O Chile votará na Argentina
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A voz do povo chileno que em um milhão transbordou ontem a Santiago ensanguentada pelas forças repressivas de Piñera, e todo o país, soam em uníssono com os novos ventos da contraofensiva ao neoliberalismo na América Latina. A consciência e o sentimento popular são os mesmos sintetizados nas palavras de Cristina Kirchner no ato final de campanha da “Frente de Todos” em Mar del Plata na Argentina:
“Nós estamos aqui e somos homens e mulheres que temos convicção e pensamos que a pátria não é uma construção simbólica e sim cotidiana. Homens e mulheres que acreditamos no papel do Estado que deve ser um nivelador das diferenças”. “Hoje em Mar del Plata não estamos encerrando uma campanha eleitoral, mas um ciclo histórico e para que nunca mais a pátria volte a cair nas mãos do neoliberalismo”
“Nunca mais, nunca mais!” grita o povo argentino sustentando suas palavras. Este povo que graças aos governos de Nestor e Cristina Kirchner (2003-2015) apoderou as “Mães e avós da Praça de Maio” para cobrar justiça e a memória pelos 30 mil desaparecidos pelos genocidas da ditadura; sustentou projetos econômico-sociais de nação e detenção do neoliberalismo dos abutres das finanças internacionais. A Argentina reagirá de forma contundente nestas eleições de domingo para deter o segundo ciclo de poder do novo Plano Condor instalado na América Latina dos últimos anos, bem descrito por Stella Calloni nos “Anos do Lobo”.
O presidente López Obrador do México, acaba de fazer uma declaração com sua serenidade e contundência de sempre: “O modelo neoliberal imposto na América Latina fracassou. É hora de substituí-lo. O povo já não quer sacrifícios para o benefício das minorias.” https://twitter.com/i/status/1187557735111581696
A vitória eleitoral de Lopez Obrador em dezembro de 2018 deu a primeira freada sob a luz do farol persistente da revolução bolivariana da Venezuela. A formação da Frente de Todos na Argentina, esta importante estratégia proposta por Cristina Kirchner a Alberto Fernández, um acordo nacional, uma frente única programática entre o peronismo-kirchnerismo e componentes progressistas-movimentos sociais contra o neoliberalismo, abriram também comportas no Equador e no Chile; e agora, estimulam a defesa de Evo Morales contra as ameaças golpistas da oligarquia financeira.
Enfim, este é o início do fim do chamado “lawfare” nesta guerra híbrida na América Latina, da utilização da bandeira da luta anti-corrupção, do anti-partidismo e da anti-política para derrubar governos progressistas populares e de esquerda. Vão ao banco dos réus a Lava Jato brasileira e argentina, apesar de tentativas e mentiras de último momento acionadas na campanha de Macri sobre o achado dos “Cadernos originais” do juiz Bonadio que tentou incriminar com “fotocópias” a liderança e funcionários do governo kirchnerista.
A muito provável vitória de Frente de Todos neste domingo, poderá refletir não somente um profundo rechaço popular ao terror econômico implantado e já provado nos últimos 4 anos, mas uma mudança de consciência de que as mentiras padronizadas do partido-jurídico-midiático hegemônico que assolam a região, de Macri a Bolsonaro, de Piñera a Lenin Moreno têm uma mesma fábrica. Não é à toa que esses governantes do Grupo de Lima repetem o mesmo ramerrão midiático “peço perdão ao povo”, mas devo continuar massacrando; ou “tudo é culpa da Venezuela e de Cuba”. Boa parte do eleitorado se deixou enganar e se equivocou com Macri e Bolsonaro. Mas, a ficha já caiu. No neo-liberalismo com golpe disfarçado, a mentira tem pernas curtas pois traz consequências nefastas na vida econômica e nos direitos sociais.
Hoje o povo chileno se levanta com fúria, persistência, união e coragem! A explosão multitudinária é produto de uma repressão acumulada, uma cobrança, um problema não resolvido na memória popular, um ajuste de contas não realizado desde o golpe de Pinochet contra Allende. Hoje o povo chileno cobra do direitista Piñera, mas também da ex-presidenta Bachelet que não só descumpriu o seu dever, mas firmou como Alta-comissária dos Direitos Humanos da ONU, um relatório contra a Venezuela, rechaçado pelo presidente Nicolás Maduro e vários países democráticos. Agora, a comissão vai ao Chile. Mas, isso não basta, como não basta Piñera depor seu ministério, porque a saída política urgente requerida, de governo para recuperar a economia e a dignidade do povo não é clara.
O alto grau de consciência do povo destemido, dos discursos estudantis, das mulheres combativas e dos cantos de Violeta Parra e Vitor Jara nas janelas da rebeldia e nas ruas da dignidade, comovem o mundo. Diferentemente da Argentina, a rebelião chilena se dá na ausência de partidos, comunista ou socialista, e forças políticas de oposição organizada; salvo o movimento estudantil. Esta carência deixa brechas para provocações, ou instrumentalizações rumo a uma direção oposta. Mas isso não se compara com o movimento do passe-livre em 2016 no Brasil que terminou desvirtuado pelo MBL. O Chile de hoje tem características de uma insurreição popular contra o neoliberalismo, sem palanques e direção organizada.
O povo argentino, graças ao seu peronismo organizado, às conquistas acumuladas de um Estado de direitos e referências em uma década de governo kirchnerista, de lutas sem trégua das organizações sindicais e movimentos populares contra quatro anos de Macri, acumularam resistência e força até chegar ao pleito eleitoral do dia 27 de outubro, que lhe dá uma oportunidade de impor pacificamente uma nova presidência dos Fernandez para reiniciar o fim do ciclo neo-liberal.
Isso não significa que a parada será fácil. A liderança da “Frente de Todos” chama à vigilância total nas urnas através dos seus fiscais. Horácio Verbitsky, na rádio Diário K, faz voz aos alertas emitidos sobre dois riscos de ilegalidade por parte das forças governistas, dando margem à fraude eletrônica. O primeiro é a falta de controle e auditoria no sistema Smartmatic que será acionado para escanear as atas e enviar ao centro de contagem de votos; e a contagem dos telegramas escaneados. Além disso, alerta a um Comando, autorizado pela atual Ministra de Segurança, Patrícia Bullrich, que atuará paralelamente ao Comando de Segurança Eleitoral, normalmente composto somente pelas Forças Armadas. Tal comando paralelo, de forças policiais, estaria autorizado a entrar nos colégios eleitorais, sob a escusa de controlar supostos distúrbios, violências ou acumulação de pessoas. Por isso, a participação de observadores internacionais vindos de vários países é importante. Os fatos na Bolívia, de transgressão da ordem democrática contra a vitória de Evo Morales, que o digam.
Se a legalidade institucional for respeitada, e o zum-zum das ruas, das vizinhanças e dos comerciantes for respeitado, Alberto Fernández será presidente a partir do dia 10 de dezembro. Para os que vivemos na Argentina, é evidente que hoje o povo está mais alegre, esperançoso de que no domingo se dará volta: “Vamos a volver! Vamos a volver!” como cantam os peronistas. Os mais de 700 mil que há quatro anos despediram em lágrima a presidenta Cristina Kirchner na praça de maio, voltarão a sorrir, após 4 anos de depressão e repressão.
Alberto Fernandez disse no ato final em Mar del Plata: “Passamos 4 anos de dissabores, 43 pequenas e grandes empresas fechando por dia; vimos 100 mil argentinos perdendo o trabalho; vimos cair as economias regionais; vimos como nossos aposentados perdiam suas rendas; vimos como o salário real caiu 20%”. “Vimos, dissemos, pedimos que não fizessem e fizeram. Nós sabemos a que interesses representamos. Eles representam interesses que beneficiam os poderosos. Nós, entre os aposentados e os bancos, escolhemos os aposentados, entre a educação pública e os bancos, escolhemos a educação pública, entre os que trabalham e os que especulam, escolhemos os que trabalham. Queremos que a Argentina volte a crescer”
Não é pouca coisa a emoção mútua de Cristina e Alberto nas suas palavras finais de campanha. Cristina, com emoção disse: “Alberto foi chefe de gabinete do projeto que em 2003 devolveu a dignidade aos argentinos”. “Do governo que reestruturou a dívida externa, de quem pagou a dívida que tínhamos desde 1957 com o Fundo Monetário. Ele foi chefe de gabinete de um governo que começou a reconstruir o salário e as aposentadorias de todos os aposentados.”
Alberto Fernandez, o mesmo que canta e toca violão nos encontros políticos, quase chora: “nunca me esquecerei do dia que encontrei Néstor e do dia que reencontrei Cristina”. “O Néstor me disse: deixemos de ser o polo progressista dos grupos conservadores. Façamos o que temos que fazer: chamemos nós mesmos os argentinos. Convoquemos nós mesmos os argentinos e sejamos nós a levantar as bandeiras do melhor progressismo”.
Neste domingo 27 de outubro, o povo argentino decidirá pela árdua tarefa de reconstrução do país. A batalha do povo no Chile e no Equador, provavelmente pesarão neste ato eleitoral, e contribuirão para recompor a integração latino-americana, a derrota política da Lava Jato no Brasil, o impulso da greve petroleira e a próxima absolvição de Lula da Silva. O melhor presente do povo argentino neste seu dia de aniversário será a vitória eleitoral dos Fernandez.
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