O Chile, como a Inglaterra, vive o seu “Brexit” – piorado!

O Chile está dentro de um limbo intransponível: nem quer uma constituição tão avançada, tão inclusiva; contudo, também não quer mais viver sem direitos

Votação no plebiscito para a nova Constituição do Chile (04/09)
Votação no plebiscito para a nova Constituição do Chile (04/09) (Foto: Twitter/Servicio Electoral)


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Neste último dia 4 de setembro a população do Chile foi às urnas. Mais de 15 milhões de eleitores tiveram a oportunidade de dizer sim (Apruebo) ou não (Rechazo) para a nova constituição que havia sido escrita com ampla discussão e participação popular, e aprovada previamente por uma Assembleia Constituinte como nunca antes vista história daquele povo soberano.

De largada, não pretendo esmiuçar,

I) a pré-constituição, momento de convulsão social em que milhões de manifestantes ocuparam as ruas para dizer um basta às injustiças com a sua população que ainda respira o conjunto de direitos (ou retirada de direitos) dos tempos (e da Constituição) do ditador Augusto Pinochet;

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II) a formação encantadora da nova Assembleia Constituinte, feita pelo chamado “Plebiscito de Entrada” em cuja revolução se deu já na composição, pela primeira vez havendo paridade de gênero e ampla representação dos povos minorizados, como indígenas, negros, comunidade LGBTQIA+ e tantos povos espoliados no Chile; e

III) as discussões e participações democráticas durante a Assembleia que produziu as 178 páginas contendo 388 artigos para formatar um novo contrato social de ultra-inclusão e inovação nunca antes visto na maioria das sociedades globais.

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Para estes três pontos vale à e ao leitor buscar na internet inúmeras pesquisas, reportagens que esmiúçam a conjuntura político-jurídica do Chile, sobretudo, a partir de 2019, quando o povo já não respirava mais as austeridades de uma economia sufocante e sem acesso a direitos sociais, além de outros.

O exercício das potências e semânticas

Minha intenção é pensar dois aspectos que são, de um lado, estarrecedores, de outro, comoventes, à escolha livre para um ou outro. Falarei aqui da potência dos novos direitos (alguns deles) que o Chile se pretendia revolucionar e inspirar povos em todo o planeta; e da potência das chamadas fake news e pós-verdades (provavelmente o mal do século) que reinam no mundo nestes tempos estranhos. Vamos inverter os polos de análise.

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Em texto mais que necessário publicado pela pesquisadora do Direito Achado na Rua, Natália Cordeiro, que está no Chile para a realização do seu trabalho de mestrado em Direito (UnB), a autora já nos alertava para o risco do “Rechazo” derrotar a nova Constituição, pois, segundo Cordeiro, “a densidade opressiva dos autoritarismos conseguiu emplacar entre o povo chileno a proliferação de informações falsas, campanhas de terror e teorias apocalípticas sobre os constituintes e o texto constitucional”[1].

Completa a autora: “como a atuação de constituintes de direita foi minoritária na Convenção Constitucional, a estratégia dos setores encarregados de promover a rejeição foi a de descredibilizá-la, frisando que ela dividirá os homens e mulheres chilenos, difundindo a ideia de que essa nova Carta Magna parte de uma esquerda radical não alinhada à social-democracia, tampouco à uma política reformista”. E, “mesmo sem ter lido um artigo dos que compõe os 388 da Constituição, milhares de eleitores acreditam nas notícias falsas que circulam nos grupos de whatsapp, levando-os a crer que o Chile se transformará em uma Venezuela, que o comunismo dominará as relações políticas, que o direito à moradia será extinto, que perderão suas pensões e que o aborto será legalizado até os 9 meses de gravidez”. E infelizmente, as mentiras prevaleceram e o povo do Chile, assustado, preferiu rejeitar a nova constituição.

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No conceito, entendamos o “mal do século”

Em livre tradução, fake news quer dizer “notícia falsa”. “A expressão, tornou-se bastante conhecida e amplamente utilizada pelo público a partir de determinados acontecimentos, como por exemplo: o Brexit e as eleições presidenciais dos EUA em 2016, quando nas campanhas dos candidatos Hillary Clinton e Donald Trump deu-se início à veiculação de algumas inverdades a respeito de cada candidato”[2]. (Tragédia semelhante a dos EUA, o Brasil, que também pela potência das fake news, e-levou à Presidência da República em 2018, um sujeito completamente ilegítimo e mal caráter.)

Mas afinal, o que é Brexit? Trata-se de “uma abreviação das palavras inglesas britain (Bretanha) e exit (saída) que se popularizou com as campanhas pró e contra a saída do Reino Unido da União Europeia. A escolha pela saída foi determinada por meio de um referendo votado em 23 de junho de 2016 por 17,4 milhões de pessoas”[3]. Curiosidade: o placar foi próximo do empatado: 51,9%, pela saída e 48,1%, pela permanência. Contudo, novamente, foi o clima de pânico e mentiras que gerou uma comoção sobremaneira junto ao povo inglês e sua soberania popular se fez refém à pós-verdade que ainda não é possível mensurar todas as consequências.

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Segundo Débora Morais (2019), “diferente das fakes news (...), a pós-verdade é propagada como sendo verdade de fato. Quando um sujeito tem consciência de que uma informação é inverídica e mesmo assim a propaga o termo fake news se aplica, pois há uma motivação, um objetivo a ser alcançado por meio da mentira. Já quando não há conhecimento da inverdade e a informação é legitimada por razões pessoais de crenças religiosas, políticas, etc, trata-se do fenômeno da pós-verdade”. A autora reitera que “pós-verdade é um conceito relacionado a tendência natural do ser humano em fazer julgamentos baseados em suas próprias crenças”. E citando Leandro Karnal, Morais lembra que “a verdade dos fatos perde espaço para o apelo emocional dando origem a pós-verdade, que é a ‘seleção afetiva de identidade’, ou seja, a verdade que se perpetua é aquela que melhor se adapta às emoções (...) do indivíduo”.[4]

Um outro Chile é possível

Retornando ao Chile, Natália Cordeiro sinalizava em seu texto o risco eminente do “Rechazo”, face às pesquisas de opinião. Contudo, ainda pairava-lhe uma esperança. “Caso a cidadania escolha pela aprovação da Constituição, no dia 4 de setembro será reiterada a vitória de um projeto de justiça social e de ampliação democrática ao Chile, em data que ressoa ao ocorrido há 52 anos, quando no mesmo dia os eleitores chilenos elegeram Salvador Allende como presidente da República”, intuiu a autora.

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E de fato o seria a sagração de um projeto revolucionário. São inúmeros os dispositivos que marcam a semiologia de uma nova estética civilizatória no Chile com seus ventos navegando o Oceano Pacífico, quem sabe dando a volta pelo Oceano Atlântico e chegando a vários continentes e países, em especial o Brasil (que tanto carece deste significante). 

Entre os pontos mais potentes da quase-norma, destacamos: 

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i) reconhecer a Natureza como um sujeito de direitos, o que criaria um forte manto protetivo ao Meio Ambiente;

ii) aplicar o Estado Social, com a garantia de saúde universal e educação pública, além de outros serviços (lembrando que no Chile, educação, saúde, previdência e tantos outros, são privatizados);

iii) instituir o Estado Plurinacional, respeitando a autonomia dos povos indígenas e sua capacidade de viver sua cosmologia, inclusive no regramento de suas próprias relações culturais e sociais;

iv) desinstitucionalizar o Senado e em seu lugar instituir uma Câmara das Regiões, em cujos representantes brotam de suas localidades e analisam objetivamente as leis que têm impacto para seu povo local;

v) autorizar a interrupção voluntária da gestação (com critérios que lei específica iria prescrever), como uma autonomia às mulheres para sua escolha quanto à continuação ou não da gravidez;

vi) garantir o acesso à água e a torna um bem inapropriável, isto é, não é um produto privado e sem controle do Estado (que a distribuirá a todas e todos, sem exclusão);

vii) criar a política de paridade entre homens e mulheres, obrigando a que todos os cargos públicos sejam divididos em iguais partes para sua ocupação.

Além destas, outras mudanças se apresentavam. E vale muito a pesquisa para entendermos este mosaico legal-cultural que se avizinhou. Contudo, como disse acima, não é intenção deste artigo esmiuçar a proposta constitucional; apenas problematizar os eventos que a orbitaram.

Na prática, entendamos o “mal do século”

Imagino que, sendo o Chile também fruto de uma colonização cruel, dominado pela cultura europeia, patriarcal, machista, escravocrata, racista por tantos séculos, estes pontos, especialmente o que condiciona à emancipação das mulheres e povos minorizados, jamais seria aceito com tranquilidade pelas elites chilenas, estas que ocupam a hegemonia dos aparelhos de Estado (como nos ensina Louis Althusser), quais sejam: as grandes empresas de comunicação; o locus do Judiciário, do Executivo e do Legislativo; as estruturas militares; a escola; as igrejas; além dos senhores proprietários de terras e do capital. Evidentemente, que os poderosos que nestes espaços estão, jamais se “renderiam” aos encantos de igualdade, equidade, solidariedade e liberdade (efetiva), nem na recepção de mais direitos às mulheres, tampouco aos vulnerabilizados e espoliados historicamente.

Por falar em proprietários, um dos focos das fake news era espalhar o terror de uma mensagem que, com a nova constituição, os povos indígenas do sul do Chile iriam tomar as terras destes herdeiros coloniais, face que nesta região do país, são corriqueiros os conflitos de terra/território entre os povos originários e os ruralistas. Outra fake news que ganhou coro tratava da desconstrução de cidadania aos estrangeiros. Diziam os membros do “Gabinete do Ódio” lá do Chile que se aprovada a constituição, haveria uma “invasão” de imigrantes venezuelanos que, segundo o jogo semiológico, passando fome, buscariam refúgio em massa no país vizinho.

A esperança ainda reside – nos estilhaços (e bandeiras) ao chão

Derradeiramente, gostaria de avocar Antonio Escrivão Filho e José Geraldo de Sousa Junior[5] para pensamos processos constitucionais. Segundo os autores, “de fato, não é de hoje que as sociedades buscam formas políticas e jurídicas para organizar o convívio social. Como se estabelecer e proteger o território vinculado ao seu modo de vida. Como organizar a produção social da vida, o processo de trabalho, a distribuição de produtos. Como solucionar os conflitos entre indivíduos, entre grupos. Enfim, como determinar as regras a serem seguidas por todas e todos a fim de estabelecer a melhor forma de convívio em sociedade?” (2019, p. 134).

Destarte, os mesmos autores, nos apresentam, a partir de uma dupla estrada, sincrônica e diacrônica, isto é, a partir dos eventos, conjunturais e históricos na América Latina, em particular, na leitura das experiências do novo constitucionalismo latinoamericano que, “diante destes novos paradigmas históricos e conceituais, a noção de poder constituinte como i) expressão do conhecimento; ii) sujeito histórico; e iii) projeto ético-político assume novas configurações, aproximado a Teoria Constitucional da Teoria Crítica dos Direitos Humanos, quando vem compreendê-los como processos sociais de lutas por dignidade, orientados para o reconhecimento legal-institucional de modos de vida, expressões étnico-culturais e sexuais, e reivindicações econômico-sociais que, apesar de legítimas, ainda não tiveram força política ideológica para romper o sistema de opressão que as situa fora do ordenamento estatal”. (2019, 147)

No caso do Chile, a experiência da Assembleia Constituinte e da convocatória às participações ultra-democráticas (dos vários segmentos sociais) produz uma pedagogia e uma semiologia que provavelmente não tenham mais volta (no bom sentido). Isto é, o povo não se deixará levar pelo canto da sereia caquético-colonial e devem reivindicar algum acervo constitucional o mais próximo destes eventos do Pluralismo Jurídico e do Estado de Bem-Estar Social (queiramos, do Bem-Viver). Todavia, também acredito que não devem romper tanto (como desejou o povo do “Apruebo”) com a hegemonia geopolítica do sistema (neo)liberal. 

Na prática, neste momento, o Chile está dentro de um limbo intransponível: nem quer uma constituição tão avançada, tão inclusiva, tão ao avesso cultural colonial (decolonizar sua cognição social); contudo, também não quer mais viver sem direitos, tendo que se submeter ao sistema de mercado para acesso a todo tipo de serviço, do mais elementares (acesso à água) ao mais sofisticados (acesso ao ensino superior). 

Os próximos dias do Chile após entusiasmos utópicos (herdados da experiência da Assembleia Constituinte) e pessimismos pós-verdadeiros (herdados das fake news e da herança colonial e/ou autoritária dos fluxos históricos) serão um completo mistério. 

O fato é que, aos moldes da tragédia brasileira em que, por força das fake news, pós-verdades e ranços coloniais, elegemos o senhor da morte (literalmente, este que deixou morrer quase 700 mil pessoas pela pandemia da COVID-19 e está deixando milhões morrerem de fome), um ser que jogou o futuro do Brasil no século XVI e será bem difícil para retornarmos ao ponto de partida de alguma emancipação conquistada por direitos, o Chile vive a ressaca de seu “Brexit” (isto é, a saída do “bloco” neoliberal-colonial) e a dúvida sobre qual estrada deve pegar para não cair na armadilha de se catapultar para um passado que não deixa saudade em quase ninguém ali naquela linda nação.

Avocando Carlos Drummond de Andrade, como torcida e esperança para essa gente irmã: “As leis não bastam. Os lírios não nascem das leis”. Embora seja deveras tão importante uma constituição revolucionária como esta que se propôs ao Plebiscito de Saída no Chile, haverá primeiro que se significar a cultura, decolonizando a cognição coletiva, para adiante fazer a Lei vestir-se de direito (na gramática de Roberto Lyra Filho) e efetividade prática na vida de sua população (que, na dúvida sobre o futuro, preferiu se agarrar ao passado). Dessa forma, os lírios que nascem da Natureza estarão protegidos pelos sujeitos (e estes, meta-protegidos); os sujeitos que têm em suas mãos o poder de dizer quem pode contemplar sua beleza (dos lírios) e quem deve se contentar apenas com a imaginação das coisas.

………………………..

[1] Leia o texto completo em: https://expresso61.com.br/2022/08/30/chile-nascera-uma-nova-constituicao/.

[2] Ver mais em: https://placamae.org/publicacao/fake-news-origem-e-conceito/.

[3] Saiba mais sobre Brexit em: https://brasilescola.uol.com.br/historiag/brexit-ou-saida-inglaterra-uniao-europeia.htm.

[4] A citação foi retirada do texto, "Discurso de ódio no terreno (des)conhecido das mídias digitais: o impacto na educação", de Débora Nogueira de Morais (2019). Trabalho de Conclusão de Curso de Pós-graduação junto à Universidade Estadual de Goiás. Consta dos anais da UEG.

[5] Referência: ESCRIVÃO FILHO, Antonio e SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2019.

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