O coração mumificado de D. Pedro I: um culto mórbido a Olavo de Carvalho, à escravidão e à monarquia católica
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É óbvio que estamos em tempos de vertigem fascista, em que aqueles que hoje temporariamente se sentam inebriados na cadeira do poder já visualizam o fim muito próximo de suas eras meteóricas, e a extinção do “hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão”, como canta Chico em “Apesar de você”. Com isso, alguns atos poderiam parecer mais um mero devaneio, um “delírio fascista”, quase citando a celebridade da Globo que disse haver um “delírio comunista” no ar...
Algumas iniciativas têm raízes no desespero mesmo, podendo de fato ser consideradas medidas delirantes. O que chama a atenção é que, apesar disso, não são surtos psicóticos, mas há por baixo delas, ainda que sabidamente delirantes, um conjunto de simbolismos que tentam, como no último suspiro de um moribundo em seu leito de morte, reavivar a claque e o rebanho já desfalecidos e mortiços do bolsolavismo, em buscas cada vez mais exaustas por alguma “causa” para chamarem de sua. O armamentismo continua sendo uma de suas “causas” principais. É um afago à nação-ídolo Estados Unidos. Esse afago aconteceu por exemplo quando tivemos uma das cenas mais patéticas da história das nações, em que o presidente do Brasil, quase num ato-falho que se esquece da construção de macho-alfa que ele tenta lapidar sem sucesso para si mesmo, diz “I love you” para um presidente estadunidense. (A charge para essa frase seria impublicável... Tchutchuca seria um eufemismo...)
O armamentismo, então, venerando os EEUU, e ao mesmo tempo acariciando o símbolo fálico das armas que o bolsolavismo recalca, é “causa” pétrea do bolsolavismo, revelando um Id ou Es ou Isso freudiano em que todo macho e toda forma de masculinidade (de preferência tóxica, é claro) são venerados. O que é preciso esconder com tamanha veneração ao poder em seu símbolo fálico?... O que está por trás desse culto à virilidade, por exemplo, das forças armadas e das motos com motores que vibram e aquecem? Por que tigrões têm tanto medo das tchutchucas, fantasiados naquilo que o medo mais consegue expressar, que é o ódio?...
À parte a análise do armamentismo e do comportamento recalcador e “viril” que em parte o incentiva no bolsolavismo, também é importante saber que, voltando aos EEUU, a segunda emenda da constituição estadunidense (que consagra o direito à arma para qualquer pessoa) nasceu no século XVIII, num contexto em que as colônias dos Estados Unidos lutavam contra o imperialismo da Grã-Bretanha e da Espanha. Essa é a razão por que era preciso armar a população, na barbárie daqueles tempos, para causar as guerras civis e as guerrilhas que de fato se deflagraram.
Além disso, já nas décadas recentes da história estadunidense, a escalada de violência exatamente POR CAUSA da segunda emenda constitucional são fatos inquestionáveis no solo da pátria do Mickey Mouse “bom-vizinho”. O derramamento de sangue dentro e fora dos EEUU, patrocinadores de guerras internas e externas, está levando toda a comunidade imaginada (como diria Benedict Anderson) estadunidense à ruína e à bancarrota ética e moral diante do mundo.
Todos os atentados e surtos cometidos com armas em solo yankee ou em solo que eles tentam colonizar demonstram isso. Posso citar o caso do massacre em Columbine, e tantos outros casos frequentíssimos, higienicamente escondidos pela grande mídia, que evidenciam a decadência civilizatória e pró-barbárie que o armamentismo, nos dias atuais, ocasiona. Posso citar o patrocínio estatal de guerras sem fim mundo afora. Aliás, se há algo de que o “Estado” estadunidense não abre mão é de patrocinador estatal das guerras, ainda que não se preocupe em absoluto em ser um Estado de bem-estar social e patrocinar, no nível estatal, as mínimas condições, por exemplo, de saúde a seu próprio povo.
Mais uma vez, fatores que fazem os EEUU naufragarem a olhos vistos diante de qualquer pessoa do mundo de hoje. Um “Estado” que patrocina em nível estatal as guerras do Vietnã, do Iraque, da Palestina, da OTAN... O Brasil quer copiar o que, em outro local, já se revela há muito como um complexo de problemas severos a serem enfrentados, totalmente em discordância e discrepância com um tipo de mundo em que é a natureza, o meio ambiente e a inclusão civilizatória, inclusive de renda, que regem os reais problemas da humanidade. Como diria Machado de Assis: “Coisas da mão direita...”
Trato de todas essas questões em minha pesquisa de pós-doutorado em cultura brasileira na Universidade de Copenhague, Dinamarca, que se transformou em tese e em livro que publicarei em breve. Este livro se chama “Platão e Aristóteles na terra do sol: as vertigens de um conservador reacionário brasileiro”. Nesta minha obra, a principal (mas não única) motivação partiu de um diálogo com meu supervisor em Copenhague, Georg Wink, sobre as obras de Olavo de Carvalho, sobretudo aquela em que ele tenta, sem qualquer êxito, domesticar Aristóteles para tentar transformá-lo em um gatinho manhoso, ou em uma tchutchuca de Platão e Sócrates... coisa que Aristóteles não era...
Enfim, é preciso que se busquem símbolos para justificarem “causas” que o bolsolavismo precisa, cada vez de forma mais insana, agasalhar.
O coração de Dom Pedro I, neste momento exato da história do Brasil, é um desses símbolos. Com a morte do guru Olavo de Carvalho, o bolsolavismo tomou provavelmente seu pior baque mortal, superior até mesmo à anterior não reeleição de Trump e às investidas recentes do FBI na casa do “45º. Presidente dos EUA”, como o fascista cor de abóbora agarrado a seu extinto poder se referiu à empreitada policial estadunidense que o alvejou como um mero cidadão comum, que ele é. No desespero de quem vê muito próximo o fim de seus dias de glória e fúria, calcados na destruição e na necropolítica, agora o bolsolavismo começa a ter atos simbólicos na tentativa de resgatar os “valores” e as “filosofias” que o levaram do banco do baixíssimo clero político brasileiro para uma aventura desditosa na cadeira da presidência da república com todas as ramificações que esse posto permite. Não é à toa que a atual (e já quase ex) primeira-dama começa, pela primeira vez, a vir a público para protagonizar o fanatismo religioso pseudocristão sem pudor nem mesmo de, muito explicitamente, sem meias palavras, xingar e ofender como alguém que já “vendeu a alma ao demônio” uma pessoa qualquer do povo que seja de uma religião afro-brasileira. Vejam, ela ofende a qualquer um de nós – não só um candidato à presidência –, que pertença a um culto religioso de matriz africana. A ofensa explícita, como sabemos, é uma das táticas mais comuns do bolsolavismo. A falácia ad hominem é sua arma tão potente quanto as metralhadoras com que Olavo de Carvalho se divertia para caçar nos bosques da Virginia, nos Estados Unidos, como ostenta soberbamente, e a cujo manejo ele tanto incentivou os brasileiros e brasileiras.Além disso, a primeira-dama, como mulher, vem reforçar a ideia do novo rosto e molde de preconceito que ascendeu com o bolsolavismo. Trata-se do preconceito que diz o que é “um cidadão de bem”, valendo-se de uma falaciosa posição de “lugar de fala” que permitiria, supostamente, um verdadeiro salvo-conduto para se ser preconceituoso. Eu chamo a isso de lugar de falácia. Ou seja, temos, ao lado do concreto lugar de fala, que legitima uma pessoa a falar em nome de sua classe, os lugares de falácia, que são ostentados ruidosamente por essa caricatura chamada de “cidadão de bem”. Basicamente, um “cidadão de bem”, assim, é alguém que encarna em si mesmo qualquer um dos MUITOS ódios bolsolavistas à diferença, mas que, sendo membro da classe odiada, odeia, ele(a) próprio(a), a sua própria classe, e ganha uma pseudolegitimidade para falar o que quiser dela, já que, em tese, lhe pertence. É assim que o lugar de fala se transforma em lugar de falácia.É bem o que Paulo Freire nos ensina ao mostrar que, sem uma educação libertadora (e antifascista, eu acrescentaria), o sonho do oprimido acabará sendo tornar-se um opressor. Nesse sentido, por exemplo, uma mulher (se se valer do lugar de falácia de ser mulher, e não do seu lugar de fala) só será um “cidadão de bem” bolsolavista se for misógina, que odeie as mulheres e qualquer assunto que sublinhe suas conquistas sobre seu próprio corpo, liberdade e protagonismo. Também será um “cidadão de bem”, no bolsolavismo, um negro que odeie qualquer menção ao racismo; um homossexual que odeie qualquer menção à homofobia; um pobre que odeie qualquer menção à pobreza e à distribuição de renda; um indígena que odeie qualquer alusão ao ambientalismo; uma pessoa que vive na democracia mas que odeie qualquer prática democrática, que implica necessariamente a inclusividade das minorias e dos grupos historicamente alvejados pelo poder hegemônico. Em resumo: qualquer oprimido que, em seu lugar de falácia, cheio de falsa legitimidade, odeie sua classe oprimida e deseje tornar-se opressor. Afinal, ficar do lado do poder, como os bandeirantes tão bem exemplificam na história brasileira, sempre foi tentador e mefistofélico... Mesmo que o poder seja muito, muito breve.
Veio à luz uma nova subclasse brasileira, fruto das práticas fascistas que causam anestesia e insensibilidade absolutas em relação à consciência de classe. Fruto do vácuo deixado por uma falsa educação, que não foi libertadora e antiopressora, como aquela que Paulo Freire sublinha e que permanece latente no âmago do desejo coletivo brasileiro, apesar de tudo. Trata-se da subclasse que o mesmo Paulo Freire já alertava poder emergir: a subclasse dos oprimidos cujo único anseio é se tornarem opressores, não só de suas próprias classes, como da sociedade em geral. Eis o “cidadão de bem” do bolsolavismo.
Quando estou sublinhando o bolsolavismo, e não a sua metonímia-fantoche, o Bolsonaro e seu clã, estou fazendo isso porque, evidentemente, sabemos que o Bolsonaro e seu clã sairão de cena, serão levados pela história para um escaninho dos mais assustadores e tão macabros quanto o coração de um defunto imperador (ou seria o de um imperador defunto? Ó Machado de Assis, socorrei-me!).
No entanto, passada para o passado a família-metonímia dessa subclasse brasileira, é contra esse “pensamento” brasileiro de nova direita, ou da ultradireita, ou do fascismo mesmo, trazido com a ascensão do bolsolavismo, que teremos de lutar doravante como elemento que mostrou desavergonhadamente a própria cara na cultura brasileira. Como disse um personagem da série estadunidense “American horror story”, na temporada “Culto ao medo”, sobre Trump: “Ele [Trump] não é o lixo. Ele é a mosca que o lixo atraiu”. O “lixo”, no Brasil, é o bolsolavismo, e as moscas que o lixo atraiu nós sabemos perfeitamente quem são...
Então, é preciso, neste momento de desespero bolsolavista, que esses mesmos bolsolavistas recorram a Olavo de Carvalho em pessoa para que suas estratégias voltem a ser praticadas. O coração físico de Dom Pedro I, um cadáver, traduz em muito essa veneração fetichista ao corpo físico de alguém que representa, na cabeça dos bolsolavistas, os mais completos “ideais” do bolsolavismo.
Algo surge no horizonte, digamos, teológico. Sobre o coração de Dom Pedro I, um órgão mumificado de um imperador defunto (ou de um defunto imperador). Se fôssemos comparar lado a lado os “cristianismos”, que por exemplo foram usados como pretexto para deslegitimar as religiões de matriz africana (o que foi feito pela primeira-dama, mulher, MAS “cidadã de bem”...), veríamos que os católicos não têm nenhum problema em venerar o que eles chamam de “relíquias” de “santos” e “santas”. Desde a Idade Média, veneram-se pedaços de corpos de cadáveres que se imputam como “santos”. O coração de um cadáver, um defunto, mesmo que seja de um imperador defunto (ou defunto imperador), não navega contra os dogmas. Pelo contrário: navega a favor.
Porém, o protestantismo, de que o movimento neopentecostal se diz fruto, traz em seu âmago verdadeira ojeriza a essa prática. Segundo eles, ela está até descrita na bíblia, com um báculo, como “idolatria”, “adoração a outros deuses”, “necromancia” etc. É prática que, em tese, é “abominável” ao próprio Deus...
O que se deflagra com isso? Mais uma vez, como tem acontecido de um tempo para cá, cada atitude de Bolsonaro que afaga uma parte de seu rebanho acaba por ofender outra parte de seu mesmo rebanho. Não há mais nada que Bolsonaro possa fazer que não seja, ao mesmo tempo em que ele acaricia um de seus lados de seguidores, um ato ofensivo ao outro lado de seus seguidores.
Ou seja, por sua política de ódio e de belicosidade, ele veste um santo e despe outro, com e sem trocadilho eclesial... Já não há mais escapatória.
Quando Bolsonaro dá uma falsa e ilusória bolsa-família reeditada como “auxílio-Brasil” aos mais pobres, ofende os empresários e o capital financeiro por uma medida que eles poderiam perfeitamente bem chamar de “comunista”. Quando Bolsonaro afaga os militares, ofende o mais do funcionalismo público, que traz em si até mesmo influências polpudas de poder, como professores universitários, juízes, desembargadores, ministros... Quando Bolsonaro afaga os católicos, ofende os neopentecostais.
Veste um santo e despe o outro... Não há mais o que ele possa fazer.
Ele já não tem saída, porque sua retórica, seguindo os passos prescritos por Olavo de Carvalho, sempre foi o ódio desde o início, amealhando, com isso, amigos-inimigos em todos os flancos por onde volta a transitar. Esses “amigos” o são do poder, não da pessoa, mesmo que haja um culto à personalidade tão macabro que traga da catacumba o coração de um cadáver que representa os “ideais” monarquistas e católicos de um Olavo de Carvalho em pessoa.
Foi simbólico trazer o coração de um imperador brasileiro anterior a Dom Pedro II.
Dom Pedro I, o pai, patriarca, representaria, na estranha vertigem bolsolavista, o oposto de Dom Pedro II, o filho, traidor, cujas ideias, consideradas progressistas para o bolsolavismo, ferem o seu próprio ideal vertiginoso de “deus-pátria-família”. Tanto ferem, segundo eles, que culminaram, pelas mãos de Dom Pedro II, com a entrega sem resistência do Brasil de um imperador católico para as mãos de um povo qualquer, sem nobreza, sem capitanias hereditárias, sem escravizados para chamar de seus, sem tradição e sangue europeus... Que heresia!
Em sua vertigem, como mostrarei adiante, na voz de Georg Wink, os bolsolavistas anseiam por um (pasmem!) DOM PEDRO III... Sim: Dom Pedro TERCEIRO! O integralismo, já degenerado em seu nascedouro, de que o bolsolavismo é fruto ainda mais degenerado, evoca um Dom Pedro III...
O coração de Dom Pedro I vir agora ao campo minado brasileiro é um ato deliberado de desespero, que tem, no entanto, total coerência com os delírios fascistas. O que se deseja com isso é reforçar o bolsolavismo, numa tentativa já nostálgica (e nostalgia é a tônica do bolsolavismo, daí serem conservadores reacionários) de se manter o gostinho desse poder que foi tão efêmero tanto às moscas quanto ao “senhor das moscas”. Volto à questão do “lixo” e as “moscas que o lixo atrai”, aludindo ao “Senhor das moscas”, para remeter agora ao clássico da literatura mundial, o romance de 1954 do prêmio Nobel William Golding, adaptado algumas vezes ao cinema, que enfatiza como a mentalidade bélica pode fazer de singelos meninos inocentes (no caso do romance) verdadeiros carrascos uns dos outros, obcecados pelo poder imediato e pela morte, mesmo em situação em que a sobrevivência de cada um depende muito mais do bem-estar da coletividade do que da eliminação das diferenças. Aliás, corolário básico do processo civilizatório contemporâneo.
Como eu costumo dizer, ao se propagar a “mentalidade” normótica conservadora reacionária de rebanho, o que se consegue é esmagar o discernimento individual. Não tem jeito: quem faz parte de um rebanho acabará se tornando um animal. E, portanto, acabará “pensando” como um animal, caçando como um animal, agindo como um animal. Mesmo que essa atitude seja, no fim das contas, kamikaze, suicida, voltada contra sua própria classe. Distorcendo o lugar de fala para um lugar de falácia, em que o membro do rebanho se sente legítimo para atacar sua própria classe, o bolsolavismo, como tenho mostrado, só poderia incentivar a pulsão de morte (Tânatos) e nunca a pulsão de vida (Eros), para evocar Freud.
O coração de Dom Pedro I traz consigo a nostalgia pela escravidão no Brasil, que até hoje permanece latente naqueles que se consideram filhos da nobreza e das capitanias hereditárias que aqui se proliferaram, servidas pelo “privilégio” do modo de produção escravocrata.
Diferentemente de todas as formas anteriores de práticas de escravização da história (que obviamente eu também considero como práticas de barbárie), o tráfico humano que ocorreu a partir do século XV (sobretudo de negros vindos da África) teve no Brasil um dos palcos mais vastos, longevos e hediondos da história humana. Esse tráfico foi de caráter financeiro, econômico, constituindo parte central do pré-capitalismo e da lógica do mercado que se iniciava, a qual já estava moldando o mundo para o futuro capitalismo neoliberal imperialista pós-revoluções industriais do século XVIII em diante.
A mão de obra escrava, que no Brasil durou quase quatro séculos, deixando marcas óbvias até hoje, gerava lucro financeiro de forma inédita na história humana, como nunca a escravidão o fizera na história dos povos, tanto de forma direta, com o tráfico, altamente lucrativo, como de forma indireta, com o uso dos corpos dos escravizados e a usurpação de suas culturas (como suas próprias religiões, atacadas pela já quase ex-primeira-dama...) para as atividades lucrativas do pacto colonial.
Quando negacionistas bolsolavistas alegam, no alto de suas amazônicas ignorâncias, que a escravidão ocorreu em outros momentos da história (como entre os gregos, chineses, hebreus etc.), e que seria mera “frescura”, “mimimi”, “patrulhamento” dos negros e indígenas brasileiros se “vitimizarem” por terem sido escravos, é esse fator histórico muito básico que lhes falta.
E, chegando de novo ao coração de Dom Pedro I e ao vínculo com a nostalgia pela escravidão brasileira, de tal forma esse tipo de “capital financeiro” (a escravidão específica pós-século XV) era ligada à monarquia no Brasil, que, tendo a escravidão sido legalmente abolida em 1888, veio, no ano seguinte, 1889, a proclamação da república no Brasil. “Memorial de Aires”, de Machado de Assis, é didaticamente dividido em dois únicos capítulos ou blocos: “1888” e “1889”. Também “Esaú e Jacó”, do mesmo bruxo do Cosme Velho, retrata essa passagem desengonçada e cheia de más intenções, cujo resgate de uma “visão do paraíso”, como diria Sérgio Buarque de Holanda, ainda ronda os bolsolavistas, que são em essência, é óbvio, “mercantil-salvacionistas”, como convictos de que seriam filhos legítimos das capitanias hereditárias e da pátria-mãe, Portugal, e da pátria-pai, Estados Unidos. Estados Unidos SOMADOS A UMA monarquia católica que falaciosamente preza a “tradição” específica brasileira no seu idealizado e platônico modelo “deus-pátria-família”.
“Esaú e Jacó” tem como pano de fundo o 1888 e a subsequente passagem, em 1889, da monarquia à república no Brasil. Feita, aliás, assim como a escravidão, a toque de caixa e num golpe que atropelou condições civilizatórias concretas em nosso território, de cujos atropelos somos vítimas até hoje como Nação. Acontece que, por causa dessa “traição” do imperador Dom Pedro II, que despejou (não “aboliu”) um contingente enorme de pessoas, e abriu mão da própria monarquia católica em nome dessa heresia, os fazendeiros do café se tornaram “republicanos de última hora”, em 1889. Isso porque em grande parte viram seus “patrimônios”, os escravizados, serem “abolidos” no ano anterior, 1888, sem terem recebido, pobres coitados dos senhores de café, qualquer “indenização”...
E a catequese cristianizante, já desde o século XV, o “salvacionismo”, nesse sentido, será a primeira forma de se usurpar a cultura – línguas, religiões, culturas – dos povos originários e dos povos cujos corpos foram traficados da África para o Brasil. Como Darcy Ribeiro nos lembra, o “projeto” de formação do Brasil era ao mesmo tempo “mercantil” e “salvacionista”, binômio de que Olavo de Carvalho nunca se esqueceu enquanto foi vivo. Não se tratava apenas de “mercantilizar” o Brasil, entregando-o como uma grande fazenda nos moldes do pacto colonial: era preciso, também, “salvar a alma” (leia-se, “cristianizar”) essas pessoas consideradas de “alma suja”, como é mostrado, por exemplo, em Frei Vicente do Salvador.
Por isso mesmo, as religiões de matriz africana são as religiões consideradas as dos gentios, relembrando mais uma vez as palavras de Darcy Ribeiro quando descreve a visão do europeu colonizador contra as etnias aqui encontradas ou para cá trazidas sob tráfico. Essas religiões de matriz africana, no Brasil, que mesclam e sincretizam elementos das religiões indígenas com elementos dos povos africanos e mesmo os europeus, são um contraponto cultural fortíssimo que se mantém de pé contra o contínuo projeto colonizatório, que não deixa de necessitar de um prévio projeto de destruição cultural, que justifica em parte a necropolítica do bolsolavismo. Queimar tudo e todos, erguer fuzis e atirar contra tudo e todos – pessoas e suas culturas originárias – para construir, em terra arrasada, sem quaisquer referências culturais, um novo império desejado desde os anos 1500 no Brasil, em que esta terra não passe de fazenda-modelo do “agronegócio” para fornecer comes e bebes a um povo idolatrado como os Estados Unidos, nosso novo Portugal...
Em minha já citada tese de pós-doutorado na Universidade de Copenhague, Dinamarca, cito as palavras de meu supervisor, Georg Wink, em seu livro Brazil, land of the past (2021), para finalizar este breve artigo.
Com este trecho, pela voz de Georg Wink, concluímos a morbidez e o desespero de se trazer ao Brasil, neste momento específico, a parte física e anatômica mumificada de um imperador da velha forma da monarquia católica escravocrata, por tudo o que essa veneração representa à eterna nostalgia conservadora do fascismo e sobretudo à sua nova face bolsolavista.
É contra isso que teremos de evocar, cada vez mais, daqui em diante, nossa cultura de raiz – baseada não na pulsão de morte (Tânatos), mas na pulsão de vida (Eros). É por isso que a cultura popular, em todas as suas manifestações, sempre altamente inclusivas e sempre subversivas aos modelos de opressão, nos salvará.
É Eros que salvará o Brasil.
Diz Georg Wink: “Intimamente relacionado ao CDV [Centro Dom Vital], surgiu em 1928 o primeiro grande movimento monarquista no Brasil, o Ação Imperial Patrianovista Brasileira, conhecido como Patrianovismo, liderado pelo ativista afro-brasileiro Arlindo Veiga dos Santos, admirador de Maurras. Como seu modelo francês, eles lutavam pela restauração da monarquia tradicional (uma monarquia ideal, não o Império brasileiro sob Pedro II, liberalista aos olhos deles), baseada no Rei, na Igreja e nas corporações, estas antecipando a proximidade com o integralismo. A organização se apresentava como: ‘extrema direita radical e violenta, afirmadores de Deus e sua Igreja, afirmadores da Pátria Imperial e Católica, inimigos irreconciliáveis e intolerantes do burguesismo, plutocratismo e capitalismo materialista, ateu, gozador, explorador, internacionalista, judaizante e maçonizante; inimigos da república, dos partidos, do parlamentarismo, em suma do liberalismo religioso, político e econômico; enfim, tão inimigos também da anarquia bolchevista que com erros igualmente grandes pretende em vão "corrigir" a tirania da burguesia liberal, como inimigos da ordem social mentirosa, instalada em quase todo o mundo’ [Citado em Domingues, Petrônio 2006. “O ‘messias’ negro? Arlindo Veiga dos Santos (1902–1978): ‘Viva a nova monarquia brasileira; Viva Dom Pedro III!’” Varia Historia 22 (36), 517–536]”. (WINK, 2021, pp. 72-73)
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