O Chile e nós
Definitivamente não vivemos em um período de normalidade. Mas parecemos distante dessa compreensão
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Não é tarefa simples entender a reviravolta chilena, cuja população em quatro anos fez um voo sem escalas da opção popular, democrática e de esquerda para o fascismo.
Estou convencido que se trata de um fenômeno complexo que desafia o observador mais atento da cena política do continente. Decerto deve-se a múltiplos fatores e será objeto de intenso debate.
Isto posto, vale um breve recuo no tempo: em 2019, as maiores manifestações populares da história do Chile acuaram o governo do direitista Sebastián Pinera, que se viu forçado a deixar de reprimir o movimento e convocar o processo constituinte.
Na sequência, os setores progressistas formam uma sólida maioria entre os constituintes eleitos e escrevem a carta mais avançada possível em termos sociais, democráticos, humanistas e civilizatórios.
Muitos chegaram a pensar que a extrema-direita do Chile e seus aliados na direita mais moderada estavam mortos e que uma longa era protagonizada pelos democratas se abrira.
Ledo engano.
Vem o plebiscito e a surpresa: o texto é rejeitado por cerca de 60% dos eleitores. Gabriel Boric, eleito presidente na esteira das mobilizações de massa, dá início a um novo processo constituinte e marca uma nova eleição.
Desta vez o eleitor é chamado a escolher 50 conselheiros para elaborar uma nova proposta de Constituição a partir de um anteprojeto preparado por um grupo de notáveis.
Mas o pior ainda estava por vir: nem o mais pessimista dos militantes e dirigentes da esquerda chilena poderia supor o terremoto político do último domingo, quando a ultradireita, liderada por Antonio Kast (foto), candidato derrotado por Boric na eleição presidencial de 2021, conquistou 22 assentos no Conselho Constituinte, que somados aos 11 postos alcançados pela direita tradicional, garantem aos conservadores pinochetistas não só uma expressiva maioria, mas até mesmo poder de veto.
Em um dos diversos grupos de Whatsapp que participo uma mensagem encaminhada por um ativista da esquerda chilena, ainda perplexo com o resultado, me chamou atenção: “Ou aprendemos a usar com eficiência as tecnologias, ou seremos derrotados.”
Esse é um ponto essencial para o Chile, para o Brasil ou qualquer lugar do planeta. Sabemos que ultradireita resiste, se reproduz e avança como um câncer metastático na escuridão do esgoto das redes sociais. Explorando o ressentimento, a frustração e a estupidez das pessoas, os discípulos de Steve Bannon apostam na mentira, na calúnia, injúria e difamação, bem como na bandidagem mais escrachada.
Focando no caso do Brasil, é mais do que urgente que os movimentos sociais, demais entidades da sociedade civil, sindicatos, partidos com compromissos populares, universidades e todos que prezam a democracia confiram prioridade máxima à luta pela derrota e o aniquilamento da extrema-direita.
Não, definitivamente não vivemos em um período de normalidade. Mas parecemos distante dessa compreensão.
Haja vista, por exemplo, a divisão em torno do projeto das fake news no segmento progressista. Lamentavelmente, muitos não conseguiram enxergar que o PL, com todos os seus problemas e insuficiências, contribuiria para quebrar a mais importante perna de ação dos fascistas nas redes, que é a não responsabilização civil das big techs por toda imundície propagada. Feito isso, a luta continuaria em busca de avanços maiores em curto, médio e longo prazos.
Deu ruim.
Embora também tenha papel importante na luta contra o obscurantismo, o governo Lula acerta quando prioriza a reindustrialização do país, a inclusão social, a geração de emprego e renda e a reinserção soberana do país no cenário internacional, afinal, governo tem que governar.
É missão, especialmente, da sociedade democrática, o acerto de contas com cadela do fascismo, que está sempre no cio. Trata-se de uma guerra prolongada, uma autêntica cruzada política, social e cultural. Mas começa pelo reconhecimento do poderio do inimigo.
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