O coração amplo do cansaço
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Temos dormido cada vez mais tarde, cada vez menos; na maioria das vezes, vencidos pelo cansaço. Não raramente, já acordamos cansados, tristes, irritados e macambúzios. Os especialistas chamam a isso de “fadiga pandêmica”. Saber o nome, no entanto, não melhora em nada a sensação de cansaço que nos consome dia após dia. A verdade é que o cansaço que nos tem dominado o corpo e a mente não é algo que ocorra comigo ou apenas com você, caro leitor / cara leitora. Trata-se de um cansaço generalizado, que tem dominado todos aqueles que estão vivendo sob os impactos da pandemia de Covid-19 em um país que virou as costas para o seu povo. É um mal-estar que não passa, e que já se aliou às demais tristezas que nos “acostumamos” a enfrentar todo santo dia: são os tiros da polícia no povo preto, os preconceitos diários, os descasos do Estado etc. É um cansaço que se alastra para muito além do aceitável, em uma nação que optou pela morte, e já não consegue reagir.
Se o “normal” da vida contemporânea já nos mantinha imersos em uma situação de cansaço constante, como defende Byung-Chul Han, no seu Sociedade do cansaço (2017), a chegada da pandemia exacerbou todas as causas e consequências dessa condição. Assim, vivemos sobressaltados com as notícias de determinados líderes políticos, que insistem em mandar o povo para o matadouro, haja vista, por exemplo, a determinação de se retomarem as aulas presenciais em várias regiões do país no pior momento da pandemia, quando estão morrendo em média três mil pessoas por dia. Também vivemos atordoados com as mentiras que se contam sobre um Brasil inexistente, que vai muito bem apenas na cabeça de meia dúzia de descerebrados. Vivemos... Vivemos?
Tem sido muito difícil para o povo brasileiro dormir com a contagem diária do número de mortos por uma doença para a qual se tem vacinas. Tem sido muito angustiante dormir, sabendo que amanhã você poderá ser apenas mais um dado estatístico, um número na contagem geral do fim do dia. Consumidos pelo cansaço, tem sido insuportável aceitar que muitos jovens estejam morrendo intubados nos hospitais, sem nem sabermos que chances eles tiveram, se é que tiveram, uma vez que muitos estão morrendo devido a imperícia de quem deveria salvar, também eles, extenuados, dominados pelo cansaço excessivo na cotidiana luta contra a morte.
Logo, se o cansaço da sociedade de desempenho, como afirma Han, é um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando; ousamos afirmar que o cansaço causado pela pandemia de Covid-19, por sua vez, é coletivo. É, no dizer de Maurice Blanchot, um cansaço que tem um coração amplo. Coletivo e amplo no sentido de que se espalha por todos os territórios, sem reconhecer ou fazer deferências a quem quer que seja. É o “cansaço-nós”, como define Handke, citado por Han, constituindo, assim, uma sociedade cada vez mais cansada e adoecida, que nos impede de fazer até mesmo as coisas mais banais do dia a dia.
E assim seguimos, tal qual zumbis no mundo líquido teorizado por Zygmunt Bauman. Mas seguiremos assim, alheios e cansados, até quando? Talvez, pela nossa acomodação frente à realidade e aos fatos, sigamos até quando não mais existirem as florestas, até quando passarem todas as boiadas, até quando não mais existir nenhum dos nossos povos ancestrais ou quando todos os nossos rios estiverem mortos. Quando tudo não mais existir, a não ser um rastro putrefato de morte, eis que eles virão buscar a nós e aos nossos filhos. E, cansados, já não poderemos fazer nada, pois passamos anos nos omitindo, enquanto o Estado-morte se ocupava em ceifar as vidas de todos aqueles a quem amávamos tanto. Então já será tarde demais.
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