O Cazaquistão talvez possua o segredo para a Grande Eurásia

'A localização de encruzilhada do Cazaquistão entre a Europa e a Ásia está transformando-o na 'nova Genebra' da diplomacia do século XXI', analisa o jornalista Pepe Escobar

Nur-sultan, ex-Astana, capital do Cazaquistão
Nur-sultan, ex-Astana, capital do Cazaquistão (Foto: REUTERS/Shamil Zhumatov)


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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O vale-tudo da competição estratégica entre os Estados Unidos e a China talvez esteja nos levando à total fragmentação do "sistema mundial" dos dias atuais - tal como definido por Wallerstein.

No entanto, se comparada ao Mar do Sul da China, à península coreana, aos Estreitos de Taiwan, à fronteira Índia-China nos Himalaias e a outras latitudes do Grande Oriente Médio, a Ásia Central brilha como uma imagem da estabilidade.

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Isso é bem intrigante quando levamos em conta que o tabuleiro revela que os interesses dos grandes atores globais intersectam-se bem no coração da Eurásia.

E isso nos leva a uma pergunta de importância crucial: como o Cazaquistão, o nono maior país do mundo, conseguiu permanecer neutro em meio à incandescente conjuntura geopolítica dos dias de hoje? Quais as características daquilo que poderia ser descrito como o paradoxo cazaque?

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Essas perguntas foram de certa forma respondidas pelo gabinete do Primeiro Presidente Nursultan Nazarbayev. Discuti algumas delas com analistas quando estive no Cazaquistão, no fim do ano passado. Nazarbayev não pôde respondê-las pessoalmente porque ele acaba de se recuperar da Covid-19 e está ainda em isolamento.

Tudo remonta à situação do Cazaquistão na época em que a URSS foi dissolvida, em 1991. Os cazaques herdaram uma estrutura etnodemográfica bastante complexa, com a população de língua russa concentrada no norte, questões territoriais não-resolvidas com a China e a proximidade geográfica com o extremamente instável Afeganistão, que então vivia a trégua, que precedeu à violenta conflagração dos senhores da guerra de inícios da década de 1990, que criou as condições para o surgimento do Talibã.

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Para dificultar ainda mais as coisas, o Cazaquistão não tinha acesso ao mar.

Todos os fatores citados acima poderiam ter feito com que o Cazaquistão fosse despachado para um limbo político, ou permanecesse perpetuamente atolado em um cenário balcânico.

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Quem tem poder brando viaja

Entra em cena Nazarbayev como um bom estrategista político. Desde o começo, ele viu o Cazaquistão como um ator importante, e não como um peão, no Grande Tabuleiro da Eurásia.

Um bom exemplo foi a criação, em1992, da Conferência sobre Interação e Medidas de Geração de Confiança na Ásia (CICA, em inglês), baseada no princípio da "indivisibilidade da segurança asiática", mais tarde proposta para toda a Eurásia.

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Nazarbayev também tomou a decisão crucial de abandonar o que, à época, era o quarto potencial de mísseis nucleares do planeta – e um importante trunfo nas relações internacionais. Todos os grandes atores no arco que vai do Oriente Médio à Ásia Central sabiam que algumas nações islâmicas estavam extremamente interessadas no arsenal nuclear do Cazaquistão.

Nazarbayev preferiu apostar no poder brando, e não no poder nuclear. Ao contrário da Coreia do Norte, por exemplo, ele privilegiou a integração do Cazaquistão na economia global em termos favoráveis, em vez de tentar garantir a segurança nacional com base em poderio nuclear. Ele, certamente, estava preparando o caminho para o Cazaquistão vir a ser visto como um ator confiável, neutro e pragmático, e como um mediador nas relações internacionais.

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A confiança e a boa-vontade em relação ao Cazaquistão é algo que vi com meus próprios olhos em minhas viagens pan-eurasiáticas e em minhas conversas com analistas, da Turquia e Líbano até a Rússia e a Índia.

O melhor exemplo atual é Astana, atualmente chamada de Nur-sultan, ter-se tornado o quartel-general dessa complexa obra em andamento: o processo de paz na Síria, coordenado pelo Irã, pela Turquia e pela Rússia - seguindo-se à importantíssima e bem-sucedida mediação cazaque para solucionar o impasse entre Moscou e Ancara, após a derrubada de um Sukhoi Su-24M nas proximidades da fronteira sírio-turca, em novembro de 2015.

E na importante questão da Ucrânia pós-Maidan, em 2014, o Cazaquistão conseguiu, simultaneamente, manter boas relações com Kiev e o Ocidente, e também sua parceria estratégica com a Rússia.

Como eu já havia relatado no ano passado, Nur-sultan está agora assumindo o papel da nova Genebra: a capital da diplomacia do século XXI.

O segredo desse paradoxo cazaque é a capacidade de criar um equilíbrio delicado em suas relações com os três grandes atores - Rússia, China e Estados Unidos - e ao mesmo tempo assumir a liderança das potências da região. O gabinete de Nazarbayev ousadamente argumenta que Nur-sultan poderia ser vista como o lugar ideal para as negociações Estados Unidos-China: "Estamos firmemente encaixados no triângulo Estados Unidos-China-Rússia, e mantemos relações de confiança com todos eles".

No coração da Eurásia

E isso nos traz ao porquê de o Cazaquistão - e Nazarbayev, pessoalmente – se envolverem tanto na promoção de seu conceito especial da Grande Eurásia – que se sobrepõe à visão russa, discutida em detalhes exaustivos no Valdai Club.

Nazarbayev conseguiu estabelecer um paradigma segundo o qual nenhum dos principais atores se sentem compelidos a exercer um monopólio sobre as manobras cazaques, o que inevitavelmente levou o Cazaquistão a expandir seu alcance em termos de política externa.

Em termos estratégicos, o Cazaquistão está exatamente no coração geográfico da Eurásia, tendo imensas fronteiras com a Rússia e a China, e também com o Irã no mar Cáspio. Seu território é nada menos que uma ponte estratégica da maior importância, unindo a totalidade da Eurásia.

O enfoque cazaque vai muito além da conectividade (comércio e transporte), dois dos principais suportes da Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative - BRI) chinesa, aproximando-se mais da convergência da BRI e da União Econômica da Eurásia, liderada pela Rússia: um espaço eurasiano único e integrado.

Nazarbayev vê a integração dos "istãos" da Ásia Central com a Rússia e com os países de língua túrquica como a base de seu conceito de Grande Eurásia.

O corolário inevitável é que a ordem atlanticista - bem como o predomínio anglo-americano nas relações internacionais - vem declinando e, certamente, não convém à Ásia e à Eurásia. Um consenso vem se formando entre as principais latitudes  quanto a que a força motriz para a reinicialização da economia global após o Covid-19 - e até mesmo um novo paradigma - virá da Ásia.

Paralelamente, o gabinete de Nazarbayev colocou um ponto de importância crucial: "Uma resposta puramente asiática ou oriental tem pouca chance de ser conveniente à coletividade do Ocidente, que também está à procura de modelos ótimos para a estrutura mundial. A Iniciativa Cinturão e Rota chinesa mostrou claramente que os países ocidentais não estão psicologicamente preparados para ver a China como líder".

Nur-sultan, no entanto, continua convencida de que a única solução possível seria exatamente um novo paradigma para as relações internacionais. Nazarbayev argumenta que as chaves para a solução do atual tumulto não se localizam em Moscou, Pequim ou Washington, mas sim em um nó de trânsito estratégico, como o Cazaquistão, onde se intersectam os interesses de todos os atores globais.

Portanto, o impulso para que o Cazaquistão - uma das principais encruzilhadas entre a Europa e a Ásia, juntamente com a Turquia e o Irã - venha a se tornar o mediador ótimo que permitirá que a Eurásia prospere na prática. Essa é a opção otimista: de outro modo, parecemos condenados a passar por uma nova Guerra Fria.

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