O CP-Cu do marreco
De acordo com o CP-Cu, é absolutamente normal que o juiz estabeleça contato com um procurador por meio de um aplicativo de rede social e, pedindo sigilo, passe-lhe orientações sobre como uma de suas colegas devesse se comportar em audiência
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(Esta crônica foi publicada originariamente na página "Crônicas & Agudas", que o autor mantém no Facebook, na ocasião em que Sérgio Moro deixou a magistratura para assumir o prêmio de ministro da justiça e, como tal, esforçou-se para emplacar as "dez medidas")
Doutor Frank me pediu que fosse ao gabinete do doutor Helene buscar o CPP, por empréstimo. Era o início dos anos 80 e não havia computadores, tablets, celulares. A fonte do Direito vinha mesmo em volumes pesados de papel e capa dura que reuniam leis, comentários, jurisprudência. Lá fui eu à sala do juiz da segunda vara criminal de Piracicaba buscar a fonte do direito processual penal para o outro magistrado, da primeira, de quem eu era escrevente de audiências.
Doutor Helene, hoje desembargador (imagino que aposentado), tinha fama de ser rude com os serventuários, o que me deixou com maus pressentimentos. Adentrei à sala, estavam apenas ele e Rosângela, a escrevente. Ele ditava qualquer coisa à minha colega e eu aguardei em pé, à porta. Quando terminou, ele, com ar grave adequado à fama, atirou em minha direção seus tremebundos olhões enormes, sob os quais cultivava fartos fios de bigode, tudo adornado por uma vasta cabeleira e vistosas correntes e pulseiras. Anunciei, com voz claudicante: “vim buscar o CPP, a pedido do doutor Frank”. Ele então esticou-se todo na cadeira, bufou, cerrou o cenho e me perguntou: “o que é CPP?”
Partindo tal pergunta de um juiz, eu só poderia concluir que ele estava brincando comigo. “Código de Processo Penal”, respondi candidamente, mas com uma nesga de preocupação. E ele: “quanta intimidade o senhor tem com o código, hein! CPP é para os íntimos!” O juiz malvado, no fundo, era mesmo um brincalhão. Ri, agradeci e saí.
As leis no Brasil, especialmente os códigos, são conhecidas assim, por apelidos. CF é a Constituição Federal; CLT é a Consolidação das Leis do Trabalho; ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. A antiga LICC – lei de introdução ao Código Civil – agora é LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – à qual chamo, na intimidade, de “Lindbergh”. De fato, as siglas proporcionam uma certa aproximação íntima com o objeto.
As leis federais, sabemos, têm valor nacional, ou seja, valem por todo o território brasileiro, podendo alcançar até mesmo, conforme o caso e a pessoa, espaços no estrangeiro, como navios e aeronaves. Mas há uma gleba no Brasil em que as leis federais e a própria Constituição parecem não valer. Refiro-me a Curitiba.
Ali desenvolveu-se um ramo próprio do Direito, em que é normal um juiz conversar com procuradores da República para traçar estratégias de atuação dos acusadores contra determinado réu. Não vou mencionar o nome de um réu em especial, para não passar a impressão de que o direito curitibano tenha por destinatário uma única pessoa, nem insinuar que naquela próspera comuna paranaense não se respeite o princípio da impessoalidade.
Lá na zona franca de Curitiba a lei permite, por exemplo, condução coercitiva ainda que o conduzido sequer tenha sido previamente intimado a depor. Lá é possível que um juiz intercepte (ops!) uma ligação telefônica entre uma presidenta da República e seu colega ex-presidente. Lá é normal que o mesmo juiz encaminhe a conversa não ao Supremo Tribunal Federal – que, ao que parece, abriu mão de sua jurisdição sobre as plagas curitibanas –, mas à Rede Globo de Televisão.
Estou me referindo ao Código Penal de Curitiba, que, para não confundir com o nosso bom e rejuvenescido Código de Processo Civil (CPC), resolvi apelidar de CPCu. Na intimidade, por óbvias razões abjetas, eu pronuncio CePeCu.
De acordo com o CP-Cu, é absolutamente normal que o juiz estabeleça contato com um procurador por meio de um aplicativo de rede social e, pedindo sigilo, passe-lhe orientações sobre como uma de suas colegas devesse se comportar em audiência. Aliás, até mesmo que esse procurador recomende ao chefe do bando – ops! –, digo, da força-tarefa, que a moça não estivesse presente quando o réu, aquele determinado a quem não me referi, fosse ouvido em depoimento.
Como escrevente do saudoso doutor Frank, falecido no cargo de desembargador, muitas vezes presenciei seus diálogos com promotores e advogados. Nunca o vi sugerir a uns ou outros como devessem agir em determinados casos. Quando alguém se metia a pedir isto ou aquilo em relação a um processo, o juiz nascido em Itapetininga, onde houvera exercido dois mandatos de vereador antes de ingressar na magistratura, dizia-lhes simplesmente: “peticione, que eu respondo nos autos”.
Já o jurista natural de Maringá, cujo notório saber figadal concebeu o CP-Cu, abandonou a magistratura, assumiu seu lado político e hoje responde pelo Ministério da Justiça do Brasil. Chegou a tentar emplacar parte de sua genuína obra em todo o país, por meio das tais “dez medidas”, formalmente propostas por seus dallagnoizinhos a quem servia de “coach”, mas hoje parece renegá-la em parte. Cito como exemplo aquela parte em que a “orcrim” (adoro siglas) dos malandros federais tentava tornar normal em todo o Brasil, como já era prática corrente na capital paranaense, a utilização de prova obtida por meio ilícito – se bem que, por aquelas bandas, por vezes ocorre de prova alguma ser necessária.
O marreco autor do CP-Cu agora deu de grasnar que os diálogos por ele travados na escuridão das redes sociais com os procuradores, trazidos à luz pelo site The Intercept Brasil, foram obtidos por meios ilícitos e que, por isso, esse tipo de expediente não tem valor legal. Ou seja, ele acabou de reformular seu CP-Cu, de modo que sensacionalismo e vazamento já não são mais normais.
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