao se verem contrariados pela sorte oferecida pelo croupier central, os agentes financeiros ajeitam os óculos, aproveitando da iluminação do cassino, para blefar: vendendo títulos de longo prazo e inflando o preço dos títulos de curto prazo que apresentam maior liquidez, ou oportunidade de abandonar a mesa.

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No mesmo lance, aumentam as expectativas de inflação, acreditando no encurtamento do hiato de produto devido à uma possibilidade de recessão que não apresenta potencial para repor o equilíbrio entre oferta e demanda. Resultado: A curva de juros se inverte e os títulos de curto prazo (com taxas de juros maiores) passam a valer mais em relação aos de longo prazo (com taxas de juros declinantes), pressionando o Banco Central a acelerar a subida da taxa de juros, comprando títulos de longo prazo e retraindo a oferta de moeda.

Rudd não se utiliza da linguagem ou das alegorias acima, mas chega teoricamente a mesma conclusão: diante da aceleração das expectativas de inflação, acelerar a subida da taxa de juros, sancionando o movimento do mercado, pode gerar maiores expectativas de inflação, ao invés de reduzi-las. O ciclo de apostas, no salão monetário, só se acalma quando a inflação começa a ceder, ainda que às custas do crescimento econômico e do desemprego. Nos modelos de determinação da taxa de juros nunca predominam as esperanças, mas a ilusória vantagem de reduzir as projeções do PIB potencial, ou seja, anunciando riscos de recessão cada vez maiores.

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O que é comum na interpretação do FED e dos agentes do mercado financeiro é a crença na taxa de juros como combatente solitária da inflação. Daí vamos aquilo que está escondido nos modelos utilizados para prever o comportamento da inflação e determinar a taxa de juros.

Mesmo admitindo que as pressões inflacionárias vêm da oferta, Powell acredita que tais pressões vão ceder à medida que tais condições de oferta naturalmente retornem à expansão prevista no longo prazo, isto é, ao patamar que a equilibre com a demanda, conduzindo a inflação à meta de 2% ao ano. Por seu turno, o mercado deseja um aperto monetário maior – subida agressiva da taxa de juros – que justifique a recessão e o desemprego gerados para acabar com a inflação, igualmente equilibrando oferta e demanda num patamar mais baixo do que o atual.

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Notemos que nos dois discursos, o ajuste vem pela demanda. O desejado pelo FED é gradual, enquanto o praticado pelas projeções dos mercados financeiros deveria ocorrer “num só golpe”. Em nenhum dos casos se admite atuar pelo lado da oferta, senão pelo efeito da recessão sobre a oferta de empregos, isto é, a geração de desemprego. 

Isso acontece porque no modelo de previsão da inflação, a oferta é fruto da otimização das decisões empresariais sobre os recursos produtivos. Algo otimizado, significa, utilizado com máxima eficiência. Logo, os adeptos desses modelos pregam o mantra: “não mexam na oferta, ela já está em equilíbrio”. 

Por outro lado, a demanda é determinada pelo consumo das famílias, os investimentos, os gastos do governo e a diferença entre o que é exportado e o que é importado.

O consumo das famílias é impactado pela distribuição de renda (quem ganha menos consome mais como proporção da renda) e pelo crédito disponível às famílias, o que possibilita adiantar uma renda adicional mediante certa taxa de juros.

Os investimentos das empresas são determinados pela taxa de juros, ou – na tradição dos modelos de equilíbrio - a produtividade do capital, estabelecida pela igualdade entre oferta e demanda por moeda. Qualquer investimento cuja remuneração supere a taxa de juros deve ser realizado, caso contrário, os recursos são aplicados nos mercados financeiros caçando os rendimentos oferecidos pelos títulos públicos.

O governo ao gastar em suas várias áreas de atuação, contribui para a elevação da demanda. Ao gastar mais do que arrecada, o governo aumenta a dívida pública, o que pressiona seu refinanciamento no futuro, pois o mercado exigirá maiores taxas de juros para financiar as novas dívidas, ou o governo terá que aumentar os impostos (elevando os custos das empresas, isto é, mexendo no lado da oferta). Logo, os sábios que confiam nos modelos de previsão da inflação, supõem esforços governamentais para que o orçamento se mantenha equilibrado, quando não exigem superávits para reduzir a dívida pública, buscando redução de impostos (o que gera eficiências no lado da oferta).

O resultado externo, isto é, a diferença entre exportações e importações, depende da taxa de câmbio (no caso dos EUA essa variável torna-se sem efeito), do crescimento da economia mundial (demanda pelas exportações) e do nível da propensão a consumir produtos do exterior (demanda por importações). Nos modelos de inflação, na ausência de perturbações do câmbio, as exportações compensam o volume de importações, zerando o saldo externo.

Pois bem, na presença de equilíbrio nas contas do governo e nas transações com o resto do mundo, restam duas variáveis, consumo e investimento. A distribuição de renda que impacta o consumo se altera muito lentamente, podendo ser desconsiderada nos modelos de inflação. Logo, tanto para o consumo, quanto para os investimentos, a taxa de juros se apresenta como a única ferramenta de ajuste da demanda, pois quando apresenta ascendência reduz a oferta de crédito para o consumo e desestimula os investimentos.

Nesse caso, o que causa inflação nos modelos reinantes nas previsões do FED e dos agentes financeiros? O inglório exercício de expansão da oferta de moeda, isto é, a aquisição dos títulos de curto prazo pelos Bancos Centrais (injetando dinheiro na Economia), e a venda subsequente de títulos de longo prazo com taxas de juros menores, inflando imediatamente os ativos dos bancos – que venderam títulos mais baratos recebendo títulos mais caros em troca. Ao reduzir as taxas de juros, expandindo a oferta de moeda, os Bancos Centrais aquecem os vapores do consumo e dos investimentos, elevando a demanda. Quando essa elevação excede a quantidade “ótima” de bens ofertados, a inflação acelera.

Logo, o comportamento da taxa de juros deve buscar algum patamar “neutro” que não perturbe, pelo lado da demanda, o equilíbrio no sistema de preços. Esse patamar não apenas é neutro em relação à inflação, como revela a naturalidade com que a demanda e a oferta por moeda convergem ao equilíbrio.

Nesse esquema analítico, por que, na opinião dos mercados financeiros e banqueiros centrais, a elevação das taxas de juros se faz necessária, com maior ou menor intensidade? Porque durante a pandemia, na tentativa de manter o nível de renda da população desempregada, reforçar os sistemas de saúde e colocar em curso o programa de vacinação contra a COVID-19, os governos “gastaram demais” e os bancos centrais absorveram a elevação da dívida pública, reduzindo as taxas de juros. Um pecado sem remissão, diria qualquer financista.

Enquanto salvavam a demanda, os governos emplacaram medidas de isolamento social e lockdown, o que paralisou parte da produção, reduzindo o patamar de oferta. O “Pós-Pandemia”, para os Tesouros Nacionais e Bancos Centrais, não poderia ser outro, diria outro financista: expansão da demanda contra uma oferta retraída. Bazinga! Inflação!

Essa é, basicamente, a narrativa que governa os salões de encontro dos financistas. De lá, saem as estratégias de operação na dança monetária com os Bancos Centrais, no caso dos EUA, o FED. Em meio a pandemia, quando os balanços dos Bancos Centrais e Tesouros Nacionais jorravam quantidades nunca antes vistas de dinheiro na Economia, os financistas escondiam as cartas embaixo do paletó, pois ao absorverem os títulos vendidos “mais barato” pelos Bancos Centrais, alavancavam suas posições de risco nas aplicações financeiras em mercados futuros, ou à vista, em Wall Street, Xangai, ou na Faria Lima. Não por acaso, as bolsas de valores registraram recordes de crescimento e emplacaram quebras de patamar sucessivas. A turma que hoje pede por mais agressividade na operação da política monetária ganhou muito dinheiro, enquanto vidas eram perdidas e a fome se alastrava no mundo durante a pandemia.

Por que, então, hoje os agentes financeiros pedem a subida mais agressiva dos juros, sabendo que o efeito sobre as bolsas de valores será de queda? Freud explica, diria Zé Ramalho: o amor pelo dinheiro, ou para os dispostos a sujar o batom com cigarro, pela liquidez. 

Algo mais poderoso do que a fé nos modelos econômicos são os ardis emprenhados na razão humana por obra do demônio monetário. Como lembrou o mestre Luiz Gonzaga Belluzzo, as diabruras da moeda não imperam sobre as crenças, mas sobre os crédulos. O fato dos modelos de previsão da inflação e determinação da taxa de juros tratarem de uma “Economia monetária sem moeda”, isto é, uma Economia para qual a moeda é neutra e sem movimento, não impede que os fiéis a esses modelos sejam perturbados pelo dinheiro, pulando da santificação especulativa do risco para o mundo do pecado, onde jaz a maligna dívida pública. 

Muito pelo contrário, a alma dos financistas é impregnada pelo fruto do conhecimento passado, consumido até as raízes, para a elaboração dos modelos de previsão. É o futuro que preocupa, mas para ele, os modelos sucumbem à admissão da neutralidade, da naturalidade, do equilíbrio, do longo prazo... 

Assoberbados pelo movimento das curvas de juros, os financistas e banqueiros centrais, sapecam seus modelos para se protegerem das perturbações do dinheiro ao comprarem à descoberto (ao inverso) a aposta de Pascal: “na dúvida, prefiro crer que não existe” esse tal demônio monetário. Isso porque, caso a moeda não seja neutra e essa neutralidade não seja consequência natural do equilíbrio no longo prazo entre sua oferta e demanda, há que se admitir que a incerteza sobre o futuro é incapaz de ser absorvida pelo aprendizado dos agentes em relação ao comportamento dos mercados, ou pela perfeição de informações sobre os fatores que influenciam esse comportamento. Há que se admitir que, mais que volátil e instável, perfeitos ou sujeitos a falhas, os mercados seguem a dança do poder inconsciente do dinheiro sobre a mente dos homens.

O poder do dinheiro que separa a potência do ato de gastá-lo ou conservá-lo, empurra os homens ao desejo de acumular, pois o dinheiro empresta sua potência ao homem, para se efetivar no ato da acumulação de riqueza.

Ao exigirem maior energia do FED na condução das taxas de juros, os financistas, encapados pela camada de suas fortunas, satisfazem à sedução do dinheiro, operando contra a política monetária, pois a cada rodada, o Croupier se vê pressionado a aumentar as apostas contra a inflação. A astúcia do demônio monetário se demonstra: subir as taxas de juros, levando a economia à recessão para combater a inflação é o que diz a letra da lei. Conhecendo a fé dos crédulos na lei, o demônio monetário os seduz à tentação: combater a inflação de preços, gerando deflação de ativos. Bazinga! (digo), Crise Financeira!

O diabo então revela sua face, levando a alma dos crédulos, deixando intacta a lei. Os mercados entram em depressão, os empregos desaparecem e a renda social míngua. O capital? Esse continua a crescer nos rastros da destruição, pois os mesmos Bancos Centrais que rompem a valorização de ativos acarretando em seu derretimento, voltam a compra-los para impedir maiores estragos. O dinheiro que antes recebia o adorno dos ativos privados, volta à sua origem criadora como dívida pública. As formas concretas do capital, sua feição fictícia, reluzem novamente nos balanços dos Bancos Centrais e Tesouros Nacionais. O demônio monetário volta para a casca, o capitalismo tal como ele é.

Resta saber se quando Mr. Powell admite firmeza na redução dos passivos do FED, ele está preparado para a visita do demônio monetário.

Referências

Belluzzo, Luiz Gonzaga; Galípolo, Gabriel. A Escassez na Abundância Capitalista, Contracorrente, 2019.

Belluzzo, Luiz Gonzaga. Schumpeter, o Dinheiro e a Moeda. Valor, 4 de fevereiro de 2020.

Belluzzo, Luiz Gonzaga; Galípolo, Gabriel. Dinheiro: O Poder da Abstração Real, Contracorrente, 2021.

Rudd, Jeremy B. Why Do We Think That Inflation Expectations Matter for Inflation, Financial and Economics Discussion Series. FED, setembro de 2021.

Escrito para coluna no Brasil Debate

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