O cheiro do fascismo
Parece imperioso reconhecer que há raízes profundas na consciência coletiva, que conduzem pessoas a abraçar acordes dissonantes, tanto na classe média, como nas classes mais baixas. E elas estão dispostas a impor um único ritmo e perfume a toda a sociedade. Que produzam o som e o cheiro que lhes agrade
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“O fascismo, na sua forma mais pura, é o somatório
de todas as reações irracionais do caráter do homem médio”
(Wilhelm Reich)
Os atos de militantes bolsonaristas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no dia 1º de maio, hostilizando e agredindo verbalmente um grupo de enfermeiros e técnicos da área de saúde, que protestavam de forma silenciosa, usando jalecos, máscaras e empunhando cruzes, reforçando a importância das medidas de isolamento diante da pandemia do novo coronavírus, são imagens que chocam e beiram o dantesco.
“Vocês não vão destruir essa nação”, “analfabetos funcionais”, “esquerdopatas”, “nós vamos varrer os comunistas desta nação”, foram algumas das frases gritadas próxima a mulheres e homens, que chegaram a ser cuspidos, mas não reagiram.
A certa altura, a empresária Marluce Carvalho de Oliveira Gomes, uma das agressoras, disse a uma manifestante: “quando a gente sente o cheiro de quem não passou perfume, a gente entende o tipo de pessoa que você é!”.
Embora não haja, nas ciências sociais, uma definição de fascismo que seja universal, existem determinados elementos que autorizam o emprego do conceito para descrever um conjunto homogêneo de fatores. Nessa compreensão, o fascismo é tido como um movimento de vocação autoritária, nacionalista e militarista, que despreza a democracia e é inimigo dos direitos humanos. Focado na figura de um chefe carismático, a quem se atribui divindade e qualidades quase mitológicas, proponente de uma ideologia que destaca os valores da ordem e da disciplina, disposto a aniquilar seus opositores, inclusive pela violência.
A ideologia fascista, paradoxalmente, conclama à liberação raivosa dos impulsos, verbais e físicos, e depois oferece a ordem como resultado, inspirada no militarismo, dialogando assim, diretamente, com o fundamental da estrutura do caráter universalizado pela sociedade, principalmente das chamadas classes médias. Como se vincula a ideias de supremacia racial, é comum que fascistas persigam minorias e grupos étnicos, além de gays e comunistas, a quem acusam de serem portadores de todos os males terrenos. Em regra, também são fundamentalistas religiosos e se comportam como lunáticos em ambientes que não podem dar vazão à agressividade.
No campo dos valores reacionários encontram-se alinhavadas o amparo abstrato da ideia de nação, e o moralismo ligado aos costumes, que carregam a tiracolo os preconceitos e a defesa da família tradicional. E, ainda, disfarçado por uma máscara da modernidade e por um falso combate à corrupção. As mais recentes cenas divulgadas nas redes sociais de uma coreografia cantada pelo mesmo grupo que se autointitula “300”, na Praça dos Três Poderes, pela letra, gritos e gestos, são a imagem que sumariza todos esses elementos.
Não há, na história política brasileira, nada que se assemelhe mais ao fascismo que o bolsonarismo. As manifestações públicas têm se reproduzido como hábito nos últimos tempos, intensificadas após a eleição de Bolsonaro à presidência da República, e poderiam não ter tanta relevância não estivessem amparadas pelo Estado, que a elas não reage. Se o governo do país, por meio de seu dirigente máximo, relativiza, ampara e respalda práticas antidemocráticas, como as que pedem fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, as demais instituições permanecem inertes, legitimando-as pelo silêncio, por vezes quebrado pelas falas isoladas de algumas autoridades e por decisões pontuais.
No Legislativo, temos falas e notas reiteradas do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia, mas nenhuma do presidente do Senado e do Congresso Davi Alcolumbre. O mesmo silêncio gritante se ouve do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli.
Pesquisas realizadas nos últimos dias nos dão conta de que a popularidade do presidente Jair Bolsonaro caiu na chamada classe média, mas manteve-se ou até aumentou entre as pessoas mais pobres, o que implica que sua pregação está entrando nas classes mais baixas.
Teoricamente, menos pelo que conclui e muito pelo que questiona, a obra do psicanalista ucraniano Wilhelm Reich “Psicologia de Massas do Fascismo” nos impele a buscar compreender como o discurso fascista pode penetrar em camadas sociais cujos interesses são diretamente por ele atacadas. Analisando a sociedade europeia pré-fascismo, o autor constata que a situação econômica e a situação ideológica das massas não coincidem necessariamente.
Na compreensão de Reich não há contradição nessa conclusão com o pensamento marxista, haja vista que o materialismo dialético de Marx não compreende a relação entre a situação econômica e a consciência de classe de forma mecânica, ou seja, como se a situação material decretasse a consciência dos membros de uma classe social, em uma antítese perfeita entre economia e ideologia.
Não enxergo nenhuma abordagem contemporânea que possa dar conta de todos os elementos históricos, sociais, culturais e políticos do tema. O que indica ser pertinente, é que o comportamento fascista no Brasil não pode mais ser ignorado, tratado como radicalismo de extrema-direita em sua acepção mais simples. Tampouco pode ser reduzido a Bolsonaro ou à manipulação, “lavagem cerebral” e engodo. Parece imperioso reconhecer que há raízes profundas na consciência coletiva, que conduzem pessoas a abraçar acordes dissonantes, tanto na classe média, como nas classes mais baixas. E elas estão dispostas a impor um único ritmo e perfume a toda a sociedade. Que produzam o som e o cheiro que lhes agrade.
Mesmo que saibamos reconhecer diferenças e limites na analogia com o fascismo histórico, o show de horrores produzido nas ruas do Brasil, as ameaças reais, verbais e físicas, dotadas de cinismo e sadismo, que determinam quem são os “donos da praça”, em uma mistura de guerra psicológica com tática militar e brutalidade crua, não podem mais receber outro nome.
Por outro lado, diante do caos institucional que emerge da crise sanitária de ordem mundial que o Brasil vive, a ausência de uma política de Estado que freie os impulsos de grupos que conclamam pela ordem, mas se prestam, de fato, a uma aventura de ordem fascista, faz aumentar a responsabilidade das forças sociais-democráticas, dentro e fora da institucionalidade, indicando uma longa luta para enfrentar esse “movimento”. Não é simples nem de curto prazo, não haverá solução com vitória eleitoral. É disputa profunda, de mentes e corações, um resgate da valoração dos signos mais antigos do liberalismo: liberdade, igualdade e fraternidade. Axiomas ressignificados pelas lutas sociais e de direitos humanos ao longo da História, e que agora parecem merecer, novamente, serem postos como carros chefes das narrativas em defesa da democracia.
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