O CNMP, a prescrição e o vazio do controle: quem vigia os vigilantes?

Se o órgão a quem cabe verificar a imparcialidade age com parcialidade para proteger seus pares, a quem recorrer? Quem lhes pode obrigar a cumprir os prazos e suas obrigações constitucionais? Quem fiscaliza os fiscais? Quem vigia os vigilantes?



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Uma questão sobre a qual já esbocei algumas elaborações ao longo dos anos trata da superficial importância, senão irrelevância, do papel exercido pelos órgãos de controle do Poder Judiciário e do Ministério Público na democracia brasileira, a saber o Conselho Nacional de Justiça – CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP. 

Sem retomar toda a delonga, importa afirmar que a Proposta de Emenda à Constituição nº 45, promulgada em 2004, com a criação dos dois órgãos, tramitou durante 12 anos no Congresso Nacional, sendo certo que o texto final pouco continha do original e das discussões que o fundamentaram. 

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O modelo de autonomia e independência judicial, forjado no âmbito da redemocratização do Brasil, fortaleceu um sistema de justiça intensamente destituído de qualquer mediação política, que ganhou exponencial espaço e intensidade de atuação no mesmo período, em virtude da crescente judicialização dos temas políticos, e aumento de demandas decorrentes dos direitos sedimentados no texto constitucional.

As duas Cortes de controle criadas com a Emenda Constitucional nº 45 possuem uma composição que, desde a origem, compromete qualquer possibilidade de se falar em controle externo, sendo composta em maioria por membros de suas próprias carreiras.

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Possuem os colegiados, a despeito disso, dentre outras atribuições, a de suprir a ausência do texto constitucional, com adoção de mecanismos de controle eficaz da atividade administrativa dos vários órgãos jurisdicionais; zelar pela observância dos dispositivos da Constituição Federal a que se vinculam, e apreciar a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos.

No entanto, capturados por um corporativismo militante, os órgãos criados para verificar o descumprimento de regras por juízes e membros do Judiciário e do Ministério Público têm se convertido, ao longo de 16 anos de existência, em uma caricatura da gênese de sua criação. Longe de aplicadores equidistantes do direito, evidenciam-se com uma capacidade renitente de forjar argumentos que justifiquem o arquivamento de reclamações e representações apresentadas por cidadãos e coletivos sociais, que solicitam a investigação de condutas com indícios de desvios.

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O mais recente exemplo é escandaloso, pra dizer o mínimo.

Em setembro de 2016 ocorreu o evento que se assemelhou a um programa de auditório. Com convocação de coletiva de imprensa, um grande aparato midiático, transmissão ao vivo, em um hotel da cidade de Curitiba, os procuradores da força tarefa da operação Lava Jato apresentaram um PowerPoint para anunciar a denúncia contra o ex-presidente Lula no caso do “Tríplex do Guarujá (SP)”. 

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Apresentado pelo coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol, o PowerPoint tinha o nome do ex-presidente Lula no centro e, em volta várias acusações, como a de "governabilidade corrompida", "propinocracia", "maior beneficiado", como forma de reforçar o argumento de que Lula tinha ciência e "comandou a formação de um esquema delituoso de desvio de recursos públicos" na Petrobras.

O evento em si mesmo foi tão bizarro que virou memes nas redes sociais com diversas versões do PowerPoint. 

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A frase proferida pelo procurador Roberson Pozzobon em resposta ao pedido de que apresentassem provas: “não temos provas, mas temos convicções”, virou a marca registrada da operação Lava Jato. Afirmação que, a propósito, contradiz princípio básico do devido processo legal constitucional.

É dever do Ministério Público e dos órgãos do sistema de justiça em geral adotar a publicidade como característica do devido processo legal, sendo fator de legitimidade do exercício da função jurisdicional e adequada garantia de justiça. A operação Lava Jato, contudo, em evidente desvirtuação do princípio, promoveu uma verdadeira estratégia de marketing, com vistas a influenciar a opinião pública, criando mecanismos de valoração da prova fora dos autos, estimulando estereótipos, ignorando ou depreciando garantias constitucionais, estigmatizando acusados com atributos pejorativos, e produzindo execráveis condenações criminais antecipadas.

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A Lava Jato adentrou ao processo penal do espetáculo, pra usar o conceito adotado pelo juiz Rubens Casara, em que o desejo da democracia é substituído pelo desejo de audiência, e a dimensão de garantia, inerente ao processo penal no Estado democrático de direito, cede seu lugar à dimensão de entretenimento. A entrevista coletiva dos “rapazes de Curitiba” naquele 14 de setembro de 2016 foi um ponto alto dessa busca de adesão a uma condenação antecipada, de oferta e busca de afirmação de suas autoimagens de heróis combatentes do crime. 

Durante quatro anos o CNMP adiou o julgamento do pedido de providências protocolado pela defesa do ex-presidente Lula para averiguar as circunstâncias do evento do PowerPoint. Foram 42 prorrogações, a última no dia 18 de agosto de 2020.

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O caso foi finalmente apreciado pelo Conselho nesta terça-feira (25) por ordem do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal. Os conselheiros arquivaram o pedido reconhecendo a ocorrência de prescrição.

A influência que a manifestação da entrevista coletiva da força tarefa da operação Lava Jato no caso do PowerPoint teve na opinião pública, nas decisões políticas e no próprio Direito foram e são inegáveis. 

A maioria dos conselheiros reconheceu a justa causa para instauração de Processo Administrativo Disciplinar, a gravidade dos fatos e a ocorrência dos desvios, com elementos bastantes para investigar as condutas dos três procuradores apontados no pedido de providências: Deltan Dallagnol, Julio Carlos Motta Noronha e Roberson Pozzobon. Mesmo assim, o CNMP obrigou-se a premiar sua própria letargia e incompetência e arquivou a reclamação disciplinar.

O ocorrido é a faceta mais explícita de um órgão que, longe de se configurar uma Corte de controle séria, adota o espírito de corpo como método. Deixam seus membros de compreender que o que está em jogo no caso dos procuradores da força-tarefa da Lava Jato lhes diz respeito muito mais do que possam supor. 

A parcialidade da operação Lava Jato e seus métodos espúrios e ilegais já foram escancarados, e isso não tem volta. Por seu turno, ao deixar durante 4 anos um procedimento sem análise de mérito, perde o CNMP o mínimo de credibilidade, de espírito republicano e senso de lucidez e de responsabilidade de seus membros.

Adotando a máxima da trama de Watchmen, a História em Quadrinhos escrita pelo britânico Alan Moore, a partir de uma releitura das Sátiras do poeta romano Juvenal, um questionamento se impõe. Se o órgão a quem cabe verificar a imparcialidade age com parcialidade para proteger seus pares, a quem recorrer? Quem lhes pode obrigar a cumprir os prazos e suas obrigações constitucionais? Quem fiscaliza os fiscais? Quem vigia os vigilantes?

A resposta muito provavelmente requer uma mudança não apenas de composição, mas de estrutura. Um controle real não ocorrerá sem a participação da sociedade.

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