O centro da tática

"A esquerda brasileira, a começar pelo PT, precisa colocar no centro do debate político nacional o programa que ela defende", escreve Valter Pomar

Militância e bandeira do PT
Militância e bandeira do PT (Foto: PAULO PINTO)


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Por Valter Pomar 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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A maior parte da esquerda brasileira considera que o centro da tática é derrotar Bolsonaro e está confiante que isso poderá ser feito nas eleições presidenciais de 2022 através da eleição de Lula. Em nome de alcançar esse duplo objetivo (derrotar Bolsonaro e eleger Lula) uma boa parte da esquerda brasileira está disposta a fazer amplas alianças, não apenas para vencer as eleições, mas também para governar.

A disposição aliancista é tão grande que uma parte da esquerda admite inclusive apoiar a indicação de Geraldo Alckmin como candidato a vice-presidente na chapa encabeçada por Lula. Tal disposição não deveria surpreender ninguém: afinal, o PT ensaiou, mas não levou adiante o balanço crítico e autocrítico de sua experiência de governo federal (2003-2016) e, portanto, não levou adiante a necessária revisão na estratégia que orientou o Partido naquele período.

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Para quem segue acreditando naquela estratégia, ela é mais válida agora do que antes: afinal, se amplas alianças eram justificáveis para derrotar o neoliberalismo, mais justificáveis seriam agora para “defender a democracia contra o fascismo”.

Desta estratégia frenteamplista decorre um programa. Em 2002 este programa foi sintetizado na Carta aos Brasileiros. Em 2022 há quem simplifique a equação, dizendo que Alckmin na vice seria o equivalente da tal Carta.

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Os que defenderam no passado e os que defendem hoje tal programa não necessariamente desistiram de nossos objetivos de médio e longo prazo, apenas consideram que tais objetivos serão irrealizáveis se não acontecer a reconquista do governo federal; e pensam que esta reconquista seria impossível, ou pelo menos muito improvável, se a esquerda adotar um “programa máximo” (seja lá o que se entenda por isso).

O que defendem, portanto, é algo mais ou menos assim: 1/conceder o secundário (por exemplo, a vice) para garantir o principal (a eleição do presidente), 2/começar devagar (a reconstrução) para chegar longe (a transformação) e 3/para ganhar o tempo necessário à reorganização e fortalecimento de nossas bases, dar algumas “garantias ao inimigo” (a Carta aos brasileiros cumpriu em certa medida este papel).

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Roteiro parecido foi adotado entre 2002 e 2016, com o desfecho conhecido. Há quem ache, entretanto, que o desfecho naquela ocasião resultou de atitudes da presidenta Dilma Rousseff. Aceita esta tese absurda, o golpe deixa de ser golpe, a vítima vira agressor e a estratégia adotada não precisa de nenhum reparo.

Mas deixemos esta e outras experiências históricas similares provisoriamente de lado e nos concentremos em alguns problemas “novos”.

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Parte da esquerda brasileira acredita que a atual crise mundial empurrará o capitalismo para longe do neoliberalismo. E acredita que isto já estaria ocorrendo em vários países do mundo, inclusive nos Estados Unidos, por iniciativa de setores da classe dominante. Entretanto, mesmo os mais otimistas a respeito reconhecem que não há sinais de mudança na relação entre as antigas potências imperialistas e a periferia do mundo. A rigor, podemos dizer o seguinte: seja para manter o atual padrão de acumulação, seja para financiar uma mudança de padrão de acumulação, as potências centrais vão continuar tentando transferir “a conta” para a periferia.

Por outro lado, a crise mundial aprofundou um fenômeno anterior a 2008: a existência de uma extrema direita com base de massas e com veleidades “internacionalistas”. Um setor importante da população mundial foi capturado por posições aparentadas inclusive com o fascismo. E o ambiente em que se deu esta captura foi o da hegemonia neoliberal, mesmo se a referida extrema direita nem sempre seja neoliberal. Isto ocorre porque o neoliberalismo não é apenas uma política econômica ou uma doutrina política; num certo sentido, o neoliberalismo é um padrão de acumulação capitalista, presente tanto no plano nacional quanto no plano mundial.

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Mesmo nos países centrais, este padrão de acumulação reduziu ao mínimo o vínculo entre capitalismo e bem-estar social. E especialmente nos países periféricos, reduziu ao mínimo a relação entre capitalismo e preservação da soberania nacional. Como decorrência destes e de outros processos, está cada vez mais difícil a relação entre o capitalismo e as liberdades democráticas. Ou seja: a ameaça às liberdades democráticas, ao bem estar e à soberania não tem origem apenas ou principalmente na extrema direita. A extrema direita é um problema agudo, mas o neoliberalismo é a causa de fundo.

No caso do Brasil dos anos 1990, por exemplo, o bolsonarismo ainda não existia, mas as políticas neoliberais já estavam em contradição com parte das determinações originais da (limitada) Constituição de 1988. A operação iniciada com Collor, continuada pelos tucanos, retomada por Temer e prosseguida por Bolsonaro tem uma lógica: regredir e congelar o Brasil como nação primário-exportadora, importadora de produtos industriais e estufa de capitais especulativos. Um dos efeitos disto é: uma parcela crescente da população brasileira encontrará cada vez mais dificuldades seja para sobreviver, seja para garantir um futuro melhor para si e seus descendentes.

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Esta situação tem implicações políticas estruturais: um padrão de acumulação traz junto consigo uma determinada cultura política e um modo de dominação. A respeito, nos anos 1980 um embaixador do Brasil nos EUA e depois ministro da Fazenda disse algo mais ou menos assim: é um problema o Brasil ter mais títulos eleitorais do que carteiras de trabalho, pois os detentores de títulos podem usá-los para conseguir carteiras. E de fato os trabalhadores fizeram isso, em 2002, 2006, 2010 e 2014. Para interromper esta dinâmica virtuosa, a classe dominante teve que apelar ao golpe contra Dilma e à interdição eleitoral de Lula. Mas ao fazer isso, abriu espaço para forças políticas de extrema-direita que se demonstraram capazes de disputar, contra a esquerda, o apoio de importantes camadas da população.

Entretanto, não é apenas a extrema-direita que lança mão, crescentemente, do clientelismo, do fundamentalismo religioso, dos preconceitos de todo tipo, além do tratamento da questão social como caso de polícia (e milícia). Esses e outros mecanismos se tornaram parte crescente do modo de agir de toda a classe dominante. Os estilos ou cepas podem variar: bolsonarismo, lavajatismo, direita gourmet etc. Mas a essência do fenômeno é similar: as políticas neoliberais geram um padrão de exclusão social e – tão importante quanto – um tipo de cultura política incompatível com a manutenção das liberdades democráticas.

Desta digressão decorrem duas conclusões: (1) se nosso objetivo é derrotar não apenas Bolsonaro, mas também o bolsonarismo e outras cepas da extrema-direita, então é obrigatório enfrentar e superar o neoliberalismo, ou seja, o padrão de acumulação vigente não apenas em nosso país, mas em parte importante do planeta; (2) se nosso objetivo é superar o padrão de acumulação neoliberal, então as definições programáticas (onde queremos chegar, em que tipo de sociedade queremos viver etc.) devem ser o ponto de partida das definições estratégicas e táticas, não o contrário. Trata-se de definir qual padrão de acumulação e que tipo de cultura política queremos para o Brasil.

O corolário disso tudo é que alianças com neoliberais – mesmo que fossem eleitoralmente vantajosas, internacionalmente prudentes e historicamente recomendáveis, o que não é o caso – vão na contramão do programa que precisamos implementar.

Isto não significa que estas alianças não possam ser feitas em nenhum caso ou circunstância. Mas significa que -nos casos excepcionais em que uma aliança com os neoliberais for necessária – precisamos reconhecer a contradição e saber como enfrentar suas decorrências. Exatamente o contrário do que está ocorrendo no debate sobre Alckmin, que está sendo canonizado em vida por algumas pessoas.

Aliás, alguém sabe dizer o que pensa Alckmin sobre o programa de governo? Sobre o teto de gastos? Sobre a Petrobrás e o Pré Sal? Sobre o financiamento do SUS? Sobre as terceirizações?  O que nos leva de novo à necessidade de tomar como ponto de partida o programa.

Um programa “antineoliberal” significa superar não apenas a política econômica neoliberal, mas também e principalmente enfrentar e superar as bases do padrão de acumulação neoliberal, a saber: o capital financeiro, o complexo primário-exportador e o imperialismo. Há várias maneiras de fazer isso; e tanto a forma como a velocidade dependerão essencialmente das condições políticas. Mas um programa “antineoliberal” precisa pelo menos indicar o que será posto no lugar da atual hegemonia daqueles três “setores” do capital.

Nossa resposta sintética é: converter o país num polo autônomo (industrial, tecnológico, energético, alimentar), direcionar a renda do setor primário-exportador para uma industrialização de novo tipo, colocar o grande capital financeiro sob controle público.

Um setor importante da esquerda brasileira está de acordo em tese com o primeiro objetivo, aceita discutir em tese algo parecido com o segundo objetivo (via por exemplo algum tipo de tributação), mas nem em tese considera possível e/ou necessário o terceiro objetivo.

O problema é que no capitalismo atual, especialmente num país como o Brasil, é irrealista prometer fazer transformações profundas ou mesmo uma reconstrução que mereça este nome, sem mudar completamente o lugar do imperialismo, do capital financeiro, do agronegócio & da mineração na sociedade, na economia e na política brasileira.

Portanto, se prevalecer a “timidez programática”, em caso de vitória nas eleições 2022, ainda que professando uma retórica desenvolvimentista e com pretensões socialdemocratas (no velho sentido do termo, portanto nada que ver com a socialdemocracia tucana), a esquerda brasileira pode terminar aplicando um programa social-liberal. Ou seja: um programa que vai tentar melhorar a vida do povo, ampliar as liberdades, defender a soberania, retomar o desenvolvimento, mas sem romper com os limites e determinações estruturais do neoliberalismo.

Isto seria ruim em quaisquer circunstâncias, mas é especialmente ruim no contexto atual, pois se não superarmos rapidamente a estrutura neoliberal, se não reindustrializarmos rapidamente o país, se não elevarmos rapidamente as condições materiais e culturais da população brasileira, se não fortalecermos rapidamente a capacidade do Estado defender efetivamente a soberania nacional, se não mudarmos rapidamente a cultura política predominante em amplas parcelas da população, corremos o risco de a extrema-direita dar a volta por cima.

A necessidade de rapidez decorre não apenas da oposição de direita, mas também do nível de insatisfação popular (que, paradoxalmente, tende a se expressar com mais força política em caso de vitória da esquerda), assim como da tão volátil situação mundial.

Por todos os motivos expostos e outros mais, o ideal seria que o programa de governo de Lula levasse em devida consideração a equação exposta anteriormente, adaptando-as as contingências eleitorais. Mas até para que isso possa vir a ocorrer, a esquerda brasileira, a começar pelo PT, precisa colocar no centro do debate político nacional o programa que defendemos para o país, inclusive as medidas emergenciais que precisam ser adotadas nas primeiras semanas, para gerar emprego, matar a fome e proteger a saúde do povo.

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